"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/07/2018

Jurisprudência 2018 (51)


Enriquecimento sem causa;
ónus da prova


1. O sumário de RL 15/2/2018 (3138/16.9T8FNC.L1-6) é o seguinte:

Quem tem de provar a ausência de causa justificativa [do enriquecimento] é aquele que efectuou a prestação (in casu, os AA.) e não o beneficiário da mesma (in casu, os RR.), pois a formulação do artigo 473º do C. Civil e as regras de distribuição do ónus da prova não consentem tal interpretação.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO. [...] 

c).– Caso o tribunal “ad quem” entenda que as aludidas quantias, no valor total de €11.000, não foram entregues a título de empréstimo, se os réus/reconvintes devem ser condenados, nos termos do artigo 473º do Código Civil, na sua restituição, no todo ou em parte?

Nesta parte, os apelantes defendem que «os réus/reconvintes sejam condenados, nos termos do artigo 473º do Código Civil, na sua restituição, no todo ou em parte, considerando que as mesmas {quantias} foram-lhes entregues injustamente e sem qualquer causa justificativa, à custa da diminuição do património dos autores, segundo as regras do enriquecimento sem causa».

A sentença recorrida apreciou a questão, do seguinte modo:

«Dispõe o artigo 473º do Código Civil que “1. Aquele que sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou." [...].

Desde logo importa realçar que o enriquecimento sem causa constitui uma das fontes de obrigações, com natureza subsidiária, ou seja, quando não seja possível subsumir a obrigação a qualquer outro instituto legal. Significa isto que só pode o empobrecido recorrer a esta fonte quando a lei não lhe faculte outros meios de reacção e que, caso o empobrecido se socorra indevidamente desde instituto, tal implica a falta de um requisito legal.

Nos termos deste preceito, são pressupostos do funcionamento deste instituto os seguintes (vide, neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, p. 467 e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol.I., pag. 381 e seguintes e ainda Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26.10.2009 e 09.12.2010, do Tribunal da Relação de Coimbra 02.11.2010, entre outros, todos disponíveis em www.dgsi.pt): 
 
a) – a existência de um enriquecimento, o qual consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, podendo traduzir-se quer em aumento do activo patrimonial, quer na diminuição do passivo ou ainda na poupança de despesas. Este enriquecimento poderá decorrer de um negócio jurídico, de um acto jurídico não negocial ou até de um simples acto material. 
 
b) – a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem, isto é, tal vantagem patrimonial resulta numa desvantagem económica de um terceiro, sendo esse terceiro a solicitar a restituição. Trata-se de um nexo causal entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro. 
 
c) – a ausência de causa justificativa para o enriquecimento, quer originária quer superveniente, no sentido de que a vantagem patrimonial deveria pertencer a outra pessoa. O enriquecimento carecerá de causa justificativa quando não exista uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitime o enriquecimento.

E nos termos do artigo 342º, nº1, do Código Civil, é sobre o autor, que se arrogue do título de empobrecido, que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um dos pressupostos legais que integram o referido instituto (vide, neste sentido, entre outros, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 02.11.2010.).

No caso concreto está em causa o comummente designado “enriquecimento por prestação”, sendo que, nesta situação, o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo que a ausência de causa jurídica deve ser definida em sentido subjectivo, como a não obtenção do fim visado com a prestação.

Quem tem de provar a causa é aquele que efectuou a prestação (in casu, os AA.) e não o beneficiário da mesma (in casu, os RR.)e nestes termos, quando o empobrecido não consegue provar a causa que invoca (ultrapassado que está o chamado “entendimento clássico do enriquecimento sem causa” que permitia que se atribuísse ao empobrecido o mesmo que lhe seria devido se provasse a causa invocada), deverá concluir-se pela não verificação de tal pressuposto legal do instituto do enriquecimento sem causa.

Com efeito, o conceito de enriquecimento sem causa o seu entendimento consolidada e resultante de evolução doutrinária, assenta na ideia de que a restituição da prestação efectuada depende da incidência dos acontecimentos concretos na causa que presidiu a essa prestação.

