"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/07/2018

Jurisprudência (843)


Recurso de revisão;
falsidade de documento


1. O sumário de STJ 13/12/2017 (2178/04.5TVLSB-E.L1.S1) é o seguinte: 

I - O recurso extraordinário de revisão previsto no art. 696.º do CPC, ao contrário do recurso ordinário – que se destina a evitar o trânsito em julgado de uma decisão –, visa uma decisão judicial (revidenda) já coberta pela autoridade do caso julgado – e a sua substituição por outra que venha a ser proferida, sem a verificação da anomalia que sustentou a impugnação – , pelo que, só é aparentemente admissível nas situações taxativamente indicadas e de tal modo graves que as exigências da justiça e da verdade sejam susceptíveis de ser clamorosamente abaladas, no conflito com a necessidade de segurança ou de certeza, se estas, com a inerente intangibilidade do caso julgado, prevalecessem.
 
II - Assim, estamos face a um recurso ou mecanismo processual que não pode deixar de ser encarado como um “remédio” de aplicação extraordinária a uma comprovada ofensa ao primado da justiça, que, de tão gritante, consinta a cedência da certeza e da segurança conferidas pelo princípio do caso julgado.
 
III - Contudo, presentemente, perante o disposto nos arts 696.º, al. b), e 698.º, do CPC, já não está consagrada a exigência de que a apreciação da falsidade de depoimento seja feita em acção autónoma e prévia ao recurso de revisão – podendo ter lugar na própria instância de recurso –, nem, portanto, de uma sentença transitada em julgado para atestar a alegação da existência dessa falsidade, ou que, para instrução do requerimento inicial, se apresente a certidão de tal sentença.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Lembramos que a Relação, ao abrigo da alínea b) do art. 696º, determinou que o recurso fosse liminarmente admitido, com fundamento na arguida falsidade dos avocados depoimentos testemunhais – se não devesse ser rejeitado por outro motivo, não compreendido no objecto da apelação –, mas julgou a apelação improcedente na parte relativa ao indeferimento do requerimento inicial do recurso extraordinário de revisão enquanto estribado no disposto na alínea c) do mesmo artigo, ou seja, quanto aos documentos que haviam sido invocados.

Ora, como é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, o âmbito do recurso, para além dos eventuais casos julgados formados nas instâncias, é confinado pelo objecto (pedido e causa de pedir) da acção, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pela restrição feita pelo próprio recorrente, quer no requerimento de interposição, quer nas conclusões da alegação (art. 635º). Portanto, é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver ([...]).

Trata-se, pois, apenas de aferir do acerto do conteúdo da decisão impugnada em relação à questão da demonstração da falsidade de depoimentos.

O recurso extraordinário de revisão previsto no art. 696º, ao contrário do recurso ordinário – que se destina a evitar o trânsito em julgado de uma decisão –, visa uma decisão judicial (revidenda) já coberta pela autoridade do caso julgado – e a sua substituição por outra que venha a ser proferida, sem a verificação da anomalia que sustentou a impugnação –, pelo que, só é admissível nas situações taxativamente indicadas e de tal modo graves que as exigências da justiça e da verdade sejam susceptíveis de ser clamorosamente abaladas, no conflito com a necessidade de segurança ou de certeza, se estas, com a inerente intangibilidade do caso julgado, prevalecessem.

Com o caso julgado protege-se o interesse substancial da estabilidade da ordem jurídica, ou «uma segurança ordenadora específica e própria a que se pode dar o nome genérico de segurança jurídica. Dada a positivação do direito legislado pelas autoridades competentes e em obediência a procedimentos devidamente regulamentados, dada a mais precisa formulação das regras jurídicas legisladas e a generalidade e abstracção destas regras, dada finalmente a garantia conferida ao Direito pelo funcionamento do aparelho judicial e pelo poder coactivo do Estado, a estabilidade da vida social, as expectativas em que cada um assenta as suas decisões e os seus planos de vida resultam grandemente reforçadas (…). A segurança é, pois, uma das exigências feitas ao Direito, pelo que, em última análise, representa também uma tarefa ou missão contida na própria ideia de Direito (…). Justiça e segurança acham-se numa relação de tensão dialéctica (havendo que salientar este ponto: a segurança jurídica como tal é um atributo da juridicidade; de modo que a tensão ou conflito entre justiça material e segurança jurídicaé uma tensão dialéctica permanente e indesvanecível que se situa no interior mesmo da juridicidade)» ([J. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1991, p. 55]).

