"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/05/2015

Jurisprudência (135)



Prescrição presuntiva; ilisão


1. O sumário de RP 27/4/2015 (108459/13.3YRPRT.P1) é o seguinte:


I - A alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, só devendo ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
 
II - A presunção de pagamento em que se funda a prescrição presuntiva pode ser ilidida por confissão do devedor, podendo a confissão judicial ser tácita, o que se verifica quando o réu, ouvido em audiência de julgamento, aí descreve factos incompatíveis com o que alegou na respectiva contestação.

2. No ponto 3.2. da fundamentação do acórdão é afirmado o seguinte:

"Nos termos do artigo 317.º, alínea b), do Código Civil, prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor.

O Código Civil, nos artigos 300.º e seguintes, regula a matéria relativa à prescrição. Contudo, sob esta designação genérica, a lei regula duas figuras distintas, dois tipos de prescrição, a extintiva e a presuntiva.

Nos termos do artigo 304.º do Código Civil, completada a prescrição, tem o respectivo beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito. Estamos então perante a prescrição extintiva, a qual configura excepção peremptória e determina a absolvição do pedido.

Figura diferente é, no entanto, a prescrição presuntiva, a qual, nos termos do artigo 312.º do Código Civil, se funda na presunção de cumprimento da obrigação cuja satisfação se pretendia. Visa-se deste modo proteger o devedor contra o risco de satisfazer em duplicado uma dívida em relação à qual não é usual exigir ou guardar durante muito tempo o respectivo recibo.

Nas palavras do Prof. Vaz Serra, «as prescrições presuntivas são presunções de pagamento, fundando-se em que as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não é costume exigir quitação do seu pagamento; decorrido o prazo legal presume, pois, a lei que a dívida está paga, dispensando assim o devedor da prova do pagamento, prova que lhe poderia ser difícil, ou até impossível, por falta de quitação» – Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 109, página 246.

Em consideração destas características, ocorre então uma inversão do ónus da prova, porquanto, cabendo geralmente ao devedor fazer a prova do cumprimento – artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil –, passa a caber ao credor provar que foi omitido o pagamento. Atenta, no entanto, a particular natureza das obrigações, bem como a presunção de pagamento que passa a existir, os meios de prova admissíveis para o efeito são restritos, apenas podendo provir do próprio devedor, por confissão judicial e extra judicial – artigos 313.º e 314.º do Código Civil.

Daí que, a ocorrer a referida prescrição, ela determine apenas a inversão do ónus da prova nos termos supra referidos – isto, sem prejuízo de entretanto poder ocorrer o prazo de prescrição extintiva.

Também por essa razão, a invocação da prescrição é incompatível com a discussão da própria natureza, validade ou montante da obrigação e, genericamente, com tudo o que possa pôr em causa a presunção que se invoca.

Nas palavras do artigo 314.º do Código Civil, considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.
 

A confissão de factos, especificamente, a confissão do não pagamento, pode ser efectuada espontânea e expressamente ou de modo tácito, a que se reporta a parte final da norma que se deixou citada.

«Ao apreender o espírito das prescrições presuntivas não podemos deixar de lado o princípio da boa-fé processual: as prescrições presuntivas não foram criadas para libertar o devedor do cumprimento da sua obrigação, mas tão só de o libertar do ónus de provar que pagou» (Acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Junho de 1992, publicado no tomo 3/1992 da «Colectânea de Jurisprudência», página 206).

Por isso, existe confissão tácita quando o devedor não impugna factos alegados na acção pelo credor que conduzem ao não pagamento ou quando ele próprio pratica, no âmbito do processo, actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.

Entre os exemplos pacíficos de incompatibilidade com a presunção de cumprimento salientam-se a negação, pelo devedor, da existência da dívida, a discussão do seu montante ou a invocação de compensação." 


3. Para uma síntese da posição da jurisprudência e da doutrina sobre o problema, cf. Comentário ao Código Civil-Parte Geral (2014)/Brandão Proença, Artigo 314 4.

MTS