Venda executiva; título de transmissão;
direito de remição
I. O sumário de RG 15/3/2016 (1846/14.8TBVCT-V.G1) é o seguinte:
1. A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artº 879º do Código Civil.
2. Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, na venda executiva esta apenas tem lugar com a emissão, pelo agente de execução, do respectivo título de transmissão, o que apenas ocorre depois de este último se ter certificado do pagamento do preço e do cumprimento (ou da isenção) das legais obrigações fiscais.
3. O direito de remissão (sic) constitui um «direito de preferência» qualificado ou especial que prevalece sobre o direito de preferência legal ou convencional.
4. Estando em causa a venda judicial por meio de propostas em carta fechada, os titulares do direito de remissão (sic) podem exercer esse direito enquanto não for emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão do bem, mesmo que o proponente tenha pago o preço e cumprido as respectivas obrigações fiscais em data anterior.
II. Na fundamentação do acórdão consta o seguinte:
"A propósito do direito de remissão [sic; deveria escrever-se remição], preceitua o art. 842º do CPC, que «ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço […] por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.»
Como ensina J. LEBRE de FREITAS, “A Acção Executiva – À luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2ª edição, 1997, pág. 271-272, o direito de remissão [remição, no original] consubstancia um especial direito de preferência ou um direito de preferência qualificado (pois que prevalece sobre o direito de preferência em sentido estrito, seja ele de origem legal, seja de origem convencional, embora, neste último caso, apenas se estiver dotado de eficácia real – cfr. art. 844º, n.º 1 do CPC), que visa a protecção do património familiar, evitando, quando exercido, a «saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado». Vide, ainda, no mesmo sentido, por todos, J. ALBERTO dos REIS, “Processo de Execução”, II volume, Coimbra Editora, 1985, pág. 477-478, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “A Acção Executiva Singular”, Lex, 1998, pág. 381, AC RC de 27.05.2015, relator ARLINDO OLIVEIRA e AC RP de 23.06.2015, relator ARISTIDES RODRIGUES de ALMEIDA, ambos in www.dgsi.pt.
No caso em apreço, em função das conclusões do recurso (e são elas, como se expôs, que servem de delimitação do objecto do recurso e do «thema decidendum»), não se mostra posto em crise ou sequer discutido que o direito de remissão (sic) tenha sido exercido por um dos familiares dos executados a quem, à luz do preceituado no art. 842º do CPC., assiste […] um tal direito, ou, ainda, que o depósito efectuado pelo remidor tenha observado, quanto ao seu montante, no caso em apreço, os ditames do n.º 2 do art. 843º do CPC.
Com efeito, à luz do corpo das alegações recursórias ou das conclusões do recurso do apelante, não está posto em crise que a remidora seja filha da executada C. (art. 842º do CPC), nem que o valor depositado ou pago pela mesma à agente de execução se cifre no preço da venda do bem, acrescido de 5%, a título de indemnização (art. 843º, n.º 2 do CPC).
Desta forma, dando por assente este condicionalismo legal (da regularidade do montante/valor depositado nos autos e do vínculo familiar que intercede entre a remidora e a executada C. - filha/descendente), a única questão que está em causa é, no fundo, saber se a remidora exerceu tempestivamente o seu direito ou não, sendo certo que, merecendo esta questão resposta positiva, o recurso, inelutavelmente, terá que improceder, na estrita medida em que, em tal contexto, o direito de aquisição do remidor sempre corresponderá ao exercício de um (seu) direito processualmente consagrado.
Vejamos.
Quanto a esta matéria, estamos em crer que o teor do art. 843º, n.º 1 al. a) do CPC. (correspondente ao art. 913º, n.º 1 al. a) do CPC, na sua versão anterior - emergente do DL n.º 226/2008 de 20.11) é perfeitamente claro ao consignar que «o direito de remissão (sic) pode ser exercido no caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n.º 3 do art. 825º.» (sublinhado nosso)
Nesta perspectiva, sendo certo que, à data de 26.06.2015 (quando a remidora completou o pagamento da quantia que era devida pelo exercício do direito de remissão [...]), ainda não tinha sido emitido o aludido título, é manifesto que esse exercício só pode ser tempestivo.
