"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/09/2019

Jurisprudência 2019 (81)



Litigância de má fé;
multa; indemnização*

1. O sumário de RP 26/3/2019 (611/12.1TYVNG.P1) é o seguinte:

I - A condenação em multa por litigância de má fé não depende de pedido da parte contrária, podendo ter lugar oficiosamente.

II - A indemnização a favor da parte contrária terá de ser pedida por esta.

III - A indemnização tem natureza sancionatória e compulsória, podendo coexistir com a indemnização por responsabilidade civil.

IV - Ainda que a parte não tenha feito a prova das despesas que suportou, o tribunal pode fixar-lhe uma indemnização com base na equidade.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No âmbito da actuação processual sanciona-se o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, por qualquer das partes, a fim de:

i) conseguir um objectivo ilegal;

ii) impedir a descoberta da verdade;

iii) protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (artigo 542, n.º 2. alínea d)).

Refere PAULA COSTA E SILVA, in A litigância de má-fé, Almedina, 2008, pág. p. 620, que a ilicitude pressuposta pela litigância de má-fé distancia-se da ilicitude civil (artigo 483º CC), não apenas porque se apresenta como um ilícito típico (descrevendo analiticamente as condutas que o integram), mas também porque, ao contrário do que sucede com o ilícito civil, se encontra dependente da verificação de um elemento subjectivo, sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito, aproximando-se nesta medida muito mais do ilícito penal.

O litigante tem de actuar já imbuído de dolo ou culpa grave. O elemento subjectivo será então considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade.

Só releva a má-fé subjectiva, isto é, quando a parte tenha consciência de que lhe não assiste razão. E, em face das dificuldades em apurar a verdadeira intenção do litigante, essa consciência deve manifestar-se pela inobservância das mais elementares regras de prudência.

Se, pelo contrário, o comportamento objectivamente preencha alguma das alíneas do artigo 542º, nº 2 mas não for modulado por esse elemento subjectivo, não será já considerado de má-fé. Não haverá lide dolosa nem temerária.


Refere-se na sentença o seguinte: ”No caso em apreço, a autora fundamentou o seu pedido no facto de não ter sido convocada para a assembleia geral da ré realizada a 23 de Março de 2012. No entanto, sabemos que a ré expediu carta registada com aviso de recepção para a residência da autora, convocando-a para a referida assembleia geral. Por outro lado, sabemos que a ré enviou à autora outra carta, registada com aviso de recepção, datada de 11 de Abril de 2011, dirigida para a sua residência, remetendo-lhe a acta n.º 14, relativa à assembleia geral realizada no dia 23 de Março de 2011, a qual foi recebida a 20 de Abril de 2011, constando da acta, para além do mais, o seguinte: “O Presidente informou os presentes que os sócios ausentes B… e D…, ainda que regularmente convocados para esta Assembleia-Geral, por carta registada com aviso de recepção expedida no dia seis de Março último, não procederam ao seu levantamento/reclamação junto dos CTT pelo que as mesmas vieram devolvidas à procedência como melhor consta nos respectivos sobrescritos que o presidente rubrica e manda arquivar na pasta da Assembleia-Geral.”. Ora, a autora, ao receber a carta datada de 11 de Abril de 2012, tomou conhecimento da menção descrita, relativa à expedição da convocatória e à devolução do expediente, bem como ao arquivamento de tais elementos em pasta própria, circunstâncias que impunham, cremos, que a mesma, previamente à propositura da presente acção, tivesse diligenciado no sentido de melhor esclarecer a questão, o que não se verificou, limitando-se a propor a presente acção e a invocar a falta de convocatória, o que, como já vimos, não se verificou, não podendo ser imputada à ré a sua ausência na assembleia geral. Temos, assim, que a autora agiu com negligência grave, uma vez que não tomou as precauções exigidas no caso concreto, impondo-se, por isso, a sua condenação como litigante de má fé. Nos termos do disposto no art. 27º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 e 100 UC, pelo que, tendo em conta o que a autora pretendia obter com a propositura da presente acção, julgamos adequado e razoável fixar a mesma em 5 (cinco) unidades de conta.”

Efectivamente, a recorrente propôs a presente acção sabendo que constava da acta n.º 14, relativa à assembleia geral realizada no dia 23 de Março de 2011 que “….os sócios ausentes B… e D…, ainda que regularmente convocados para esta Assembleia-Geral, por carta registada com aviso de recepção expedida no dia seis de Março último, não procederam ao seu levantamento/reclamação junto dos CTT pelo que as mesmas vieram devolvidas à procedência como melhor consta nos respectivos sobrescritos que o presidente rubrica e manda arquivar na pasta da Assembleia-Geral.”

