"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/07/2018

Jurisprudência 2018 (54)


Acção de demarcação; improcedência;
caso julgado


I. O sumário de RC 6/3/2018 (10324/15.7T8CBR.C1) é o seguinte:

1. - O recurso de apelação apenas serve para reapreciação de decisão judicial proferida no próprio processo onde é interposto, não podendo versar sobre decisões judiciais proferidas fora desse processo, nem sobre decisões já tornadas definitivas pelo trânsito em julgado.

2. - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, com objeto parcialmente coincidente ou prejudicial face ao da ação posterior, visando evitar que a relação ou situação jurídica material definida pela sentença anterior seja definida de modo diverso por outra sentença, não se exigindo a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

3. - Só ocorre autoridade de caso julgado na medida/limite do que foi apreciado e decidido, não obstando a que em novo processo seja decidido aquilo que não ficou definido no caso julgado anterior.

4. - Se o autor interpôs ação de reivindicação, com pedido cumulado de demarcação, e este pedido, expressamente apreciado, foi julgado improcedente, com trânsito em julgado, a autoridade desse caso julgado impede que a mesma parte venha depois intentar ações de demarcação com o mesmo objeto e nos mesmos moldes, ainda que só alguns dos réus sejam os mesmos.

5. - Doutro modo, tendo a matéria de demarcação sido objeto de julgamento anterior, um novo julgamento, sem novos elementos, redundaria na repetição da decisão transitada ou na sua negação, com a consequente incerteza/insegurança para a ordem jurídica.

6. - Pressupondo a ação de demarcação diferentes prédios contíguos carecidos de delimitação, é inviável o estabelecimento da linha limite predial – escopo da ação – se algum dos terrenos em confronto não estiver suficientemente localizado geo-espacialmente, por não se saber onde se situa concretamente in loco.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como [...] salientado em Ac. STJ de 10/05/2012 ([Proc. 725/04.1TBSSB.L1.S1 (Cons. Fernando Bento), em www.dgsi.pt]):

«(…) desde que se verifique a confinância de prédios pertencentes a diferentes proprietários e inexista linha divisória entre eles (seja porque ela, embora indiscutida, não está marcada, seja porque é objecto de controvérsia ou até porque desconhecem a sua localização) está aberta a porta para a actuação do direito de demarcação.

IV - Nos termos em que se encontra regulada a demarcação no art. 1354.º do CC – e uma vez verificados os pressupostos do exercício do respectivo direito – não há lugar à improcedência da acção, no sentido de desatender a pretensão de definir os limites dos prédios, devendo a mesma ser resolvida (i) pelos títulos de cada um dos proprietários; (ii) na sua impossibilidade, pela posse destes ou outros meios de prova; (iii) ou ainda dividindo a área em litígio por cada um em partes iguais.

V - Logo, o autor só tem que alegar e provar os factos constitutivos do direito à demarcação, a saber: a confinância dos prédios, a titularidade do respectivo direito de propriedade na pessoa do autor e do demandado e a inexistência, incerteza, controvérsia ou tão só desconhecimento sobre a localização da respectiva linha divisória.

VI - Assim, controvertida a localização da linha de demarcação, não pode deixar de ser delimitada uma área de terreno que pertence a um prédio ou a outro, consoante a localização que vier a prevalecer, de acordo com os critérios definidos pelo art. 1354.º, n.º 1, do CC, ou a ambos em partes iguais conforme prescrito pelo n.º 2 do mesmo normativo.».

In casu, na anterior ação de reivindicação, a decisão (já transitada) apenas a julgou parcialmente procedente, condenando no reconhecimento de ser a A. proprietária de um terreno, com área e localização não exatamente apuradas, e na respetiva restituição.

No mais, ocorreu indubitável absolvição do pedido, assim se julgando a ação improcedente, após apreciação, quanto ao pedido de demarcação também deduzido, termos em que não faltou, mesmo nesta parte, o necessário “pronunciamento judicativo”.

Foi explicado, assim, em sede de fundamentação, que «(…) estão em condições de proceder o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio que reivindica, embora sem a definição dos seus contornos e área, e a reposição da situação anterior», mas sem «elementos que permitam definir o conteúdo do prédio da Autora», a qual não logrou «demonstrar o conteúdo do seu direito de propriedade sobre o prédio, pelo que a acção procede apenas na medida do reconhecimento do seu direito de propriedade, sem a definição do seu âmbito», estando o Julgador ciente «das dificuldades dos Réus em restituir algo que não está delimitado, mas essa dificuldade deverá ser ultrapassada pela conjugação de esforços deles e da Autora, usando o documento [...] e a pessoa que os pode ajudar nessa matéria. Doutro modo, estarão todos sujeitos à incerteza do “non liquet” derivado da acção» ([...]).

Em suma, perante um expresso pedido de demarcação, houve expresso julgamento (o que foi reiterado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, após arguição de nulidade da sentença) de improcedência desse pedido.

