"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/07/2018

Jurisprudência 2018 (56)


Cabeça de casal; execução;
ilegitimidade

1. O sumário de RP 11/4/2018 (4459/12.5TBMAI-A.P1) é o seguinte:

I - Se o processo de inventário aberto por óbito do de cujus, no qual foi nomeado como cabeça de casal o exequente, foi extinto, por inutilidade superveniente da lide, face a acordo extrajudicial de partilha, cessa a função de cabeça de casal e, como tal, é o mesmo parte ilegítima para instaurar acção executiva.
 
II - Trata-se de uma excepção dilatória típica e insuprível, de conhecimento oficioso, determinante da absolvição do executado da instância.
 
III - O chamamento de todos os herdeiros ao processo executivo, constituiria um acto inútil.
 
IV - Após a partilha extrajudicial, pode ocorrer uma partilha adicional, quando se venha a ter conhecimento de algum bem omitido, mas o cabeça de casal tem de o fazer observando os requisitos exigidos no artº 2089º do CCivil.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"Alega o exequente/apelante que o T. a quo deveria ter determinado que, este suprisse a falta do pressuposto processual – ilegitimidade do cabeça de casal - in casu, convidando o exequente a chamar aos autos, os demais herdeiros.

Ora, perante a oposição à execução, o juiz recebe-a, nos termos do artº 817º do CPC (actualmente artº 732º do CPC) e declara suspensa a execução, nos termos do artº 818º/2 do CPC (actualmente artº 733º/2 do CPC) e determina que o exequente seja notificado para contestar.

Foi isso que foi feito por despacho de fls. 34 dos autos.
 
O exequente, cabeça-de-casal contestou, conforme consta de fls. 38 e segs. dos autos.

No despacho saneador, o Mmº Juiz a quo entendeu que, em face das excepções invocadas na oposição à execução, haveria que efectuar prova, pelo que, relegou para momento ulterior a decisão sobre as mesmas.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e quando o Mmº Juiz se preparava para responder à matéria de facto, proferiu o seguinte despacho:

“[…] Acontece que, depois de melhor analisada a matéria em causa nos autos e de consultado o processo 964/11.9TBMAI que correu termos no 1º juízo cível deste tribunal (que se consigna ter sido consultado pela signatária via citius) entendemos que existe questão prévia que obsta ao conhecimento do mérito da causa e que contende com a legitimidade do exequente para instaurar a presente acção e que urge conhecer de imediato.

Porque assim é, consignar-se-ão
infra os únicos factos que relevam para a decisão da legitimidade activa para instaurar a presente execução, a qual se trata de questão prévia que ainda não está decidida e que se passará a proferir, de seguida e de imediato, pois que obstaculiza ao conhecimento da restante factualidade”.

E, de seguida, passaram a enunciar-se os factos provados e respectiva fundamentação, proferindo-se a sentença, de imediato.

Assim, tendo em conta a posição das partes, em que o exequente entende ser parte legítima e o executado entende que aquele é parte ilegítima, o recorrente entende que o Mmº Juiz a quo deveria tê-lo convidado a, no saneador ou antes da audiência de julgamento, suprir tal falta, assegurando tal legitimidade com a intervenção dos demais herdeiros.

Será assim?

De acordo com o artº 6º/2 do CPC, “o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo”.

É verdade que o dever de gestão processual tem de ser exercido com conta, peso e medida e não de forma discricionária, porquanto tem como limites inultrapassáveis o respeito pelos princípios da igualdade das partes e do contraditório, da aquisição processual de factos e da admissibilidade dos meios probatórios de tal modo que, ultrapassada qualquer destas barreiras o seu exercício torna-se ilegítimo e, como tal motivador de recurso (anotação ao artº 6º do Novo Código de Processo Civil Anotado, Abílio Neto, 3ª ed. Revista e ampliada).

No entanto, atendendo ao que dispõe o artº 2091º do CCivil, é óbvio que o cabeça de casal, ora apelante, não poderia propor a acção de execução para cobrança de dívida do de cujus desacompanhado dos demais herdeiros e, por isso, o T. a quo poderia, de facto, ao abrigo da supra citada disposição legal – artº 6º do CCivil – convidar o exequente/apelante a sanar a sua ilegitimidade activa, chamando aos autos os demais herdeiros, não fosse dar-se o caso, tal como decorre da matéria de facto provada, de a função de cabeça de casal se encontrar extinta.

Com efeito, atento o disposto no artº 2079º do CC, o cabeça de casal tem a seu cargo a administração da herança até, à sua ultimação e partilha, a qual respeita aos bens próprios do falecido.

Ora, como decorre da factualidade provada, o processo de inventário aberto por óbito de D…, no qual foi nomeado como cabeça de casal o exequente, foi extinto, por inutilidade superveniente da lide, uma vez que se obteve acordo extrajudicial de partilha (decisão transitada em julgado, proferida em 31/05/2012).

Deste modo, tendo ocorrido partilha extrajudicial dos bens do falecido, a função de cabeça de casal de que o exequente agora se arroga mostra-se extinta, nos termos da citada disposição legal, ficando, assim, o mesmo destituído de legitimidade activa para instaurar a acção executiva, o que se traduz numa excepção dilatória típica e insuprível, de conhecimento oficioso, determinante da absolvição do executado da instância (artºs 278º nº 1 al. d), 576º nº 1 e 2, 577º al. e), 578º, 591º nº 1 al. b) todos do CPCivil) e, como tal o pretendido chamamento de todos os herdeiros a este processo constituiria um acto inútil, o que como se sabe é proibido por lei (artº 130º do CPCivil).

Mas, mesmo que assim não se entendesse, sempre a presente acção estaria votada ao insucesso.

Com efeito, pode, de facto, ocorrer uma partilha adicional quando após a partilha extrajudicial se venha a ter conhecimento de algum bem omitido (artº 2122º do CCivil), in casu, seria um alegado activo da herança – o cheque dado à execução.

Só que o cabeça de casal tem de o fazer observando os requisitos exigidos no artº 2089º do CCivil, ou seja, o cabeça de casal apenas pode cobrar as dívidas da herança quando essa cobrança possa perigar com a demora ou quando o pagamento seja feito espontaneamente.

Ora, nem tal foi alegado nem tal se provou em audiência de julgamento, como vem referido na sentença recorrida, atenta a discordância dos demais herdeiros inquiridos sobre essa mesma dívida.

E daí, também que, com este fundamento se considere o cabeça de casal, parte ilegítima para propor a acção executiva."
 
3. [Comentário] O caso não pode ter uma solução distinta daquela que foi dada pela RP, dado que a ilegitimidade singular, ao contrário da ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário, não é uma excepção dilatória sanável. 
 
Assim, tendo o cabeça de casal proposto a execução enquanto tal (e não como um dos herdeiros do de cuius), está necessariamente fora de causa o convite do juiz à sanação do vício que é imposto pelo art. 6.º, n.º 2, CPC.
 
MTS