"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/07/2018

Jurisprudência 2018 (61)


Direito real de habitação periódica; direito de retenção;
graduação de créditos; venda executiva

1. O sumário de STJ 9/1/2018 (212/14.0T8OLH-AB.E1.S1) é o seguinte:

I - Apesar de não ter força obrigatória geral, como tinham os anteriores assentos, nem natureza vinculativa para os outros tribunais, o acórdão de uniformização constitui um precedente qualificado, de carácter persuasivo, a merecer especial ponderação, que se julgou suficiente para assegurar a desejável unidade da jurisprudência.

II - Daí que os tribunais só devam afastar-se da jurisprudência uniformizada em "decisões fundamentadas que ponham convincentemente em causa a doutrina fixada".

III - Não se verificando essa situação e sendo aplicável a mesma legislação e idêntica a questão fundamental de direito, não existe razão para afastar a jurisprudência fixada no AUJ de 12.03.1996.

IV - Assim, mostrando-se satisfeitos os requisitos previstos no art. 755º, nº 1, al. f), do CC, deve concluir-se pela eficácia dos direitos de retenção sobre as "fracções" que se prometeram comprar, independentemente da constituição da propriedade horizontal.

V - Com a venda do prédio em execução, os direitos de retenção passaram a incidir sobre o produto da venda do prédio (art. 824º do CC), mas na proporção do valor relativo da "fracção autónoma" ou do "direito real de habitação periódica" que cada um prometeu adquirir.

VI - A credora hipotecária, não interveniente no processo em que foi reconhecido o direito de retenção, é terceiro, mas um terceiro juridicamente interessado, uma vez que a sentença é susceptível de lhe causar um prejuízo jurídico.

VII - Não é, pois, invocável perante o credor hipotecário a sentença que, com trânsito em julgado, tenha declarado, em acção em que o credor hipotecário não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado.

VIII - Sendo o quadro normativo aqui aplicável diferente do que foi atendido no AUJ nº 4/2014 (a sentença que decretou a falência foi proferida em 09.12.1997) e tendo o incumprimento definitivo dos contratos promessa ocorrido em data anterior à declaração de falência (não constituindo negócios jurídicos em curso), não tem de ser observada a jurisprudência fixada naquele Acórdão uniformizador.

IX - Sendo aplicável o regime geral dos arts. 442º, nº 2, e 755º, nº 1, al. f), do CC, não está o direito de retenção aí reconhecido ao promitente-comprador dependente de a este ser reconhecida a qualidade de consumidor.
 


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Em Acórdão do STJ de 03.06.2003 foi apreciada questão idêntica à anteriormente referida, de os apartamentos detidos não integrarem fracções autónomas e não poderem, por isso (por serem coisas inalienáveis e impenhoráveis), ser objecto de direito de retenção.

Essa questão foi aí desatendida, afirmando-se [...]:

"Por um lado, o andar detido pelos reclamantes só não poderá ser alienado isoladamente, pois isoladamente só o poderá ser quando o imóvel penhorado for constituído em regime de propriedade horizontal. Até então, constitui parte desse imóvel, só com ele, na totalidade, podendo ser alienado. Mas daí resulta precisamente que pode ser alienado, embora não separadamente da parte restante do imóvel em que se integra. Por isso, também podia ser penhorado, de forma integrada no mesmo imóvel, como foi. Nessas condições, não obsta a lei a que possa ser, mesmo isoladamente, objecto de direito de retenção, criando até o mecanismo necessário para resolver o problema eventualmente suscitado pelo facto da sua integração no todo constitutivo do imóvel e pelo facto de o direito de retenção só abranger o aludido andar. É que, sendo os bens vendidos em execução transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, que portanto caducam, os direitos de terceiro que assim caducarem transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens (art.º 824º do Cód. Civil). Ora, como a sentença que reconheceu o direito de retenção o restringe, expressamente, ao andar prometido vender à reclamante, - não podendo em consequência alargar-se tal direito à parte restante do imóvel, que esta nem sequer detinha não podendo por isso recusar qualquer entrega dessa parte restante -, haveria que considerar que o direito dos reclamantes sobre o andar se transferira apenas para o valor deste, que obviamente teria de ser calculado para o efeito de apenas por ele ser efectuado o respectivo pagamento".

No que respeita a este último ponto, Calvão da Silva [Sinal e Contrato Promessa, 12ª ed., 185] assume idêntico entendimento, com apoio nas normas dos arts. 1416º, nº 1, e 824º do CC:

"Há, deste modo, uma sub-rogação do objecto do direito de retenção, na transferência para o produto da venda na proporção do valor da fracção ou do direito real de habitação periódica prometido comprar por cada um dos reclamantes. A não se entender assim, teríamos o absurdo da extensão do direito de retenção sobre uma fracção ou unidade de alojamento a todo o prédio, mesmo que a restante parte do imóvel não fosse detida por aquele promitente-comprador. Absurdo porque esse promitente-comprador não deteria a restante parte do prédio que devesse entregar a outrem, a mais da manifesta desproporcionalidade e inadequação perante o seu crédito, numa sobre-garantia de autotutela contrária à boa fé.

