"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/07/2018

Jurisprudência constitucional (127)


Impugnação da perfilhação; prazo
impugnação da paternidade; prazo


1. TC 7/6/2018 (308/2018) decidiu:

a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e da proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, consagrados nos artigos 13.º e 36.º, n.º 4, da Constituição, a norma, extraída do n.º 2 do artigo 1859.º do Código Civil, que estabelece que a ação de impugnação da perfilhação pode ser intentada pelo perfilhante a todo o tempo.

b) Não julgar inconstitucional a norma, extraída da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, que estabelece que a ação de impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe no prazo de três anos desde que teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir a sua não paternidade, não obstante a verificação de posse de estado de filiação (consolidados laços familiares entre o impugnante e o filho).
 

2. O acórdão tem dois votos de vencido:

"DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencida quanto à decisão de julgamento da inconstitucionalidade constante da alínea a) da Decisão, e respetiva fundamentação (cfr. II, 6. a 10.) – relativa à norma extraída do n.º 2 do artigo 1859.º do Código Civil, que estabelece que a ação de impugnação da perfilhação pode ser intentada pelo perfilhante a todo o tempo –, pelas razões que de seguida sucintamente se enunciam.

Em primeiro lugar, e quanto à questão prévia (cfr. II, 7.), por se ter dúvidas que o escrutínio da norma sindicada com base no princípio da igualdade seja efetuado à luz da «classificação suspeita» «filhos nascidos fora do casamento», proibida pelo n.º 4 do artigo 36.º da Constituição, por a norma respeitar à impugnação da paternidade – como se afirma no Acórdão, à impugnação do estado e não dos seus efeitos. E, neste pressuposto, o referido escrutínio haveria de se reportar ao impugnante – perfilhante, por um lado, e marido da mãe (pai presumido), por outro –, ainda se vislumbrando nesse caso fundamento racional e não arbitrário para a diferença de regime, quanto ao prazo, entre as ações de impugnação da paternidade estabelecida por perfilhação, por um lado, e por força da presunção pater est – tendo em conta quer a natureza do acto de perfilhação, pessoal e livre, quer os específicos deveres jurídicos decorrentes do contrato de casamento.

Depois, mesmo que se admitisse o escrutínio com base naquela «classificação suspeita» e na compreensão ampla do princípio da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (cfr. igualmente II, 7) – e pese embora a apontada função hoje diversa do instituto da perfilhação e da ação de impugnação da mesma –, por se entender não serem determinantes os argumentos apontados (cfr. II, 10) para infirmar os (dois) fundamentos decorrentes da jurisprudência exarada no Acórdão n.º 589/2007 (cfr. II, 9). Quanto ao primeiro fundamento (cfr. II, 10.1), os dados (quanto ao número de divórcios, uniões de facto e casamentos entre pessoas do sexo oposto) que sustentam a infirmação do primeiro fundamento não contemplam, de todo, o número de filhos (que face àqueles dados, implicitamente se presume ser crescente no âmbito de agregados familiares equiparáveis à família matrimonial); depois, não é certo ser tão «grande a medida da diferença entre as soluções legais» (prazo curto de caducidade no caso de impugnação da paternidade pelo marido da mãe e inexistência de prazo no caso da impugnação da perfilhação pelo perfilhante), tendo em conta o termo inicial do prazo fixado na lei que se afigura poder resultar numa atenuação da apontada grande medida da diferença. Quanto ao segundo fundamento (cfr. II, 10.2), e além do que se referiu sobre a atenuação da diferença, por não se subscrever o afirmado quanto ao argumento fundado na imputação ao legislador da admissibilidade da perfilhação sem qualquer controlo prévio da verosimilhança da respetiva declaração, deixando implícita, ao menos em aparência, a ideia de que a admissibilidade da perfilhação poderia vir a ‘depender’ do prévio controlo da paternidade biológica determinada através de testes de ADN.

Julgada inconstitucional a norma em causa pela maioria que fez vencimento, acompanha-se o juízo de não inconstitucionalidade constante da alínea b) da Decisão.

Maria José Rangel de Mesquita

 
DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido, quanto ao julgamento de inconstitucionalidade da norma extraída do n.º 2 do artigo 1859.º do Código Civil – alínea a) da parte decisória do acórdão -, por entender que podem existir razões justificativas para que o legislador diferencie, quanto ao prazo, as ações de impugnação pelo perfilhante da paternidade estabelecida por perfilhação das ações de impugnação da paternidade presumida intentadas pelo marido da mãe.

Começo por referir que a sentença recorrida deixa muitas dúvidas quanto ao fundamento jurídico que foi determinante no juízo de inconstitucionalidade da norma contida no n.º 2 do artigo 1859.º do CCv. A norma não foi julgada inconstitucional pelo facto da ação de impugnação pelo perfilhante poder ser intentada “a todo o tempo”, ou seja, por ser uma ação imprescritível. A norma foi julgada inconstitucional por se entender que o direito de impugnar a perfilhação por iniciativa do perfilhante está condicionado à não verificação de um requisito negativo: «a não verificação de laços afetivos consolidados com o filho típicos da paternidade». Como do texto do n.º 2 do artigo 1859.º do CCv não é possível retirar qualquer sentido normativo que dê relevância à posse de estado como fator impeditivo do direito à impugnação da paternidade estabelecida por perfilhação, fica-se sem saber qual a dimensão normativa que se pretende impugnar: se a irrelevância da posse de estado em si mesma, se a inexistência de um prazo de posse de estado impeditivo do direito de impugnar. Ora, em qualquer destas dimensões, a ausência da posse de estado determinaria sempre a imprescritibilidade do direito do perfilhante e não a caducidade do direito de ação. Portanto, a ratio decidendi não foi a inexistência de um prazo de caducidade – tal como previsto no artigo 1842.º, n.º 1, alínea a) para a impugnação da paternidade presumida -, mas a não previsão da posse de estado, uma “exceção perentória inominada”, como refere a decisão recorrida, impeditiva do direito de impugnar a perfilhação.

