"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/07/2018

Jurisprudência 2018 (52)


Processo de insolvência; qualificação da insolvência;
audição dos interessados; nulidade processual
 

1. O sumário de RP 22/3/2018 (7882/16.2T8VNG-B.P1) é o seguinte:

Após os Pareceres do Administrador da Insolvência e do M.P. e antes de decidir sobre a qualificação da insolvência, devem todos os interessados (nomeadamente o credor cujas alegações deram início ao incidente de qualificação de insolvência) ser previamente ouvidos, sob pena de ocorrer uma irregularidade que, por poder influir na apreciação da causa, constituir nulidade, nos termos do artigo 195º, nº 1 do CPC.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Nos termos estabelecidos pelos artigos 185º e seguintes do CIRE, a insolvência é qualificada com culposa ou fortuita, dispondo o artigo 186º sobre os casos em que deve ser qualificada como culposa.

De facto, dispõe o artigo 186º, n 1, do CIRE que «A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência».

Estatuindo o nº 2 do mesmo preceito sobre os casos em que a insolvência é sempre considerada culposa em virtude da prática, pelos seus administradores, de actos ali identificados.

Por seu turno, no nº 3 do artigo 186º do CIRE consagra-se a presunção de existência de culpa grave: «Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor (...) tenham incumprido: a) o dever de requerer a declaração de insolvência».

Resulta, assim, da exegese do normativo transcrito constituírem requisitos da insolvência culposa: i) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; ii) a ilicitude desse comportamento; iii) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); iv) o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

E, para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE veio consagrar o denominado duplo sistema de presunções legais, sendo que o nº 2 da referida norma contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente; por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum de culpa grave desses administradores.

Deste modo, em relação às presunções estabelecidas nas várias alíneas do nº 2, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.

Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato.

Logo, aquele identificado nº2 prevê situações que, a verificarem-se, impõem que se qualifique, necessariamente, a insolvência como culposa, sem necessidade de efectuar juízo casuístico para efeitos de qualificação da insolvência. [...]

Por força do referido artigo 188, nº 1, a lei atribui a «qualquer interessado» a legitimidade para intervir no incidente de qualificação de insolvência, deduzindo-o, munido de informação que permita a indagação e apuramento dos pressupostos da procedência do incidente.

E seria no mínimo, ilógico que apenas conferisse tal legitimidade de dedução do incidente, retirando-lhe em momento posterior tal legitimidade, deixando-o, conhecedor de factos com que fundamentadamente ocasionou a abertura do incidente, à margem do seu apuramento, concretamente, omitindo a notificação dos pareceres a que alude o nº 5 do artigo 188º CIRE. Vide Ac TRLisboa de3-10-2017, Proc. 2774/15.5T8FNC-B 7ª Secção, disponível in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/.

Conforme resulta do disposto no artigo 188.º, n.º 5, do C.I.R.E. “Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insusceptível de recurso”.

Ora, no caso em apreço, o tribunal recorrido, considerando que o administrador da insolvência e o Ministério Público propuseram a qualificação da insolvência como fortuita, proferiu de imediato decisão nesse sentido, tendo sido omitida qualquer notificação à Recorrente do teor desses pareceres. [...]

***
 
Feitas estas considerações, as quais, recuperam, em parte, aquelas feitas em sede de decisão da reclamação, desde já adiantamos que não concordamos com a decisão recorrida quando afirma que não foi preterida qualquer formalidade.

Efectivamente, no respeito dos princípios contidos nos artigos 20º da CRP e artigos 3º, nº3 e 17º do CIRE, deve ser assegurado o princípio do contraditório, ouvindo-se todos os interessados sobre a matéria e, no caso, conforme já foi adiantado, deveria o Tribunal recorrido notificar a ora Recorrente do teor daqueles pareceres dando a esta a oportunidade de refutar o alegado nesses pareceres.

Acresce que, conforme refere Rui Estrela Oliveira [
rabalho final do curso de pós - graduação em Direito das Empresas, do IDET- Instituto de direito das empresas e do Trabalho, da Faculdade de Direito de Coimbra, apresentado em Dezembro de 2008 perante o mestre João Labareda], as alegações a que se refere o artigo 188º do CIRE integrarão necessariamente matéria de facto: os factos que o interessado julgar relevantes para a decisão de qualificação e que, no seu entender, se poderão subsumir às normas contidas no artigo 186º do CIRE.

Estes factos devem ser alegados com um grau de concretização adequado ao exercício do direito de contraditar que é conferido aos restantes intervenientes, designadamente aos visados pelo incidente. Daí que não repugne que possa ser proferido despacho de aperfeiçoamento a convidar o interessado a concretizar os factos deficientemente alegados, sob pena de não se poder considerar, em sede de selecção de matéria de facto (arts 188º7 e 136º, nº3, do CIRE) as alegações em causa como contendo matéria de facto relevante para a decisão da causa (artigos 17º do CIRE, 5º e 590º, nº4 do CPC).

Apresentadas as alegações, o apresentante passa a ser considerado parte processual e, como tal, deve ter personalidade judiciária, capacidade judiciária, legitimidade e deve fazer-se representar por advogado. Ou seja, devem estar preenchidos os pressupostos processuais relativamente às partes, tal e qual qualquer parte civil em processo declarativo civil (conforme o disposto nos artigos 17º do CIRE, 5º a 13º e 21 º a 26º do CPC).

