"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/06/2016

O Reg. 1215/2012 e a "execução" de decisões



1. Num artigo recentemente publicado na Julgar Online, Maio de 2016, C. Machado "propugna[...], por um lado, pela tramitação sob a forma ordinária de todas as execuções de decisões proferidas ao abrigo do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 e, por outro, uma interpretação correctiva e extensiva do disposto no n.º 6 do artigo 726.º do Código de Processo Civil, devendo o juiz, nesta fase, proceder igualmente à citação do devedor nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 43.º e 46.º do Regulamento."

Salvo melhor opinião, esta posição assenta num pressuposto muito discutível: o de que a notificação da certidão emitida nos termos do art. 53.º Reg. 1215/2012 que é imposta pelo art. 43.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 deve coincidir com a citação para a execução, ou melhor, que aquela notificação e esta citação devem ser o mesmo acto.

2. O consid. (32) Reg. 1215/2012 dispõe o seguinte:

"A fim de informar da execução de uma decisão proferida noutro Estado-Membro a pessoa contra a qual tal execução é requerida, a certidão passada ao abrigo do presente regulamento, se necessário acompanhada da decisão, deverá ser notificada a essa pessoa em tempo razoável antes da primeira medida de execução [...]".

Importa, neste contexto, chamar a atenção para que, no âmbito do Reg. 1215/2012, a palavra "execução" é utilizada num duplo sentido:

-- No de processo de execução, ou seja, no de processo destinado a executar uma decisão; é neste sentido que a palavra "execução" é empregada, por exemplo, no art. 42.º Reg. 1215/2012;

-- No de procedimento de obtenção da exequibilidade da decisão, ou seja, no de procedimento destinado a tornar uma decisão proferida num Estado-membro exequível num outro Estado-membro; é nesta acepção que a palavra "execução" é utilizada na Subsecção 2 ("Recusa de execução", art. 46.º a 51.º) da Secção 3 do Capítulo III Reg. 1215/2012; o que se regula nesta Subsecção 2 não é o procedimento de recusa de uma execução, mas o procedimento de recusa da atribuição de exequibilidade a uma decisão proferida num Estado-membro diferente do Estado requerido; é por isso que, por exemplo, o disposto nos art. 49.º a 51.º Reg. 1215/2012 em matéria de recursos nada tem a ver com os recursos admissíveis quando o executado se opõe à execução, mas antes com os recursos que são cabíveis quanto a uma decisão que reconhece ou que não reconhece uma decisão proferida num outro Estado-membro como título executivo.

Esta duplicidade de sentidos da palavra "execução" aparece, com clareza, no consid. (32) Reg. 1215/2012: a "execução" de que o devedor deve ser informado "antes da primeira medida de execução" é a atribuição de exequibilidade a uma decisão proferida num Estado-membro. A versão inglesa do consid. (32) Reg. 1215/2012 é muito explícita sobre esta duplicidade de sentidos da palavra "execução", tanto que impõe que a pessoa contra quem o "enforcement" é pretendido seja avisada do "enforcement of a judgment given in another Member State", ou seja, impõe que a pessoa contra quem se pensa vir a intentar uma "execução" (= processo executivo) seja avisada da "execução" (= reconhecimento de exequibilidade) da decisão proferida num outro Estado-membro:

"In order to inform the person against whom enforcement is sought of the enforcement of a judgment given in another Member State, the certificate established under this Regulation, if necessary accompanied by the judgment, should be served on that person in reasonable time before the first enforcement measure".

3. Isto permite concluir que a notificação da "execução" (= reconhecimento de exequibilidade) de uma decisão não tem de coincidir com a citação para a "execução" (= processo executivo). Esta conclusão é bastante clara em algumas versões linguísticas do art. 43.º, n.º 1, Reg. 1215/2012, dado que as mesmas levam a entender que, quando se realiza a notificação da "execução" (= reconhecimento da exequibilidade) ao devedor, a "execução" (= processo executivo) pode ainda nem sequer estar pendente:

-- "Cuando se inste la ejecución de una resolución dictada en otro Estado miembro, el certificado expedido conforme al artículo 53 se notificará a la persona contra quien se insta la ejecución antes de la primera medida de ejecución";

-- "Where enforcement is sought of a judgment given in another Member State, the certificate issued pursuant to Article 53 shall be served on the person against whom the enforcement is sought prior to the first enforcement measure"; 

-- "Soll eine in einem anderen Mitgliedstaat ergangene Entscheidung vollstreckt werden, so wird die gemäß Artikel 53 ausgestellte Bescheinigung dem Schuldner vor der ersten Vollstreckungsmaßnahme zugestellt";

-- "În cazul în care se solicită executarea unei hotărâri pronunțate într-un alt stat membru, certificatul emis conform articolului 53 se notifică sau se comunică persoanei împotriva căreia se solicită executarea înainte de prima măsură de executare".

4. A conclusão de que o que o art. 43.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 impõe é que, antes do processo executivo, seja notificado ao devedor o reconhecimento da exequibilidade da decisão estrangeira é também aquela que decorre do seguinte comentário:

"O n.º 1 [do art. 43.º Reg. 1215/2012] impõe um dever de notificação. [...]. O n.º 1 corresponde a uma imposição do Estado de direito: para se poder defender de modo efectivo, o devedor deve saber, antes do mais, que tem de se defender [...]. A notificação fornece-lhe (indirectamente) o conhecimento de que está iminente uma execução forçada do título do Estado de origem no Estado requerido [...]. Em todo o caso, o n.º 1 não impõe que o devedor também deva ser notificado do pedido de execução forçada formulado pelo credor no Estado requerido" (Rauscher, EuZPR-EuIPR (2016)/Mankowski, Art. 43 Brüssel Ia-VO 1).

A distinção temporal entre a notificação da "execução" (= reconhecimento da exequibilidade) e a citação para a "execução" (= processo executivo) também é clara no seguinte comentário:

"Segundo o n.º 1 [do art. 43.º Reg. 1215/2012], a execução directa da decisão estrangeira exige a sua prévia notificação ao devedor, em conjunto com a certidão emitida segundo o art. 53.º e Anexo I" (Schlosser/Hess, EuZPR (2015), Art. 43 EuGVVO 3). 

5. Em suma: o que o art. 43.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 impõe é que o devedor tenha conhecimento de que a sentença que contra ele foi proferida está em condições de ser executada em qualquer Estado-membro. Assim, nada impede que a execução dessa sentença em Portugal siga a forma sumária do processo para pagamento de quantia certa (cf. art. 550.º, n.º 2, al. a), CPC) e que o executado só seja citado para a execução depois da penhora de bens (cf. art. 856.º, n.º 1, CPC).

Aliás, esta solução é a única que é compatível com o princípio da equiparação imposto pelo art. 41.º, n.º 1 2.ª parte, Reg. 1215/2012: "Uma decisão proferida num Estado-Membro que seja executória no Estado-Membro requerido deve nele ser executada em condições iguais às de uma decisão proferida nesse Estado-Membro".

MTS