Conforme se sustenta no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 17.09.2013, disponível em www.dsgi.pt, “De facto, considerando-se que a antecipação argumentativa de que existiu uma causa para a realização da prestação, mas que esta se não verificou – rectius, que já não se verificava ou que se frustrou –, desencadeará, se provada, a obrigação de restituir o enriquecimento, por verificação da facti species interpretativa do artigo 473º do CC, já o mesmo não sucede quando a ausência dessa causa, e é o que aqui se passa, decorre de um non liquet da parte sobre a qual recai o ónus da alegação e da demonstração da existência dessa mesma causa. Neste último caso, a consequência de não se provar (ou de não se ter alegado) a causa de uma prestação não é a restituição desta por falta de causa, será, em princípio, no quadro da já mencionada “teoria das normas” [...], o accionar das chamadas “regras de decisão” – no caso, os artigos 342º, nº 1, e 516º, respectivamente do CC e CPC – próprias desse non liquet”.

Ora, no caso concreto, os AA. alegaram expressamente que a causa para a prestação foi a existência de um contrato de mútuo, causa essa que não provou. E não provando tal causa, seria sempre indiferente se os RR. provassem ou não a sua tese (para efeitos da acção principal), “porque a regra de decisão aplicável, o artigo 342º, nº 1, do CC, postula, face à incerteza, a decisão contrária àquele que invocou um determinado direito (aqui o direito a reaver, por via da nulidade do mútuo, o que entregou aos demandados) e não alcançou a prova dos factos constitutivos desse direito invocado” (acórdão supra citado).

Com efeito, o instituto de enriquecimento sem causa pressupõe a prova da existência de uma causa justificativa para a deslocação patrimonial do sujeito A. para o sujeito B., sendo que a obrigação de restituir assenta na efectiva inexistência, não verificação ou posterior desaparecimento da concreta “causa justificativa” que presidiu a essa prestação."

Ora, no caso concreto os AA. falharam em provar a sua tese da celebração do contrato mútuo e portanto falharam na prova da causa de atribuição e na sua afinal inexistência, não verificação ou desaparecimento.

Relembre-se que os AA. desenharam a relação material controvertida sempre no pressuposto da existência de um contrato de mútuo nunca aventando outra hipótese que não essa, mesmo quando, subsidiariamente se escudam no instituto do enriquecimento sem causa. Pura e simplesmente, os AA. sustentam que empresaram aquela quantia aos RR. e que se tal empréstimo for considerado nulo por vício de forma, que seja aquela quantia restituída por força da nulidade e, se assim não se entender, que, o seja ao abrigo do enriquecimento sem causa.

Ora, numa situação destas, a invocação de ter existido um mútuo sem que se tenha logrado prová-lo implica a absolvição do pedido, não fazendo sentido determinar a restituição do que foi prestado aos alegados mutuários com base no suposto enriquecimento sem causa destes.»

Na verdade, e tal como se desenvolve no Acórdão desta Relação de 04.06.2009 (com resenha jurisprudencial), a resposta negativa a um ponto da matéria de facto apenas significa que essa matéria ficou por provar e não que tenha ficado provado o facto contrário. Assim, por exemplo, se a autora alegou um mútuo, a que o réu contrapôs uma doação, a circunstância de não se ter provado nenhuma das teses em confronto - mas apenas o recebimento das quantias - não acarreta para o «enriquecido» a obrigação de restituição. A formulação do artigo 473º do C.C. e as regras de distribuição do ónus da prova não consentem tal interpretação, pois o legislador não estabeleceu uma presunção de que a causa não existe, quando se verifica o enriquecimento, fazendo impender sobre o réu a prova de que existe uma causa. Não o tendo feito, é incumbência daquele que pretende a restituição provar a ausência de causa, não bastando para o efeito o mero decaimento na prova do contrato invocado.

Na situação vertente, não se provou nenhuma das versões alegadas, quer pelos autores na petição, como pelos réus na reconvenção. E também não se demonstrou a «ausência de causa justificativa», para a deslocação patrimonial ocorrida. Assim sendo, falece a pretensão dos autores e apelantes em obter a condenação dos réus na restituição das quantias monetárias."
 
[MTS]