Assim, é perfeitamente irrelevante o que agora alega quanto ao seu convencimento baseado nas circunstâncias de a testemunha D… também não ter recebido a carta contendo a convocatória, de o mesmo apenas ter tido conhecimento da assembleia com a notificação da acta, e de se tratar de uma sociedade familiar e em guerra.

A recorrente actuou com manifesto atropelo das mais elementares regras de prudência no fundamento invocado para a pretendida anulação das deliberações sociais, denotando sim este seu comportamento um avivar da dita guerra da sociedade familiar.

A recorrente deduziu, assim, pretensão cuja falta de fundamento se não devia ignorar.

Também se considera perfeitamente ajustada a fixação da multa em 5 (cinco) unidades de conta.

Na verdade, a litigância de má fé conduz à aplicação ao litigante de duas sanções: multa e uma indemnização à parte contrária.

Resulta do disposto no artigo 542º, nº 1, do C.P.C. que a condenação em multa como litigante com má fé não depende de pedido da parte, podendo/devendo o Tribunal efectuá-la desde que se verifiquem os respectivos pressupostos.

No que respeita à indemnização, a tese mais avisada é a de que ela terá de ser pedida pela parte.

Posto isto, para que o crédito indemnizatório se constitua na esfera jurídica do lesado é necessária a verificação cumulativa de dois indispensáveis pressupostos: por um lado, a demonstração de um ilícito perpetrado pelo lesante, traduzido na sua litigância censurável; por outro, que o lesado com essa conduta, formule o pedido indemnizatório.

A indemnização pode ser simples ou agravada.

A indemnização simples é aquela que se encontra prevista na al. a) do nº 1 do artigo 543 do CPC, compreendendo todas as despesas que a má fé do litigante haja obrigado a parte contrária a suportar, incluindo os honorários ao seu mandatário ou aos técnicos.

A indemnização agravada é aquela que se encontra prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 543º, incluindo todas aquelas despesas e ainda todos os demais prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má fé do litigante.

A responsabilidade processual e litigância de má fé assentam num princípio de natureza puramente processual: “princípio da cooperação” (artigo 7.º do CPC).

Com efeito, em nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 542.º se indica uma qualquer situação em que na base da litigância de má fé esteja a ofensa a um direito ou outra posição jurídica subjectiva concedida ou protegida pelo direito substantivo.

Por isso, pode dizer-se que a finalidade visada pela indemnização em sede de litigância de má fé não é ressarcitória, como sucede com a responsabilidade civil mas sim meramente sancionatória e compensatória.

A ilicitude processual assenta num exercício disfuncional do direito, por manifesto atentado à boa-fé processual e, consequente, desvio do processo e dos meios processuais do interesse e da finalidade que o legislador tinha em mente ao consagrá-los.

O artigo 543.º, nº 3 do CPC dispõe que “se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, serão ouvidas as partes e fixar-se-á depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte”.

Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil, Anotado, Vol. II, pág 281, explica que: ”a apreciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; (…) o que pode e deve deixar para depois da sentença é a fixação do quantitativo da indemnização, que resolverá, ouvidas as partes e pedidas as informações ou esclarecimentos ou ordenadas as diligências indispensáveis, usando de prudente arbítrio”.

Podemos dizer que são elementos distintos o âmbito e o montante da indemnização, aquele tem de ser a sentença a definir-lhe os contornos; este será decidido ou não pela sentença, consoante os elementos disponíveis. Não os havendo ou sendo insuficientes, impõe-se a respectiva recolha, que até poderá decorrer oficiosamente, para ser tomada, então, posição.

O nº 2 do artigo 543º do CPC comanda que “O juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa.”

Esta opção reporta-se às alíneas do nº 1, ou seja, à indemnização simples, ou à indemnização agravada, de acordo com o grau de má fé, com a maior ou menor gravidade da conduta dolosa."

*3. [Comentário] A RP decidiu bem quanto ao fundo, isto é, quanto à confirmação da condenação da autora como litigante de má fé.

Discutível é, no entanto, a afirmação de que "a finalidade visada pela indemnização em sede de litigância de má fé não é ressarcitória, como sucede com a responsabilidade civil mas sim meramente sancionatória e compensatória", essencialmente por três razões:

-- A finalidade sancionatória cabe à multa, não à indemnização;

-- A indemnização deve ser pedida pela parte (art. 542.º, n.º 1, CPC); ora, ao contrário do que acontece no ordenamento jurídico norte-americano com a indemnização punitiva, é estranho ao ordenamento português que qualquer indemnização possa pedida com uma finalidade punitiva;

-- Embora a título exemplificativo, o art. 543.º, n.º 1, CPC enuncia os critérios pelos quais se afere o quantum da indemnização; destes resulta claramente uma finalidade ressarcitória da indemnização. 

MTS