Ainda que houvesse erro de julgamento sobre essa matéria, o que não está – nem poderia estar – aqui em causa, a parte (A.), se discordava desse veredito de improcedência do pedido de demarcação, tinha de pedir a respetiva reapreciação nos próprios autos – interpondo os recursos possíveis, designadamente de constitucionalidade, se inconstitucionalidade houvesse suscitado e quisesse ver apreciada – e não pedir nova reapreciação da matéria em subsequentes ações judiciais, fundadas novamente em indefinição de estremas e com repetidos pedidos de demarcação.

Assim, a pretensão de demarcação da A. consubstancia caso anterior já julgado na ação n.º 2275/04.7TBCBR, com cuja decisão de improcedência acabou por se conformar, posto que ocorreu trânsito em julgado.

E, se não há total identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, afastando a exceção do caso julgado, é patente que a matéria referente à demarcação já foi julgada anteriormente, pelo que um novo julgamento dessa matéria, a ser admitido, nos mesmos moldes do anterior – designadamente, sem quaisquer novos elementos –, redundaria na mera repetição da decisão transitada (improcedência da ação) ou na sua negação/contradição (procedência da ação), o que seria inaceitável, mormente pela incerteza/insegurança que traria à ordem jurídica.

A tal opõe-se a aludida autoridade de caso julgado ([...]), preconizando a utilidade (impedindo a inutilidade) do anterior julgamento, ademais, de caráter definitivo.

Em suma, compreendendo-se, de algum modo, a posição em que a A./Apelante se encontra, não pode atribuir-se-lhe, pelos motivos enunciados, razão nesta sede recursiva ([Se a ação de demarcação pressupõe diferentes prédios contíguos carecidos de delimitação, esse estabelecimento da linha de “fronteira” só pode ocorrer se os prédios/terrenos em confronto estiverem suficientemente localizados geo-espacialmente, para o que terá de saber-se onde se situa concretamente, no terreno, cada um deles, apenas havendo de delimitá-los entre si. É esta a “economia” da ação de demarcação. Por isso, no caso, importaria definir – previamente à demarcação e para que esta fosse viável – o concreto objeto predial a restituir, um terreno/imóvel determinado/situado no local (mesmo se sem apuramento exato da sua área), o que a A./Recorrente ainda não mostrou ter obtido, elemento novo sem o qual não seria possível operar a demarcação pretendida. Assim, salvo o devido respeito, enquanto não se souber onde concretamente se encontra, no local, o prédio em questão (e caberia à impetrante mostrá-lo), não será possível a sua demarcação/delimitação.])."

III. [Comentário] a) O acórdão da RC recai sobre um problema interessante: qual é o valor de caso julgado de uma decisão que considera improcedente um pedido de demarcação entre dois prédios?

Para se procurar responder a esta questão, importa distinguir três situações:

-- O pedido de demarcação formulado pelo autor improcedeu, porque foi julgado procedente um idêntico pedido (reconvencional) formulado pelo réu;

-- O pedido de demarcação formulado pelo autor e o pedido reconvencional deduzido pelo demandado improcederam ambos, porque o tribunal ficou em dúvida sobre as estremas dos prédios confinantes, pelo que, conforme o estabelecido no art. 1354.º, n.º 2, CC, dividiu a área controvertida ao meio;

-- O pedido de demarcação formulado pelo autor improcedeu, porque o autor não fez prova da demarcação dos prédios.

Na primeira e na segunda hipótese, a resposta é indiscutível: há caso julgado sobre a demarcação dos dois prédios. Na terceira, a solução não é nada evidente, dado que uma decisão de improcedência de um pedido de demarcação continua a deixar em dúvida quais são as estremas dos prédios confinantes e as respectivas áreas dos mesmos.

b) Se se vê correctamente o problema em análise no acórdão da RC, a especialidade da improcedência do pedido de demarcação formulado pelo autor reside em que, ao contrário do que sucede na generalidade das situações, dessa improcedência não pode resultar nada de definitivo e de positivo. Noutros termos: sabe-se que a demarcação alegada pelo demandante com o fundamento por ele invocado não é a correcta, mas não se sabe nem se outro fundamento não pode confirmar afinal essa demarcação, nem, não sendo essa a demarcação correcta, qual é, então, a demarcação certa entre os dois prédios. 

A especialidade do caso reside em que a improcedência do pedido de demarcação do demandante tem apenas um efeito negativo: a demarcação não é a alegada por esta parte com o fundamento por ela alegado. Este resultado, todavia, está muito longe de satisfazer os interesses dos proprietários dos terrenos confinantes: não é, se assim se pode dizer, algo com o qual esses proprietários possam viver. 

Sempre que o pedido formulado pelo demandante não seja considerado procedente, da acção de demarcação só pode resultar um efeito positivo (e definitivo) se o demandado deduzir, através da reconvenção, um correspondente pedido de demarcação (cf. art. 266.º, n.º 2, al. d), CPC) e se suceder uma destas situações:

-- O pedido formulado pelo demandante improcede e procede o pedido reconvencional do demandado;

-- Nenhum destes pedidos procede porque se verifica quanto a ambos um non liquet e o tribunal marca as estremas dos prédios de acordo com o critério do art. 1354.º, n.º 2, CC.