Segundo Pinto Furtado, «se a ideia de justiça e a de certeza andam geralmente associadas, em certas circunstâncias excepcionais entram as duas em conflito, impondo-se então que a certeza abra as suas portas para deixar entrar a justiça. E a chave para o efeito é o recurso extraordinário. Ciente, porém, da necessidade de encontrar um equilíbrio entre a certeza e a justiça, o legislador elencou, de forma taxativa, na lei os casos excepcionais em que se mostra justificado o direito de desencadear o referido remédio.» ([“Recursos em Processo Civil (de acordo com o CPC de 2013”), Quid Juris, Lisboa, p. 155 [...]]).

Como se reconhece, a proeminência dos interesses tutelados pelo princípio do caso julgado justifica a protecção constitucional deste, explicitada no comando contido no art. 282º, nº 3, da CRP, e alicerçada nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito (cf. art. 2º também da Lei Fundamental). 
Assim, estamos perante um recurso ou mecanismo processual que não pode deixar de ser encarado como um remédio de aplicação extraordinária a uma comprovada ofensa ao primado da justiça, que, de tão gritante, consinta a cedência da certeza e da segurança conferidas pelo princípio do caso julgado.

Posto isto, quanto à crucial questão da interpretação do art. 696º, b), aderimos, sem hesitação, à proposta formulada na decisão recorrida, à luz dos critérios normativos consagrados no art. 9º do CC, quanto à hermenêutica jurídica, para obter resultados coerentes e racionais no sistema, sem esquecer o desiderato prosseguido pelo legislador.

Realmente, segundo pensamos, a aceitação da proposta interpretativa formulada neste recurso sobre a aludida norma do art. 696º b), quanto às exigências para a demonstração da falsidade de depoimentos, desrespeitaria as regras impostas pelo art. 9º do CC, porque, por um lado, não colheria na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal e, por outro lado, contornaria os aspectos de ordem histórica e racional envolvidos, afrontando o pensamento legislativo, por desconsiderar o modo como este foi sendo consagrado nos sucessivos diplomas sobre a lei adjectiva.

Na tentativa de compreensão do significado da lei é incontornável a análise da respectiva letra, por ser o ponto de partida de toda a interpretação daquela. Ora, é indubitável que a interpretação perfilhada na decisão recorrida é a que se harmoniza, abertamente, com a letra da lei. Esta, por força dos nºs 1 e 2 do citado artigo do CC, tem um valor que não pode ser ignorado pelo intérprete e que impõe dois limites: um decorrente das presunções de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e de que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados; outro, que decorre da proibição de consideração, pelo intérprete, de um significado que, não tenha na letra da lei, um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Por isso, não pode aceitar-se a interpretação que atinja um significado que não encontre uma correspondência mínima na letra da lei.

Vejamos.

Como pertinentemente registaram os Srs. Desembargadores, no anterior código, o correspondente preceito (art. 771º) tinha um conteúdo – conferido pelo DL 303/2007, de 24/08 – equivalente ao do actual normativo, o qual se mantinha – no essencial – desde que fora significativamente alterado pelo DL 38/2003, de 8/03.

Todavia, tal comando, até essa modificação de 2003, tinha a seguinte redação: «A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão … Quando se apresente sentença já transitada que tenha verificado a falsidade de … depoimento …, que possa[m] em qualquer dos casos ter determinado a decisão a rever. A falsidade de documento ou acto judicial não é, todavia, fundamento de revisão, se a matéria tiver sido discutida no processo em que foi proferida a decisão a rever.».

E antes dessa substancial alteração de 2003, quanto à “Instrução”, exigia-se, coerentemente, mediante o disposto no art. 773º do mesmo Código, que no requerimento de interposição se especificasse o fundamento do recurso e com ele se apresentasse certidão da sentença em que se fundava o pedido.

Ora, o dito art. 696º tem, actualmente (e, desde 2003, o correspondente art. 771º), um teor e, necessariamente, um alcance substancialmente diferentes. Com efeito, para o que aqui interessa, estatui o preceito que a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando (i) se verifique a falsidade de depoimento, (ii) que possa ter determinado a decisão a rever, (iii) não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida.