Termos em que os direitos de crédito garantidos por direito de retenção só poderão ser graduados na proporção do valor correspondente à «fracção autónoma» (ou ao «direito real de habitação periódica») objecto mediato do contrato-promessa e «retido» pelo reclamante".

Conclui-se, assim, como no aludido AUJ, pela eficácia dos direitos de retenção invocados pelos reclamantes, independentemente da constituição da propriedade horizontal.

Nos termos do art. 824º do CC, os bens vendidos em execução são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram (nº 2); estes direitos de terceiro que caducarem transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens (nº 3).

Assim, pelas razões referidas, com a venda do prédio em execução, os direitos de retenção passaram a incidir sobre o produto da venda do prédio, mas na proporção do valor relativo da "fracção autónoma" ou do "direito real de habitação periódica" que cada um prometeu adquirir.

Chegados a esta conclusão, ficam prejudicadas as questões invocadas pela recorrente que decorreriam do entendimento do acórdão recorrido de que a garantia do direito de retenção de cada reclamante incide sobre a totalidade do prédio.

É também manifesta a intempestividade da arguição de nulidade do próprio AUJ de 1996.

Acresce que a solução referida, de limitar a garantia do direito de retenção ao valor correspondente à "fracção" ou "direito real de habitação periódica", representa claramente um menos em relação ao que foi decidido no acórdão recorrido e, na prática, corresponde ao efeito que sempre ocorreria com a venda do prédio em processo de falência, transferindo-se a garantia do direito de retenção para o produto da venda, passando a incidir sobre este.

Neste caso, o produto da venda que serve de garantia a cada crédito reclamado deve corresponder proporcionalmente ao valor da respectiva "fracção" ou "direito real de habitação periódica".

O problema que pode colocar-se na graduação de cada um desses créditos é apenas quantitativo, pelo que o apuramento daquele valor pode ser efectuado em momento ulterior (art. 609º, nº 2, do CPC), à semelhança do que se decidiu no citado Acórdão de 03.06.2003.

5. Insurge-se ainda a recorrente por a decisão das reclamações de créditos dos pontos 24, 68 e 74 assentar no reconhecimento judicial anterior, em processos em que aquela não foi parte, pelo que as respectivas decisões não lhe são oponíveis. Assim, uma vez que os reclamantes desses créditos não alegaram outros factos, as suas pretensões têm de improceder.

Em tese, concorda-se com o entendimento da recorrente sobre a referida inoponibilidade.

A credora hipotecária, não interveniente no processo em que foi reconhecido o direito de retenção, é terceiro, mas um terceiro juridicamente interessado, uma vez que a sentença é susceptível de lhe causar um prejuízo jurídico, decorrente do facto de o crédito garantido pelo direito de retenção, ser graduado prioritariamente ao crédito garantido com hipoteca sobre o mesmo imóvel.

Nesse condicionalismo, a sentença que reconheça o direito de retenção, não pondo em causa a validade do crédito hipotecário, iria afectar o grau de garantia deste crédito e, assim, a sua consistência jurídica; perante essa sentença, o credor hipotecário não pode ser considerado um terceiro juridicamente indiferente [Como se afirmou no Acórdão do STJ de 27.05.2017 (com o mesmo relator deste); no mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 08.07.2003, de 20.05.2010, de 20.10.2011, de 18.02.2015 e de 24.11.2015].

Seria, pois, de concluir que "não é invocável perante o credor hipotecário a sentença que, com trânsito em julgado, tenha declarado, em acção em que o credor hipotecário não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado, inclusivamente a favor do promitente comprador do imóvel ou fracção" [Lebre de Freitas, Sobre a prevalência, no apenso da reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença, ROA Ano 66 (2006), Vol. II, 6].

Importa notar, porém, que, em contrário do que vem referido pela recorrente, na reclamação do ponto 68 (JJ), foram alegados factos suficientes para o reconhecimento do crédito e respectiva garantia – a celebração do contrato-promessa e respectivos termos, a tradição e o incumprimento por parte da promitente vendedora – factos esses que não foram impugnados, pelo que nada obstava, por isso, a que aqui pudessem ser aproveitados, à semelhança do que já acima se afirmou (ponto 2 desta fundamentação).

As reclamações dos pontos 24 e 74 não contêm realmente factos suficientes para o reconhecimento dos respectivos direitos. Remetem, contudo, para as sentenças que foram proferidas, pelo que poderia colocar-se a questão do aproveitamento dos factos que foram alegados nos correspondentes processos para o reconhecimento dos créditos e que as reclamações implicitamente pressupõem.

Mas o que nos parece decisivo, porém, é que os referidos créditos não sofreram qualquer impugnação. Por isso, nos termos do art. 196º, nº 2, do CPEREF (nº 4, na redacção introduzida em 1998), esses créditos sempre teriam de ser reconhecidos e com as garantias de que beneficiam."


[MTS]