"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/09/2019

Jurisprudência 2019 (75)

 
Procedimento de injunção;
reconhecimento de dívida; causa de pedir

 
I. O sumário de RL 9/4/2019 (58767/18.6YIPRT.L1-7) é o seguinte:
 
1.– O procedimento para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, incluindo o procedimento de injunção, constitui um procedimento especial simplificado, de natureza declarativa, a que são aplicáveis, subsidiariamente, as disposições gerais e comuns e a disciplina do processo declarativo comum do processo civil, nos termos estabelecidos no art. 549.º, n.º 1, do C.P.C.

2.– A causa de pedir consiste na alegação de uma factualidade concreta que, na sua significação normativa, consubstancia o facto jurídico de que se faz proceder o efeito pretendido, ou seja, o pedido, exercendo, como factor delimitativo que é da pretensão:
 
- uma função endoprocessual na configuração do objecto da causa e no que lhe está associado; e
 
- uma função extraprocessual de definição objectiva do julgado, o que se torna fulcral mormente no âmbito das acções declarativas, permitindo ainda que a execução da sentença possa ser desprovida de meios de oposição alargada, como impõe o preceituado no artigo 729.º.

3.– Donde, os factos estruturantes da causa de pedir devem permitir, pelo menos, determinar a fonte concreta ou o título da obrigação de que emerge o efeito jurídico concreto judicialmente declarado ou decretado.

4.– Num requerimento injuntivo, a exigência de exposição sucinta não significa falta de alegação dos factos estruturantes da causa de pedir, sob pena de se aniquilar o princípio do contraditório num procedimento que afinal é declarativo, até porque, sucinto, significa apenas sintético, sendo que, mesmo aqui o grau de síntese terá de ser aquilatado em função de cada situação concreta, à luz do princípio da economia formal dos actos processuais consagrado no art. 131.º, n.º 1, do C.P.C.

5.– No caso de promessa de uma prestação ou de reconhecimento de uma dívida, por simples declaração unilateral, nos termos previstos no art. 458.º, n.º 1, do C.C., preceito que consagra, não o princípio do negócio abstrato, mas a exigência de um ato causal, embora com presunção ilidível de causa, o credor apenas está dispensado de provar a relação subjacente àquela declaração, mas não de a alegar.

6.– Donde, o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la, sem indicar o facto que a constituiu, contra este propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito, o que é confirmado pela exigência da forma do art. 458º, n.º 2 do C.C., que pressupõe o conhecimento da relação fundamental.

7.– Tal facto ficará provado pela apresentação do documento, ou seja, por ilação tirada, nos termos do art. 458º, n.º 1 do C.C., da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor.

8.– Não cumpre tal ónus de alegação o credor que, no procedimento injuntivo, se limita a afirmar que «por documento escrito e datado de 14/10/2015, Requerente e Requerida outorgaram de comum acordo um contrato pelo qual renegociaram uma divida, fixando-a em Euros 803.000,00 (oitocentos e três mil euros), a pagar em 228 (duzentas e vinte e oito prestações), iguais e sucessivas de Euros 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), a primeira com vencimento a 28/10/2015 e as restantes em iguais dias dos meses subsequentes».

9.– O convite ao aperfeiçoamento (arts. 17.º, n.º 3, do diploma anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 01.09, e 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4, do C.P.C.) só tem sentido quando se trate de imprecisões ou insuficiências que não afecta a principalidade do que estiver em causa, por tal convite não pode significar a renovação do direito, a ofensa da preclusão e a estabilidade.

10.– Ou seja, o convite ao aperfeiçoamento só tem justificação, como concretização do direito de acesso à justiça e do princípio da proporcionalidade, quando as deficiências notadas não respeitarem ao conteúdo, concludência ou inteligibilidade da própria alegação ou motivação produzida, pois o mecanismo daquele não pode transmutar-se num modo de a parte obter novo prazo para, reformulando substancialmente a sua própria pretensão ou impugnação, obter novo e adicional prazo processual para substancialmente cumprir o ónus que sobre ela recaía.
 
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Tal como decidido no Ac. da R.L. de 17.12.2009, Proc. n.º 6659/07.0TBLRA-A.L1-6 (Fátima Galante), in www.dgsi.pt, «o credor, por força do art. 458º do CCivil, apenas está dispensado de provar a relação subjacente, que se presume, mas não de a alegar. Por força dessa presunção deixa de ser necessário que do título executivo conste a causa da obrigação. Desde que, como dissemos, o exequente, no requerimento executivo alegue os factos integrantes da relação subjacente, Continua a caber ao credor a invocação da relação subjacente, cabendo ao devedor, por força da inversão do ónus da prova, provar que a relação nunca existiu ou deixou de existir. Mas para isso tem que saber qual a relação pressuposta pelo credor, sob pena de poder estar perante uma infinidade de causas possíveis».