A este propósito uma nota. Ao contrário do entendido no acima referido STJ 10/5/2012, não parece que o disposto no art. 1354.º, n.º 2, CC possa operar sem um pedido reconvencional do demandado, ou seja, sem que o tribunal tenha de escolher entre duas demarcações distintas alegadas por cada uma das partes. A dúvida sobre a demarcação invocada apenas pelo demandante nunca pode conduzir a um non liquet que justifique a divisão em partes iguais do terreno em litígio.  

c) Importa perceber por que razão da decisão de improcedência de uma acção de demarcação não é possível decorrer um resultado positivo. Talvez a resposta possa ser esta: a acção de demarcação é, no fundo, uma acção de divisão de uma parcela de terreno que é litigiosa; logo, uma decisão de improcedência nada define quanto a essa divisão, pois que, se a divisão dessa parcela era duvidosa antes da decisão de improcedência, continua a ser duvidosa depois dessa decisão. 

A situação altera-se se for formulado um pedido reconvencional pelo demandado, dado que então a parcela de terreno em litígio ficará necessariamente para uma das partes (se apenas um dos pedidos proceder) ou será repartida entre as partes (se ambos os pedidos procederem parcialmente ou se houver um non liquet quanto a ambos os pedidos e o tribunal recorrer ao critério do art. 1354.º, n.º 2, CC). Quer dizer: a partir do momento em que há um pedido reconvencional do demandado ambas as partes concorrem à divisão da parcela de terreno litigiosa e, por isso, estão reunidas as condições para que se produza um resultado positivo (e definitivo) na acção de demarcação.
 
Em contrapartida, se não for formulado nenhum pedido reconvencional, há caso julgado sobre a decisão de improcedência do pedido do demandante, mas o que fica coberto pela força de caso julgado é apenas que o fundamento invocado pelo demandante não permite estabelecer nenhuma demarcação entre os prédios confinantes. Mas isto não constrói nada de positivo: continua a não se saber qual é afinal a demarcação entre os dois prédios confinantes.

Repare-se também que, ao contrário do que sucede na generalidade das decisões de improcedência, o demandado na anterior acção de demarcação em nada beneficia do caso julgado da anterior decisão de improcedência do pedido de demarcação. Como se referiu, esta improcedência, se deixa em dúvida quais são as estremas e a área do prédio do demandante, também deixa naturalmente em dúvida quais são as estremas e a área do prédio do demandado. O que para este demandado está assente com força de caso julgado é que nada está assente sobre essas estremas e essa área.

Não se descortina, por isso, qualquer interesse do demandado em invocar um caso julgado que deixa em dúvida a área do seu próprio terreno e que, por isso, em nada lhe é favorável. Mais: não é aceitável que esse demandado possa invocar esse caso julgado contra o demandante, dado que, se se pode admitir que ele pretenda ficar na dúvida sobre as estremas e a área do seu terreno, não pode impor essa opção ao demandante. Acrescente-se ainda que, como já se verificou, o demandado poderia ter obstado a este resultado se tivesse deduzido um pedido reconvencional de demarcação e se, por isso, tivesse vinculado o tribunal a decidir definitivamente as estremas dos prédios (nem que fosse segundo o critério do art. 1354.º, n.º 2, CC).

d) Se da decisão de improcedência do pedido de demarcação nada resulta de positivo (nem de definitivo) quanto às estremas e às áreas dos prédios confinantes, ter-se-á de aceitar que será sempre admissível uma nova acção de demarcação proposta pelo mesmo demandante contra o mesmo demandado. Apenas se exige, para evitar a excepção de caso julgado (cf. art. 580.º e 581.º CPC), que o demandante não repita os mesmos fundamentos que invocou na acção anterior.

Estranhamente, o acórdão da RC, ao analisar o caso sub iudice, coloca o problema no domínio da autoridade de caso julgado. Não era certamente isso que estava em causa na acção. O que se discute nesta acção não é se o demandante está vinculado a aceitar o resultado da primeira acção (é claro que está), mas se os demandados podem obstar à propositura de uma nova acção de demarcação pelo mesmo demandante. O problema não é, pois, de autoridade de caso julgado, mas de excepção de caso julgado (cf. art. 580.º e 581.º CPC). 

No caso concreto, o demandante vem solicitar que "os Réus sejam obrigados a concorrer para a demarcação do prédio da recorrente". O acórdão da RC, apesar de ter mostrado alguma compreensão pela situação dos demandantes, acabou por decidir que este fundamento não era suficiente para tornar admissível uma nova acção (ou seja, em termos técnicos, para afastar a excepção de caso julgado). 

Pode duvidar-se de que na presente acção não tenha sido invocado um fundamento distinto pelos demandantes, embora não se veja bem como é que esse fundamento poderia vir a ser julgado procedente. Se os demandantes pretendiam a colaboração dos demandados, talvez tivesse sido mais promissor começar por propor, nos termos dos art. 573.º a 575.º CC, uma acção destinada a obter dos demandados as informações necessárias para a demarcação dos prédios confinantes e, depois, utilizar essas informações para fundamento de uma nova acção de demarcação.

MTS