Não obstante a Constituição não impedir que o legislador faça intervir a posse de estado como fator impeditivo da impugnação da perfilhação, há motivos para que as ações de impugnação da perfilhação pelo perfilhante possam ter um regime diferente, quanto ao prazo, das ações de impugnação da paternidade presumida. Os vínculos de filiação são constituídos de modo diferente, e isso tem reflexos na impugnação: enquanto a paternidade do marido da mãe, é uma paternidade legal constituída por presunção (n.º 1 do artigo 1826.º do CCv), a perfilhação depende de uma manifestação do indivíduo que se apresenta como progenitor de um filho que ainda não tem paternidade estabelecida (artigo 1849.º do Ccv). Neste caso, o ato de perfilhação consiste num misto de declaração de vontade, suscetível de ser anulada por vícios da vontade (artigos 1860.º e 1861.º), e de declaração de ciência, em que o perfilhante declara que sabe que é o progenitor, declaração essa que a lei pretende que corresponda à verdade, sob pena de nulidade.

Por isso, a ação de impugnação da perfilhação tem por objeto o ato jurídico de perfilhação, que assentou numa declaração falsa, e não a relação de paternidade que dele resultou. A situação assemelha-se à impugnação da maternidade, também constituída por declaração de maternidade, e que o artigo 1807.º do CCv admite impugnar a todo o tempo. Em ambos os casos, a filiação constituiu-se por declarações que assentam na convicção errada da responsabilidade pela conceção de um indivíduo. De modo que as ações dirigem-sesempre contra as declarações diretamente emanadas do perfilhante, num caso, ou da suposta progenitora, no outro. Nestes casos, possibilidade de se impugnar a todo o tempo uma filiação que não corresponde à realidade biológica da conceção visa conceder um nível máximo de proteção ao direito à identidade pessoal (artigo 26.º da CRP). A tutela maximizada do direito fundamental à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade justifica-se no interesse público da coincidência entre a verdade jurídica e verdade biológica, sempre que a filiação é estabelecida por declaração do perfilhante ou da mãe.

A situação é diferente quando a paternidade é estabelecida por presunção, pois, neste caso, a lei admite que a “verdade jurídica” pode não coincidir com a “verdade biológica”. Ora, no momento em que se pretende destruir o vínculo estabelecido por presunção, as razões que levaram o legislador a elaborar a regra de que o pai é o marido da mãe – proteção da família constituída – também podem ser ponderadas com o direito à identidade pessoal do pai presumido. Caberá ao legislador, na margem de liberdade reclamada pela atividade legislativa, determinar se pretende conceder a esse direito uma proteção absoluta ou se opta por conceder proteção simultânea com outros valores constitucionalmente relevantes. A opção tem sido a de proteger a família constituída através da fixação de um prazo de caducidade (artigo 1842.º do CCv). Mas isso não impede que, nos casos em que a filiação se faça por declaração, se comine com a nulidade, impugnável a todo o tempo, a declaração não correspondente à verdade biológica, evitando assim que através dessa declaração se consigam outros efeitos como, por exemplo, a adoção.

Não obstante, para efeitos de aplicação do princípio da igualdade, não se poder comparar a condição não prevista no n.º 2 do artigo 1859.º do CCv - inexistência de posse de estado – com o prazo de caducidade previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do CCv, por se tratar de realidades distintas, entendo que os argumentos esgrimidos no acórdão para sustentar a inconstitucionalidade da norma daquele preceito adequam-se sobretudo à eventual declaração de inconstitucionalidade da norma deste último. Ou seja, não é a imprescritibilidade da impugnação da perfilhação que é inconstitucional, por violação dos artigos 13.º e 36.º da CRP, mas a caducidade da impugnação da paternidade presumida, por violação do artigo 26.º da CRP. Com efeito, a desvalorização que se faz da proteção da família constituída (ponto 10.1) aponta para a imprescritibilidade da ação de impugnação da paternidade presumida, porque faz sobressair o peso valorativo do direito à identidade pessoal do pretenso pai. Por outro lado, se a procura da verdade biológica nas ações de estado releva do direito à identidade pessoal e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (ponto 10.2), também não há razão para que nas ações de impugnação da perfilhação ou da maternidade se dê preferência pela relação biológica da filiação sobre a relação aparente – permitindo a impugnação a todo o tempo – e o mesmo não aconteça com a impugnação da paternidade presumida. É certo que não há qualquer imposição constitucional no sentido da imprescritibilidade da ação de impugnação da paternidade presumida, mas não é menos certo que também não há idêntica imposição no sentido da caducidade. Antes, pelo contrário, a relevância do direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade apontam no sentido da imprescritibilidade das ações de filiação, sem prejuízo da margem de liberdade do legislador.

Por isso, sem aprofundar mais a questão com mais considerações, concluo pela não inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 1859.º do Ccv.

Lino José Rodrigues Ribeiro"