Todavia, conforme resulta do nº5 do artigo 188º do CIRE, as peças processuais centrais deste incidente são aquelas que o administrador da insolvência e o Ministério Público estão obrigadas a apresentar, nos termos dos nºs 2 e 3 do art. 188º do CIRE, sem prejuízo de os interessados ao alegarem apresentarem os seus meios de prova e do disposto nos artigos 302º e 303º do CPC, por força da remissão do artigo 188º, nº7, para o artigo 134º, nº1, do CIRE e deste para o disposto no artigo 25º, nº2, todos do CIRE.

De resto, não obstante os pareceres do Senhor Administrador da Insolvência e do Ministério Público constituírem, como resulta dos nºs 5 e 6 do artigo 188º do CIRE elementos relevantes na decisão do incidente de qualificação de insolvência- e na sua tramitação - é nosso entendimento, que na hipótese de coincidirem os pareceres do administrador e o do Ministério Público na proposta de qualificação da insolvência como fortuita, o tribunal não fica vinculado a ela, ainda que, se decidir em conformidade, a decisão seja irrecorrível.

Este entendimento sai reforçado pela actual redacção do nº5 do artigo 188º do CIRE, (anterior nº 4), porquanto, aí se refere que “ coincidindo os pareceres do administrador e o do Ministério Público na proposta de qualificação da insolvência como fortuita, o tribunal pode proferir decisão de imediato nesse sentido”, enquanto na anterior redacção, uma vez coincidentes os pareceres do administrador e o do Ministério Público na proposta de qualificação da insolvência como fortuita, estatuía-se o proferimento pelo juiz de decisão nesse sentido. Agora esse aparente imperativo foi convolado para uma simples faculdade - Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, artigo 188º CIRE.

Não obstante, não se ignora que se o juiz decidir em conformidade essa decisão é irrecorrível.

E também não podemos deixar de ter presente o poder oficioso do juiz consagrado no artigo 11º do CIRE, do qual, decorre que no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos não alegados pelas partes, o que, significa que o juiz, por sua iniciativa pode investigar livremente esses factos, bem como, recolher provas que entender convenientes. Tudo isto, sem prejuízo de certos efeitos cominatórios fixados imperativamente na lei.

E, a propósito, urge assinalar que o juiz, também na qualificação da insolvência, deve atender a todos os elementos assentes no processo, ainda que não tenham sido alegados ou atendidos nos pareceres do Senhor Administrador da Insolvência e do Ministério Público - neste sentido, consultar AC. Rel. Lx., de 27-11-2007, in CJ, V, pág 104, citado na anotação ao artigo 188º do CIRE, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda.

Consequentemente, no caso dos autos a falta de notificação à Recorrente do teor do parecer do Senhor Administrador da Insolvência e da promoção do Ministério Público e a falta de audição por qualquer outro meio da Recorrente quanto ao teor dos mesmos, traduz uma omissão de um acto susceptível de inquinar todo o processado ulterior, incluindo a sentença proferida, porquanto, impediu a ora recorrente de refutar, querendo, o conteúdo desses pareceres e na medida em que, a eventual posição da ora recorrente sobre aqueles pareceres não foi ponderada pelo juiz.

Por último, refira-se que sempre que um despacho não se pronuncia expressamente sobre uma infracção processual anterior não se pode/deve dizer que considerou indirecta e implicitamente que não existia tal infracção processual; mas antes e apenas, pura e simplesmente, que não se pronunciou sobre tal questão e objecto processual, pelo que, em conclusão, até ao trânsito do despacho – que “parece” cobrir a infracção processual – pode a infracção ser suscitada e conhecida, não estando o seu conhecimento, nestes estritos termos, vedado pelo esgotamento do poder jurisdicional, nem representando uma violação de caso julgado formal anterior (lembra-se, a infracção/nulidade tem que ser suscitada até ao trânsito do despacho que “parece” cobrir a infracção processual). Neste Sentido e citando Lebre de Freitas, ver Ac. Relação de Coimbra, Processo nº 1507/11.0TBPBL-A.C1, Relator:Barateiro Martins, data do Acordão:25-02-2014

É justamente o caso dos autos: a nulidade, respeitante a uma infracção processual anterior não foi expressamente apreciada na decisão que qualificou a insolvência, limitando-se o Tribunal recorrido a referir que os argumentos da requerente não permitiriam qualificar a insolvência como culposa, sem se referir concretamente a esses factos em sede de decisão sobre a questão de facto.

Concluindo: após o parecer do administrador da insolvência e a promoção do M.P. concordantes no sentido da qualificação da insolvência como fortuita, deve ser assegurado o princípio do contraditório, ouvindo-se os interessados processuais sobre a matéria, após o que caberá ao juiz do processo proceder a um juízo crítico sobre a legalidade desses parecer e promoção, nomeadamente tendo em conta a posição sobre a matéria dos diversos interessados processuais, e consequentemente decidir sobre a qualificação da insolvência. (neste sentido, ver também Ac TR Évora de 10-02-2010, Proc nº 1086/08.5TBSLV-B.E1).

Em face das considerações expostas, procede assim a arguida nulidade de omissão de notificação dos interessados nos autos, do parecer do Sr. Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., omissão essa que pode influir na apreciação da causa (art.°195º do CPC), pelo que, se revoga o despacho recorrido e se anulam os actos praticados no Incidente de Qualificação da Insolvência, após a junção aos autos do parecer do Sr. Administrador da Insolvência e da promoção do M.P., nomeadamente a decisão de qualificação do incidente."
 
[MTS]