Retornando ao caso concreto, está em causa a condenação da apelada no pagamento à apelante da quantia € 733.000,00, a título de capital, acrescida de juros de mora e ainda outras despesas, com base num documento com base no qual:
 
- a apelada reconhece dever à apelante a quantia de € 803.000,00;
 
- a apelada se compromete a pagar à apelante aquela quantia em 228 prestações, iguais e sucessivas de Euros 3.500,00, cada uma, a primeira com vencimento a 28/10/2015 e as restantes em igual dias dos meses subsequentes.

Nem nesse documento, nem em qualquer outro, é indicado o negócio jurídico que lhe deu origem, importando recordar que no requerimento injuntivo, a autora invoca, como causa para a sua pretensão contra a ré, um contrato de compra e venda a prestações celebrado em 14 de outubro de 2015.

Era sobre a ré, ora apelada, que incumbia o ónus de alegação e prova da inexistência da causa debendi.

No entanto, para que a mesma pudesse fazer tal prova, era dever da autora, ora apelante, a alegação dos factos constitutivos do seu direito de crédito.

E a verdade é a que a autora, ora apelante, não alega um único concreto facto jurídico, material, constitutivo desse seu crédito.

O convite ao aperfeiçoamento (arts. 17.º, n.º 3, do diploma anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 01.09, e 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4, do C.P.C.) só tem sentido quando se trate de meras imprecisões ou insuficiências situadas num plano de literalidade que não afecta a principalidade do que estiver em causa, que não significa a renovação do direito, a ofensa da preclusão e a estabilidade; ou seja, o convite ao aperfeiçoamento só tem justificação, como concretização do direito de acesso à justiça e do princípio da proporcionalidade, quando as deficiências notadas forem estritamente formais, ou de natureza secundária, ligadas à apresentação ou formulação, mas não ao conteúdo, concludência ou inteligibilidade da própria alegação ou motivação produzida, não podendo o mecanismo do convite ao aperfeiçoamento de deficiências formais do acto da parte, transmutar-se num modo de esta obter novo prazo para, reformulando substancialmente a sua própria pretensão ou impugnação, obter novo e adicional prazo processual para substancialmente cumprir o ónus que sobre ela recaía, que era o que manifestamente ocorreria no caso em apreço, caso à autora, ora apelante, fosse endereçado convite ao aperfeiçoamento do requerimento injuntivo.

Por outras palavras, se se quiser, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento quando o que é insuficiente não é a alegação, mas a realidade alegada, destinando-se o mecanismo dos supra referidos preceitos legais a suprir a insuficiência do alegado.

Tal como se pode ler no Ac. do S.T.J. de 20.05.2004, Proc. nº 04B122 (Neves Ribeiro), in www.dgsi.pt, se é salutar a cooperação entre as partes, não é menos importante a criação e desenvolvimento de uma cultura judiciária de responsabilidade, e de saber, que não tenha no juiz, o limite corrector dessa responsabilidade (ou irresponsabilidade: inconsciente ou provocada) ou desse saber, (ou ignorância: inconsciente ou provocada), quando se está perante uma clara ausência de um preceito legal, e de processo, que permita contar com a ajuda dos outros, suprindo faltas processuais graves, essenciais ao objecto do conhecimento, exactamente do que se pede ao tribunal, que conheça.

Fazendo de modo diverso, pode cair-se numa indisciplina de procedimento e arrastamento, tão impunes, quanto aleatórios, do exercício do direito de acção (ou de recurso) que nunca mais chega ao fim, com grave prejuízo para os interesses gerais da administração da Justiça e, em particular, para a contraparte - o cidadão, como pessoa singular, ou como pessoa jurídica - que outras o direito não conhece.

Em desfavor destas - das pessoas - vulgariza-se o princípio, igualmente respeitável, da preclusão processual civil, agravando o factor da incerteza do tempo da definição do direito; e introduz-se uma pedagogia processual negativa, a benefício do arbítrio ao convite, do uso e do abuso, sem critério, que em nada abona a confiança, a celeridade e a prontidão da justiça, acabando por conferir a esta, a imagem perigosa geradora do "deixar andar" ou do " erra que o Juiz corrige!".

Assim, pois, “o princípio da cooperação tem de ser temperado pelo princípio da responsabilidade das partes, não podendo estas esperar que o Juiz tudo venha suprir, nomeadamente as suas lacunas, nem podendo o convite ao aperfeiçoamento tornar-se numa autêntica subversão do processo”»."
 
MTS