"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/06/2016

Jurisprudência (378)


Dívida da herança; responsabilidade;
legitimidade processual


1. O sumário de RL 7/4/2016 (3167/06.0TJLSB.L1-2) é o seguinte:


I - No caso de herança indivisa, não podem os herdeiros ser condenados a pagar os encargos daquela, mas sim a reconhecer a existência dos correspondentes débitos e a vê-los satisfeitos pelas forças da herança.

II – O objeto do pedido e o objeto da decisão devem coincidir, não podendo a sentença determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide.

III – Assim, pedida a condenação dos primitivos RR., enquanto herdeiros do de cujus, a pagar ao A., o montante de uma dívida, contraída por aquele, acrescida de juros, não podem aqueles ser condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelos bens da mesma herança, devendo a ação improceder.

IV – Porém, requerida a habilitação dos sucessores do primitivo Réu – enquanto herdeiros daquele – é de considerar estar implicada pela decorrente reconfiguração da titularidade da relação material controvertida, a reconformação do pedido inicial – de condenação do primitivo Réu no pagamento de dívida para com a A. – em função dessa nova vertente subjetiva.

V – Nesta hipótese, devem os sucessores/herdeiros habilitados, ser condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelas forças da mesma herança. 

2. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão:

"2. [..] De acordo com o disposto no artigo 269º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, “A instância suspende-se nos casos seguintes: Quando falecer ou se extinguir alguma das partes, sem prejuízo do disposto no artigo 162º do Código das Sociedades Comerciais.”.

Note-se que a personalidade jurídica da pessoa física “cessa com a morte”, nos termos do artigo 68º, n.º 1, do Código Civil.

E que quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária, consistente, esta, “na suscetibilidade de ser parte”, cfr. artigo 11º, n.º 1, do Código de Processo Civil. [...]

Assim, e no que agora interessa, porque falecida a parte, pessoa física, cessa a sua personalidade jurídica e a sua personalidade judiciária, a lei de processo determina a suspensão da instância – que não poderia prosseguir com uma única parte.

Suspensão que cessará com a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, ou antes da propositura da ação, mas quando só depois dela se torna conhecido esse falecimento, cfr. artigo 351º, n.ºs 1 e 2, e 276º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.

NÃO visando assim a habilitação dos sucessores da parte falecida, e muito menos APENAS – obter a condenação do falecido, representado pelos seus sucessores.

Com efeito, a habilitação incidental respeita à transmissão da posição jurídica litigiosa, operando-se, por via dela, e como anotam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. 1º, 3ª Ed., Coimbra Editora, 2014, págs. 681 e 683], uma modificação subjetiva da instância.

Não podendo os sucessores habilitados representar… quem já não tem personalidade jurídica nem judiciária.

Nem ser condenado no pagamento do que quer que seja… quem já não pertence ao mundo dos vivos…

Determinados os herdeiros do primitivo Réu HV, confrontamo-nos com uma herança, que não é jacente, e que, face aos elementos dos autos constantes, não podemos concluir ter sido repudiada ou partilhada.

Ora, como se decidiu no Acórdão desta Relação de 2014-02-20 [Proc. 747/12.9TVLSB.L1 [...], 2. «Como é sabido, a herança é um património autónomo [...], que sendo vários os herdeiros é também um património coletivo, e que responde pelas dívidas do falecido, cfr. art.º 2068º.

Quanto ao qual, e até à integral liquidação e partilha, vale a regra, estabelecida no art.º 2074º, de não confusão dos poderes e vinculações próprios do herdeiro com os próprios da herança.

Respondendo “Os bens da herança indivisa colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos.”, vd. art.º 2097º.

Ou seja, “a herança, porque consiste num verdadeiro património autónomo, responde toda ela sem discriminação de bens pelo cumprimento dos respectivos encargos.”.[5]

Por isso e consonantemente, a regra é a de que “os direitos relativos à herança (indivisa) só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”, cfr. art.º 2091º. [...]

[...] “No caso, o artigo 2091º impõe aos «herdeiros» a representação e a legitimidade para contradizerem. Ora os herdeiros são parte legítima na acção contra eles intentada, para os credores da herança verem os seus créditos pagos pelos bens da mesma. No entanto, não podem ser condenados a pagar as dívidas pelas razões já várias vezes referidas. Acentua-se, de novo: «não são devedores», mas tem de se ter em consideração que a herança não pode ser demandada nem condenada porque não tem personalidade. Os herdeiros serão demandados e condenados, mas não a pagar os créditos, tão somente a reconhecerem a sua existência, ou a verem satisfeitos pelos bens da herança os créditos dos credores do de cujus.”.

Nesta linha, em que nos incluímos, havendo o Supremo Tribunal de Justiça decidido, em Acórdão de 19-03-1992 [Proc. 081315 [...]], que “I. Os herdeiros deverão ser demandados e condenados, não a pagar as dívidas de herança indivisa, mas simplesmente a reconhecerem a existência delas ou a vê-las satisfeitas pelos bens da mesma herança.”.

E, convergentemente, em Acórdão de 29-01-2003 [Proc. 02B4447 [...]], julgado que “"ex-vi" do estatuído nesses citados artºs 2097º e 2098º, nº 1, antes da partilha não existe propriamente responsabilidade do herdeiro pelo cumprimento dos encargos do «de cujus»”.

Tendo aquele Tribunal, mais recentemente, reiterado tal entendimento, no seu Acórdão de 09-02-2012 [Proc. 8553/06.3TBMTS.P1.S1 [...]], em cujos considerandos ler-se pode: “No caso de herança indivisa cabe apenas aos seus herdeiros intervir em nome próprio para fazer valer os seus direitos e que só por todos eles podem ser exercidos; e, quando determinados os seus herdeiros, não devem eles ser condenados a pagar os encargos da herança, mas sim reconhecer a existência dos débitos que devam ser satisfeitos pelas forças da herança.”.».

3. A sentença recorrida, e como visto, julgando a ação parcialmente procedente, condenou “o primitivo Réu HV - ora representado por A, B, C, D e E - a pagar à Autora a quantia de 8.409,57 Euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos a contar de 18 de Agosto de 2006, à taxa de 21,624% e até integral pagamento.”.

Quando e na conformidade do exposto, apenas poderia ter condenado os RR. a, reconhecendo a existência do crédito da A. sobre a herança aberta por óbito de HV, verem aquele satisfeito pelos bens de tal herança.

Mas isso, desde que um tal efeito jurídico, não inteiramente coincidente com o pedido formulado pelo A., resulte afinal considerável. [...]

No sobredito Acórdão desta Relação de 2014-02-20, considerou-se que o objeto “possível” da sentença recorrida, na conformidade do que se vem de expor, não seria assimilável ao objeto do pedido.

«Uma coisa é a condenação dos RR., ainda que enquanto herdeiros do falecido […], a pagar ao A., a quantia de €42.398,46, acrescida de juros.

Outra a condenação dos mesmos RR. a reconhecerem a existência da dívida e vê-la satisfeita pelos bens da mesma herança».

Nem sendo exato, o que apenas marginalmente se assinala, que a sentença recorrida haja estabelecido “os limites da condenação dos Réus ora recorrentes às forças da herança”."

MTS