"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/07/2018

Jurisprudência 2018 (53)


Processo de insolvência; pedido infundado;
responsabilidade do requerente


I. O sumário de RC 20/3/2018 (2330/16.0T8LRA.C1) é o seguinte:

1. A dedução de pedido de declaração de insolvência ou a apresentação à insolvência só devem ter lugar quando existam fundamentos para tal.  

2. A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo. Assim, só existe a responsabilidade civil nele prevista, relativamente aos casos em que exista uma actuação dolosa, ainda que em qualquer das suas vertentes: directo, necessário ou eventual.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

C. Se a presente acção deve proceder por se verificarem os pressupostos da responsabilidade, decorrente da actuação do ora réu, ao propor, infundadamente, uma acção a requerer a declaração de insolvência da ora autora.

Como é óbvio, o sucesso do recurso nesta parte, estava na completa dependência do desfecho do mesmo, no que respeita ao recurso da matéria de facto.

Como resulta da anterior questão, resulta imutável a factualidade dada como provada e não provada em 1.ª instância, em consequência do que não se demonstrou a factualidade em que a autora assenta a obrigação de ser indemnizada pelo réu, com base em conduta dolosa da sua parte.

Trata-se de factos constitutivos do direito a que se arroga a autora, pelo que a sua não demonstração, em termos de decisão, lhes tem de ser desfavorável, em conformidade com o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Efectivamente, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, Lisboa, 2013, a pág.s 216 e 217 “à falta de qualquer estatuição especial sobre a matéria, o ónus da prova dos factos que consubstanciam os pressupostos da responsabilidade impende sobre o lesado, visto que eles são constitutivos do direito à indemnização.”.

Assim, não se tendo demonstrado os factos em que a autora assenta a sua pretensão, tem a presente acção de improceder, nos termos expressos na sentença recorrida, para os quais se remete, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

No entanto, acrescenta-se o que se segue.

A pretensão formulada pela autora funda-se no disposto no artigo 22.º do CIRE, de acordo com o qual:

“A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo.”.

Como refere Alexandre de Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 75, a “dedução de pedido de declaração de insolvência ou a apresentação à insolvência só devem ter lugar quando existam fundamentos para tal. O devedor não deve apresentar-se à insolvência apenas para obter alguma protecção perante os credores e estes não devem requerer a insolvência daquele apenas como meio de pressão para conseguirem o pagamento dos seus créditos”.

Tanto assim que, o CIRE, no seu artigo 20.º define os termos em que se confere a qualquer credor, o direito de peticionar a insolvência, relativamente a devedor, que se encontre numa das situações que configurem a existência de um dos factos-índices ou presuntivos nele mencionados.

Assim se visando evitar que quer o próprio devedor quer um seu credor lancem mão do processo de insolvência, com vista a obter uma satisfação individual, seja a protecção do devedor perante o conjunto dos seus credores, seja o simples almejar da satisfação de um crédito, individualmente considerado, em detrimento dos demais.

Apesar da polémica doutrinal e jurisprudencial acerca de tal questão, a redacção da parte final do artigo 22.º do CIRE não deixa margem para dúvidas: só existe a responsabilidade civil nele prevista, relativamente aos casos em que exista uma actuação dolosa, ainda que em qualquer das suas vertentes: directo, necessário ou eventual.

Neste sentido, veja-se A. Soveral Martins, ob. e loc. cit. e nota 79, de pág. 75; Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., a pág 215, que ali referem:

“A dedução em juízo de uma pretensão infundada constitui o impetrante em responsabilidade civil perante o requerido, desde que tenha agido com dolo ou culpa grave”.

Apesar de criticar a opção legislativa, Paula Costa e Silva, in O Abuso do Direito de Acção e o Art. 22.º do CIRE, in Estudos Dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, Vol. III, Universidade Católica Editora, 2011, a pág. 158, refere que “A lei faz depender a constituição de deveres de indemnizar por pedido infundado de insolvência do dolo do requerente. Nem sequer a negligência grosseira é relevante.”.

Acrescentando a pág. 164 que “Porque a parte requerente sabe que o meio de que lança mão desencadeia efeitos altamente gravosos para o requerido. Se assim é, exige-se que a parte cumpra escrupulosamente apertados deveres de cuidado antes de dar impulso à acção, Se o não fizer, incorrerá em responsabilidade por comportamento processual inadmissível.

Esta conclusão, seguramente anómala perante todos os dados, só poderá ser revertida perante uma alteração do desenho legal da responsabilidade do requerente de insolvência.”.

Em suma e não obstante o regime da insolvência não impor, ao invés, visa afastar, um desnivelamento dos deveres de cuidado do requerente em seu benefício, só devendo, este, lançar mão de tal expediente/pedido, desde que verifique se estão preenchidos os apertados requisitos para tal exigidos e os mencionados deveres de cuidado antes de dar impulso à acção, o certo é que, na actual redacção do artigo 22.º do CIRE, apenas se configura a existência de responsabilidade civil e inerente obrigação de indemnizar, em caso de actuação dolosa.

Ora, volvendo à situação sub judice a autora não demonstrou os factos em que assacava ao réu a actuação dolosa, sem o que, reitera-se, não pode haver responsabilidade civil por parte deste.

Por outro lado, como decorre dos itens 3.º a 5.º dos factos provados, efectivamente, a autora era devedora perante o ora réu em resultado de rendas vencidas, tendo-lhe pago a quantia ali referida, na sequência do que o réu declarou desistir do pedido no processo de insolvência.

Este facto, conjugado com a não demonstração dos factos dados como não provados na presente acção, acarretou que, igualmente, na acção em que era pedida a insolvência da ora autora, inexista factualidade dada como provada e não provada.

Assim, apesar de se saber o que o ora réu ali alegou – e para além da factualidade dada como não provada na presente acção – desconhece-se se havia ou não motivos que fundassem o pedido de declaração de insolvência, designadamente a veracidade dos factos alegados com vista à demonstração dos factos-índice previstos no artigo 20.º, n.º 1, do CIRE, o que, na prática, inviabiliza que se conclua estarmos perante a dedução de um pedido infundado de insolvência, na perspectiva da presente acção, pelo que o recurso ora em análise, não pode obter vencimento, sendo, por isso, de manter a decisão recorrida.

Consequentemente, também, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.
 
III. [Comentário] O acórdão decidiu de acordo com a lei e, portanto, bem.

Numa perspectiva de iure condendo, não seria certamente impossível que o parâmetro de aferição da responsabilidade do requerente da insolvência fosse, quanto ao elemento subjectivo do tipo, aquele que também vale para a litigância de má fé: o dolo ou a negligência grave (cf. art. 542.º, n.º 2 caput, CPC). 
 
MTS