"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/07/2018

Jurisprudência 2018 (57)


Decisão de mérito; despacho saneador;
decisão-surpresa


1. O sumário de RP 11/4/2018 (10888/14.2T8PRT-A.P1) é o seguinte: 

I - A assinatura em branco faz presumir no signatário a vontade de fazer seu o texto que no documento vier a ser escrito, e daí presumir-se que o texto representa a sua vontade confessória. 
 
II - Por isso o valor probatório da livrança que tenha sido subscrita em branco terá de ser ilidido por aquele a quem se exige o cumprimento da obrigação, demonstrando que esse título cambiário não se acha preenchido em conformidade com o que ajustou com o respetivo portador.
 
III - A declaração mediante a qual se pretende resolver um contrato deve ser suficientemente precisa quanto aos motivos e intenção, não bastando invocar que se resolve o contrato porque a contraparte incumpriu as obrigações a que estava adstrito, tornando-se mister concretizar a situação de incumprimento que legitimará essa forma de extinção do vínculo.
 
IV - Não é admissível a posterior invocação na ação, como fundamento da resolução, de um qualquer incumprimento da contraparte que não tenha sido feito valer oportunamente na declaração resolutória.
 
V - O sentido útil do nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil é o de que, previamente ao exercício da liberdade subsuntiva do juiz no concernente à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, deve este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tenham razoavelmente podido contar.
 
VI - Como assim, sob o enfoque da referida normatividade, o julgador apenas está constituído no dever de observar a contraditoriedade quando esteja em causa uma inovatória e inesperada questão de direito que não tenha, de todo, sido perspetivada pelos litigantes de acordo com um adequado e normal juízo de prognose sobre o conteúdo e sentido da decisão.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreve-se o seguinte:

"[...] a apelante suscita nas suas alegações recursivas, ainda que subsidiariamente, a questão da nulidade da decisão recorrida, porquanto, segundo advoga, a mesma foi prolatada sem prévio cumprimento do princípio do contraditório relativamente à questão do preenchimento abusivo, sendo certo que tal ato decisório constituiu uma decisão-surpresa ao afirmar a verificação de tal exceção perentória.

O mencionado princípio mostra-se plasmado, em termos gerais, no art. 3º do Cód. Processo Civil, sendo que, na sua vertente de direito de resposta, o seu nº 3 expressamente dispõe que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Como tem sido assinalado, o transcrito segmento normativo veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tal como era tradicionalmente entendida, como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo.

Isso mesmo é enfatizado por LEBRE DE FREITAS [In Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, pág. 96], segundo o qual «a esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehör” germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo».

No entanto, o entendimento amplo da regra da contraditoriedade, nos moldes afirmados na citada dimensão normativa, não pretende, obviamente, significar a limitação da liberdade de subsunção ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que, por mor da regra enunciada no nº 3 do art. 5º do Cód. Processo Civil, continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Significa isto, portanto, que o sentido útil do nº 3 do art. 3º é o de que, previamente ao exercício dessa liberdade subsuntiva, o julgador deve facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar, ou seja, sob o enfoque da referida normatividade, o julgador apenas está constituído no dever [Registe-se que a inobservância desse dever pode, efetivamente, gerar uma nulidade processual, vício que é passível de ser arguido em sede recursória, na medida em que essa nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1 al. d) do Cód. Processo Civil), dado que, sem a prévia audição das partes, o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão] de observar a contraditoriedade quando esteja em causa uma inovatória e inesperada questão de direito que não tenha, de todo, sido perspetivada pelos litigantes de acordo com um adequado e normal juízo de prognose sobre o conteúdo e sentido da decisão [Cfr., neste sentido, LOPES DO REGO, in Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª edição, vol. I, pág. 33, onde afirma que «a audição excecional e complementar das partes, precedendo a decisão do pleito e realizada fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela», acrescentando, mais adiante (pág. 34), que «não deverá “banalizar-se” a audição atípica e complementar das partes, ao abrigo do [artigo 3º, nº 3 do Cód. Processo Civil], de modo a entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela atuação do preceituado no art. 3º, nº 3»].

Ora, in casu, não pode considerar-se estar em presença de uma questão jurídica inesperada ou surpreendente no apontado sentido, porquanto a questão do preenchimento abusivo da livrança que consubstancia o título executivo foi, precisamente, um dos fundamentos em que os executados se ancoraram para sustentar a oposição à execução que lhes é movida pela exequente e relativamente à qual teve esta oportunidade de se pronunciar na respetiva contestação, esgrimindo a argumentação que teve por conveniente no sentido de suportar a conclusão que aí firmou de inexistência de abuso na forma como procedeu ao preenchimento do aludido título de crédito.

Destarte, tal questão não surge, neste contexto, como uma nova questão jurídica que justifique uma prévia intervenção jurisdicional de observância do disposto no nº 3 do art. 3º do Cód. Processo Civil, não consubstanciando, pois, a decisão recorrida (de reconhecimento da aludida exceção perentória) uma decisão-surpresa [ A propósito do conceito de decisão-surpresa (também denominada de decisão solitária do juiz), a jurisprudência tem considerado que a mesma ocorre se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, surgindo, pois, a sua imprevisibilidade como marca definidora – cfr., por todos, acórdãos do STJ de 27.09.2011 (processo nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1) e de 4.06.2009 (processo nº 09B0523), acessíveis em www.dgsi.pt]."


[MTS]