"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/06/2016

Jurisprudência (362)


Recurso subordinado; dupla conforme


I. O sumário de STJ 10/3/2016 (1602/10.2TBVFR.P1.S1) é o seguinte:

1. Face ao disposto na parte final do n.º 5 do artigo 633.º do CPC, a ocorrência de dupla conforme, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 671.º do mesmo Código, mantém-se como requisito de inadmissibilidade do recurso de revista subordinado.

2. A lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afeta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do bem “saúde”.

3. Trata-se de um “dano primário” do qual pode derivar, além de incidências negativas não suscetíveis de avaliação pecuniária, a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para a atividade profissional habitual do lesado, impliquem, ainda assim, um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.

4. No caso de se verificar incapacidade permanente absoluta para a profissão habitual e para outras profissões dentro da área da respetiva preparação técnico-profissional, assiste ao lesado o direito a uma indemnização por essa perda de ganho correspondente ao capital produtor do seu rendimento anual, a uma taxa de juro na ordem dos 4% ou 5%, ponderando-se ainda um acréscimo da prestação na ordem dos 2% ao ano e o período de vida profissional previsível, reduzindo-se, porém, em 1/3, o montante de capital assim apurado, a título de compensação pela respetiva antecipação.

5. A par disso, assistirá ao lesado o direito a ser indemnizado, em sede de dano biológico, pelas limitações ou supressões de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.

6. No caso dos autos, embora o lesado apresente um défice funcional permanente genérico valorado em 37 pontos, atenta a sua idade (cerca de 50 anos), a natureza das lesões sofridos – afasia motora, alterações da memória, lentificação cognitiva, défices na função executiva, dificuldade em falar, perda da noção do tempo e local, perturbações mentais decorrentes de lesão cerebral orgânica, do foro psiquiátrico, valoráveis em 30 pontos –, não se vislumbra que o mesmo lesado possa vir a exercer uma profissão alternativa, fora da sua área de preparação técnico-profissional de modo a proporcionar-lhe um rendimento económico estável, além de se evidenciar ainda uma grave diminuição psico-somática para as tarefas pessoais do quotidiano.

7. Nessa medida, segundo os critérios de equidade e os padrões seguidos pela jurisprudência, afigura-se adequada uma indemnização base do dano biológico no patamar de € 60.000,00.

8. Porém, resultando dos factos provados que o lesado, naquele contexto psico-somático, necessita de cuidados de vigilância de terceira pessoa, importa ponderar o custo desta necessidade, a título de dano futuro previsível decorrente das limitações derivadas do dano biológico e inerentes ao exercício das tarefas pessoais em que o mesmo lesado ficou diminuído.

9. Nessas circunstâncias, atenta a expetativa de vida até aos 75 anos, tem-se por equitativo fazer acrescer àquela indemnização de base a quantia de € 20.000,00 para suportar o custo previsível com a assistência doméstica de terceira pessoa, fixando-se o total indemnizatório pelo dano biológico em € 80.000,00.
 


II. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão:

"[...] segundo o n.º 5 do artigo 633.º do CPC:

Se o recurso independente for admissível, o recurso subordinado também o será, ainda que a decisão impugnada seja desfavorável para o respetivo recorrente em valor igual ou inferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre. 

 
Este normativo consagra assim um desvio à regra da admissibilidade em função do valor da sucumbência, permitindo que o recorrente subordinado possa recorrer por dependência do recurso principal da contraparte, ainda que o não pudesse fazer autonomamente, dada a limitação derivada do valor da sucumbência.

No entanto, afigura-se que já não possa recorrer subordinadamente nos casos em que a decisão contra ele proferida se traduza em dupla conforme nos termos definidos no n.º 3 do artigo 671.º do CPC.

Neste sentido, Abrantes Geraldes [In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2016, p. 85.] escreve que:

«Contudo, esta possibilidade [de recurso subordinado] apenas abarca as situações de irrecorribilidade em função do valor. Já se esta decorrer de ausência de outros requisitos (v.g. por ser vedado o recurso para o Supremo atenta a existência de dupla conforme relativamente à concreta questão decidida desfavoravelmente ou por outro motivo de ordem legal), a interposição do recurso principal não pode ser invocada como fundamento para a admissão de recurso subordinado. Ou seja, parece-me que o disposto no n.º 5 apenas atenua os efeitos ligados ao pressuposto de recorribilidade em função da sucumbência, não tendo, por si, a virtualidade de abrir múltiplos graus de jurisdição, ainda que por via subordinada, quanto a decisões cuja irrecorribilidade encontre na lei outros motivos.»

Crê-se que seja esta a interpretação mais consentânea com a lei.

Com efeito, não se afigura que, face ao lapidarmente disposto na parte final do n.º 5 do artigo 633.º, se possa concluir pela ocorrência de lacuna a preencher por via analógica de modo a contemplar, para os mesmos efeitos, a irrelevância da dupla conforme, sendo de salientar que aquela disposição foi mantida aquando da introdução deste novo limite de recorribilidade da revista.

Por outro lado, salvo o devido respeito por opinião contrária, não nos parece que o princípio da igualdade das partes imponha, por si só, “a irrelevância do regime da dupla conforme no recurso subordinado”, como vem sustentado por Teixeira de Sousa inblogippc.blogspot.pt.[...], nem que ocorra tratamento discriminatório, tanto mais que a irrecorribilidade em função do valor da sucumbência e em virtude da dupla conforme, ainda que repousando em razões de economia da jurisdição dos tribunais superiores, em especial, do Supremo Tribunal de Justiça, assenta, numa e noutra hipótese, em pressupostos algo distintos: aquela, de cariz quantitativo e portanto acentuadamente formal; esta de natureza substancial, confinada ao âmbito da revista, ditada pela concordância dos julgados nas instâncias.

Nessa linha de entendimento, uma vez que a decisão do acórdão recorrido constitui dupla conforme em relação ao A., nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, [...], é forçoso concluir também aqui pela inadmissibilidade do recurso subordinado interposto pelo mesmo."


III. Conforme se refere na fundamentação do acórdão, não se acompanha a posição que nele foi adoptada quanto à inadmissibilidade do recurso subordinado. Para maiores desenvolvimentos, cf. Dupla conforme e recurso subordinado.

MTS