Com efeito, a este propósito, referem VIRGÍNIO RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, “A acção executiva anotada e comentada”, Almedina, 2015, pág. 572-573, que o n.º 1 do citado preceito fixa, nas suas alíneas a) e b), os momentos até aos quais pode ser exercido o direito de remição.
«Na venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título de transmissão de bens para o proponente ou no prazo previsto no n.º 3 do art. 825º.»
Em suma, como ali se escreve, op. cit., pág. 573, (e sendo certo que a hipótese do n.º 3 do art. 825º não tem, no caso dos autos, qualquer aplicação), «mesmo após ter ocorrido a aceitação da proposta no ato da sua abertura, o remidor pode exercer o seu direito; o que releva é que o exercício desse direito seja anterior ao momento da emissão do título da transmissão, cuja competência cabe ao agente de execução.» (sublinhado nosso)
Em suma, como resulta claro deste normativo, estando em causa uma venda por propostas em carta fechada – como é o caso dos autos –, mesmo após a aceitação da proposta e o eventual pagamento do preço e demais encargos (designadamente, de natureza fiscal) inerentes à transmissão por parte do proponente, sempre o remidor poderá exercer (validamente) o seu direito se o fizer até ao momento da emissão do título de transmissão (pelo agente de execução) a favor do proponente.
Julgamos que, neste conspecto, a lei processual civil (seja na actual versão, seja no anterior art. 913º, n.º 1 al. a) do pretérito Código), é absolutamente clara e não permite outra leitura ou interpretação que […]não seja esta que ora se expôs.
Mas esta leitura e interpretação – que temos como a única susceptível de colher do texto legislativo e à luz do princípio geral da interpretação previsto no art. 9º, n.º 3 do Cód. Civil –, fornece-nos, ainda, segundo cremos, a resposta a uma outra questão, (abordada, de alguma forma, pelo recorrente nas suas alegações), qual seja a de saber em que momento se efectiva ou conclui a venda executiva, isto é, quando se considera realizada a venda executiva e produzidos os seus efeitos.
A venda ter-se-á como concluída e efectiva logo que é aceite a proposta, será apenas quando se encontra efectuado o pagamento integral do preço e das obrigações fiscais inerentes à transmissão (como parece sustentar o recorrente) ou será apenas quando ocorre a adjudicação através da emissão do respectivo título?
Nesta sede, referem VIRGÍNIO RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, op. cit., pág. 539, que «sendo a venda constituída por um conjunto encadeado de actos, um verdadeiro acto complexo de formação sucessiva (composto por actos preparatórios, como a avaliação dos bens penhorados, a publicitação da venda, o acesso aos bens penhorados por parte dos interessados na venda, entre outros; actos de transmissão propriamente ditos, como a abertura de propostas, a deliberação sobre as propostas apresentadas e aceitação da proposta vencedora; e, finalmente, actos […] de conclusão do procedimento em que a venda se traduz, como, por exemplo, o cumprimento de obrigações tributárias a que a transmissão dá lugar, emissão do título de transmissão e cancelamento dos registos dos direitos que caducam com a venda executiva), parece-nos defensável a solução de que a mesma só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão.»
De facto, como é consabido, incumbe, exclusivamente, ao agente de execução (cfr. art. 827º, n.ºs 1 e 2 do CPC) verificar do pagamento efectivo e integral do preço e da satisfação das obrigações fiscais inerentes e, em função dessa certificação, emitir o respectivo título de transmissão.
Nestes termos, dispõe o n.º 1 do art. 827º, que «mostrando-se pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados.»
Ora, como a propósito da anterior norma - art. 900º, n.º 1 do CPC, na versão anterior à Lei n.º 41/2013 de 26.06, que aprovou o novo Código […] de Processo Civil, - e cujo teor corresponde ao actual art. 827º, se escreveu, com plena aplicação ao caso sub judice, no AC RP de 20.11.2014, relator AMARAL FERREIRA, in www.dgsi.pt, «na venda negocial a transferência [da propriedade] dá-se por mero efeito do contrato, ou seja, a transferência não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço - cfr. art. 886º do Código Civil, que dispõe que “ Transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço ”.»