E, diferentemente do que sucedia com aquele art. 773º (até à alteração de 2003), também não se exige no actual art. 698º que, para “Instrução do requerimento”, se apresente certidão da sentença, o que facilmente se compreende porque, agora, a decisão transitada em julgado pode ser objecto de revisão sem que, nos termos daquele art. 696º, se faça qualquer menção a que, para tal, a verificação da falsidade do depoimento só se possa fazer mediante sentença já transitada.

Ora, a sugestão de que legislador, não obstante a esgrimida alteração de 2003, continuaria a consagrar a exigência de uma sentença transitada em julgado para atestar a alegação da existência da falsidade de depoimentos está para além do significado provável da lei, por ser incompatível com sua letra, perante o diferente tratamento que esta, actualmente, oferece para tal requisito. O texto com que o legislador se exprime inculca, pois, uma resposta terminantemente negativa à questão suscitada neste recurso: como se concluiu na decisão recorrida, presentemente, já não se exige que a apreciação da falsidade de depoimento seja feita em acção autónoma e prévia ao recurso de revisão, podendo ter lugar na própria instância de recurso.

O que, evidentemente, não arreda a pertinência das observações com que iniciámos a análise desta questão, quanto à natureza extraordinária deste “remédio” processual e ao decorrente grau de exigência da comprovação (i) da ofensa (chocante) ao primado da justiça, (ii) da relação de causalidade adequada entre a alegada falsidade e a decisão revidenda e (iii) de tal matéria não ter sido objecto de discussão no processo em que essa decisão foi proferida.

É claro que no recurso de revisão baseado na falsidade de depoimento é necessário alegar tal falsidade, a matéria de facto para que o depoimento foi considerado e, ainda, a relevância desta matéria para a alteração da decisão recorrida. E, como é consensual, a falsidade que constitui requisito do recurso de revisão não corresponde a uma qualquer divergência entre depoimentos, antes pressupõe que o seu teor tenha sido dolosamente produzido pelos respectivos emitentes contra a realidade por eles conhecida, ou seja, que os mesmos com ele tenham pretendido influir no resultado da acção e, efectivamente, determinado a decisão a rever. Acresce que também não se justifica a revisão da decisão transitada se se apurar que a materialidade invocada no recurso de revisão já fora invocada no decurso da acção, onde só não foi considerada em virtude de deficiente desempenho da parte interessada, o mesmo é dizer, da sua imperfeita percepção do princípio da auto-responsabilidade processual.

Como tal, perante os valores tutelados pelo caso julgado, a interposição e a aceitação do recurso extraordinário de revisão não pode ser suportado no mero inconformismo do recorrente relativamente ao resultado que foi judicialmente declarado e cuja modificação o mesmo não pode pretender alcançar como se de um recurso ordinário de apelação se tratasse ([...]). «Nesse contexto, a eventual injustiça material do resultado que ficou estabilizado ou o eventual desajustamento entre o que ficou decidido e a realidade litigada não são bastantes para que se perturbe aquela estabilidade. O efeito estabilizador do caso julgado tem como acréscimo a segurança jurídica e a paz social que não podem ser postas em causa pelo simples facto de existir um eventual erro de julgamento que não foi corrigido pelos meios ordinários e menos ainda quando nos deparamos com o mero inconformismo relativamente ao que foi decidido. Apenas em situações excepcionais, que correspondem a cada um dos fundamentos taxativos do recurso de revisão, se admite que possa ser retomada a instância com vista à verificação de algum dos motivos cuja gravidade foi suficiente para se sobrepor aos efeitos que emanam de decisão transitada em julgado.» ([Acórdão proferido por este Tribunal em 27-04-2017 (p. 978/06.0TBPTL-G.G1.S1)]).

Todavia, todos esses são aspectos que, não podendo deixar de ser enfrentados nos autos, transbordam o objecto deste recurso, atendendo aos contornos que acima lhe estabelecemos no confronto com o decidido no acórdão recorrido: a admissão liminar do recurso de revisão, apenas com fundamento na pretendida falsidade dos invocados depoimentos testemunhais, se não dever ser rejeitado por outro motivo não compreendido no objecto da apelação."


[MTS]