1. O incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, que se justifica por razões humanitárias, é uma opção do legislador ordinário na tentativa de otimização das soluções de harmonização entre o direito fundamental à habitação e o direito fundamental à propriedade privada, sendo aquela medida, por isso, uma limitação do direito de propriedade.
Isto significa que aquele incidente só pode proceder em casos excecionais.
2. Existem duas leituras possíveis sobre os fundamentos que concedem o diferimento, e que se acham previstos no n.º 2 do artigo 864.º do CPC:
a) Uma primeira leitura, e porventura a que maior acolhimento tem na jurisprudência, é a de que o pedido de diferimento da desocupação só pode ser concedido nas duas situações previstas nas alíneas a) e b) daquele normativo, vale dizer, tratando-se de resolução do contrato de arrendamento por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deva a carência de meios económicos do arrendatário, ou sendo o arrendatário portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%;
b) A outra interpretação é no sentido de considerar que o legislador estabeleceu uma otimização apriorística (ex ante) dos dois direitos fundamentais, de modo que o pedido de diferimento é automaticamente concedido no caso de se comprovar uma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do referido preceito legal; esta solução não obsta, porém, a que também o Juiz faça uma otimização dos dois direitos fundamentais referidos, tendo em conta os critérios de racionalidade previstos no corpo do n.º 2 do artigo 864.º CPC.
Quer dizer: de acordo com esta segunda interpretação, é menor o esforço de fundamentação do Juiz em termos de racionalidade jurídica quando o fundamento do diferimento é alguma das situações previstas nas alíneas a) e b), sendo mais exigente a fundamentação para decretar o deferimento nos demais casos em que, ainda por razões humanitárias, se justifica decretar o diferimento da desocupação.
Nesta segunda interpretação, os elementos de racionalidade expressos no corpo do nº 2 não são atendidos pelo juiz apenas para determinar o prazo do diferimento -- como acontece segundo a primeira interpretação --, mas também são critérios de decisão para conceder o diferimento da desocupação.
3. O incidente de deferimento da desocupação de imóvel arrendado para a habitação não é um meio de caridade; por isso não pode o Tribunal deixar de atender também a situação socioeconómica do senhorio exequente.
4. Não são apenas critérios de decisão os critérios de racionalidade previstos no corpo do n.º 2 do artigo 864.º do CPC. Também são critérios de decisão os princípios fundamentais que constituem a reserva material da Constituição (principio da proporcionalidade em sentido estrito, principio da necessidade e principio da adequação), que o Juiz deve utilizar na busca da otimização de cada um dos direitos fundamentais, por um lado, e procurando alcançar a concordância prática entre os direitos em conflito, por outro (cf. arts. 2º, 18.º, n.º 2 e 17.º da CRP, e art. 335.º, n.º 1 do CC).
5. Importa igualmente pôr em relevo que os objetivos humanitários que justificam o diferimento da desocupação não podem ser só alcançados ao nível privado, devendo intervir também os organismos públicos com competência na área da assistência social. Isto significa que é aplicável o nº 6 do 861.º do CPC, no sentido de que deve haver uma participação ativa dos serviços locais de assistência social.
J. H. Delgado de Carvalho