Contudo, como ali se salienta, a situação é diferente na venda executiva, porquanto nela, de acordo com o art. 900º, nº 1, do Código de Processo Civil [actual n.º 1 do art. 827º], «os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, agente de execução que, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, comunica a venda ao serviço de registo competente, juntando o respectivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do artº 824º do Código Civil.»
Assim, é de concluir que, «...face ao disposto nos citados preceitos legais, na venda executiva por propostas em carta fechada a transmissão da propriedade do bem vendido só se opera com o pagamento integral do preço e a satisfação das obrigações fiscais inerentes à transmissão e a emissão do respectivo título de transmissão - o instrumento de venda.» (sublinhados nossos)
É que, prossegue, ainda, o mesmo aresto, cuja lição aqui se segue de perto, «segundo o citado artº 900º, nº 1, a propriedade da coisa ou do direito não se transfere por mero efeito da venda, como sucede no direito substantivo [artºs 408º, nº 1, 874º, e 879º, al. a), e 578º nº 1 todos do Código Civil], mas só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução no caso de venda por propostas em carta fechada (no caso da venda por negociação particular com a outorga do instrumento da venda), para o que se torna necessário que se verifique mostrar-se paga a totalidade do preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão – cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 8ª ed., pág. 371.»
No mesmo sentido se pronunciam, aliás, José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, III Volume, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 582, quando referem que «O depósito […] do preço não constitui uma simples conditio juris (condição de eficácia dum negócio já perfeito, mas um elemento constitutivo da venda executiva por proposta em carta fechada. Até ele ter lugar o proponente está ligado ao tribunal por um contrato preliminar (…), constituíndo com os elementos já verificados da fatispécie complexa do contrato definitivo em formação, com eficácia semelhante à do contrato-promessa e, como este, susceptível de execução específica (art. 898.º-1) ou de resolução com perda do valor da caução prestada (art. 897-1), a título de indemnização (art. 898-3). Só com a conclusão da venda se produzem os efeitos desta (art. 824 CC).» [...]
Destarte, até ao dito momento - isto é, até à data de emissão do título por parte do agente de execução -, a venda não se mostra concluída (antes em mera formação) e os seus efeitos (nomeadamente, o efeito translativo), não se mostram consumados, inexistindo, portanto, ao contrário do que parece sustentar o Recorrente, até ao momento de emissão do título de transmissão, um negócio consumado de venda.
Existe a legítima expectativa dessa sua conclusão, mas apenas isso.
Aliás, é de notar que, em perfeita consonância com o antes exposto quanto à produção de efeitos na hipótese de venda executiva, o próprio legislador apenas reconhece ao adquirente, munido de título de […] transmissão, legitimidade para «requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens» (cfr. art. 828º do CPC), sinal, assim, de que só com a emissão do título de transmissão a venda executiva se consolida definitivamente e se opera o respectivo efeito translativo da propriedade dos bens em apreço, ficando o então (mas só então...) adquirente em condições de exigir de outrem a entrega dos bens que adquiriu em sede de venda judicial.
O que, em conclusão, significa, para o que releva na presente apelação, que a remissão (sic) efectuada pelo remidor, sendo, como é, tempestiva (por anterior à data de emissão do título de transmissão por parte do agente de execução – cfr. art. 843º, n.º 1 al. a) do CPC), deverá prevalecer sobre a proposta de compra efectuada pelo proponente, proposta esta que, não obstante a sua aceitação e o pagamento do preço e das inerentes obrigações fiscais, não se havia ainda (à data da remissão) convertido ou concluído em transmissão/venda.
Aliás, diga-se que o recorrente conclui, repetidamente, que o exercício da remissão (sic) pela recorrida é intempestivo, mas omite a única norma processual aplicável ao prazo para esse exercício (o já citado art. 843º, n.º 1 al. a) do CPC), norma esta que, com o devido respeito, afasta, claramente, aquela sua conclusão."
III. Com intuito pedagógico, chama-se a atenção para que a "remissão" (de remitir) não deve ser confundida com a "remição" (de remir): cf. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. O equívoco linguístico verificou-se certamente aquando da transcrição do acórdão para a base de dados informática.
MTS