"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/09/2019

Jurisprudência 2019 (67)

 
Penhora de bens comuns;
separação de bens; bens penhorados
 
 
1. O sumário de RG 7/3/2019 (3660/14.1T8VNF-G.G1) é o seguinte:
 
I. Penhorado um determinado bem comum do casal, numa execução movida unicamente contra um dos cônjuges, e citado o outro cônjuge ao abrigo do disposto no art. 740º do CPC, das duas, uma:

- Ou o cônjuge do executado não requer a separação de meações nem junta certidão de acção pendente, e a execução prossegue contra o bem penhorado, para a sua venda ou adjudicação na acção executiva;

- Ou o cônjuge requer a separação de meações ou junta certidão comprovativa de processo de separação de bens já instaurado, suspendendo-se a execução nos bens comuns até à partilha.

II. Nesta última situação, podem ocorrer duas hipóteses:

1ª Ou o bem penhorado é adjudicado [na partilha] ao executado.

2º Ou é adjudicado ao seu cônjuge.

III. Naquela primeira hipótese, não surge, neste âmbito, qualquer problema, uma vez que se o bem penhorado for adjudicado ao executado, a execução pode voltar a prosseguir os seus trâmites ulteriores relativamente a tal bem. No entanto, se se verificar a segunda hipótese, e o bem penhorado for adjudicado antes ao cônjuge do executado, ficando o executado com a sua meação preenchida com o direito às tornas, deve-se entender que a garantia de pagamento do crédito do exequente resultante da primitiva penhora (que incidia sobre um bem comum do casal) transfere-se automaticamente para os bens que passaram a constituir o quinhão do executado/devedor.

IV. Nessa medida, qualquer acordo de composição dos quinhões que tenha sido estabelecido pelos cônjuges naquele Inventário, por via do qual se atinja aquele resultado (o bem penhorado seja adjudicado ao cônjuge não executado, ficando o cônjuge executado com direito a tornas, logo, alegadamente, pagas em mão), deve ser considerado ineficaz em relação ao Tribunal da execução por aplicação do regime da penhora de créditos (artºs. 740º, nº 2; cf. art. 777º do CPC; e artºs. 820º e 823º do CC, este por analogia), ficando o executado (ou o cônjuge do executado) obrigado a entregar as tornas no processo executivo - mesmo que estas já tenham sido alegada e indevidamente entregues ao executado.

V. Enquanto isso não suceder, a penhora que incide sobre os bens imóveis (bens comuns do casal) tem que se manter, pois que, conforme decorre do disposto no art. 740º, nº 2 do CPC a penhora primitiva mantém-se (“permanece”) “até à nova apreensão”

VI. Além disso, tendo em conta a afirmada ineficácia dos actos de partilha efectuados (designadamente, da entrega em mão das tornas) perante a penhora vigente dos bens comuns do casal (cf. nº 2 do art. 740º do CPC), não se pode julgar verificada a existência de caso julgado (seja em que modalidade for), uma vez que a decisão proferida no processo de inventário (sentença que homologou a partilha) não impõe a sua autoridade, nem obsta a que se reconheça a ineficácia (limitada) dos actos de partilha homologados, em face dos efeitos sub-rogatórios (automáticos) da penhora dos bens comuns sobre as tornas ou o direito às tornas que vieram a integrar o património do executado”.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] atento o disposto no art. 740º, nº 2 do CPC (e o anterior nº 7 do art. 825º do CPC), nestas situações em que o bem penhorado é adjudicado ao cônjuge do executado, em sede de Inventário para separação de meações, deve ser entendido que a garantia de pagamento do crédito do exequente resultante da primitiva penhora (que incidia sobre um bem comum do casal) transfere-se para os bens que hão-de constituir o quinhão do executado/devedor – no nosso caso, como bem entendeu o Tribunal Recorrido, para o valor das tornas.

Na verdade, tal solução legal decorre não só do disposto no citado preceito legal, mas também do que se estabelece nos artºs. 819º e ss. do CC.

E que esta é a solução que se impõe, basta ter em atenção o resultado que se poderia obter, se se adoptasse a posição da Recorrente, nomeadamente, quanto à salvaguarda dos aludidos interesses aqui em jogo.

Com efeito, se se aceitasse a posição perfilhada pela Apelante, relativamente à não exigibilidade do depósito das tornas à ordem dos presentes autos, com essa solução aceitar-se-ia subverter os princípios gerais em que assenta a razão de ser do inventário para separação de bens, em consequência de penhora de bens comuns, ou seja, a protecção do cônjuge do executado, salvaguardando-se, sempre, no entanto, a não verificação de prejuízo excessivo para o exequente.

No caso dos autos, a defender-se aquela tese, tínhamos que reconhecer, ter havido protecção do cônjuge (a ora Recorrente que receberia os bens imóveis desonerados), protecção do executado (que recebeu (receberia) as tornas sem que as mesmas pudessem ser “atingidas” pelo exequente) e prejuízo total da exequente, que ficaria sem a garantia que resultava da penhora, sem ser pago do seu crédito.

Esta solução, conduzindo a estes efeitos, não pode obviamente ser aqui acolhida porque não decorre dos citados dispositivos legais e não foi certamente essa a intenção do legislador, tendo em conta os referidos interesses em jogo.

Na verdade, quando o legislador no art. 1406º, nº 1 do CPC anterior, faculta ao cônjuge do executado o direito de escolher livremente os bens que hão-de constituir a sua meação, em sede de inventário, esse direito deve ser exercido, tendo como limite o valor desta (da meação), com vista a coordenar-se com o direito dos credores.

Assim, quando a Recorrente, sabendo que sobre os bens que lhe foram adjudicados incidia uma penhora, tem de entregar tornas ao seu cônjuge (executado), porque o valor dos bens que lhe foram adjudicados excede (em muito) o valor da sua meação, não devia (podia) - no pressuposto de que o fez - ter efectuado o pagamento das tornas em mão ao cônjuge, aqui executado.

Na verdade, nestas situações, como bem entendeu o Tribunal Recorrido, impõe-se que a Recorrente proceda ao depósito das tornas à ordem do presente processo, conforme lhe foi ordenado, com vista a salvaguardar os interesses do credor, que depois dos seus, merecem primazia sobre os do cônjuge/executado.

Esta solução, além de traduzir, como se acaba de salientar, a melhor ponderação dos interesses aqui em jogo, é aquela que decorre também do disposto nos artºs. 819º e ss. do CC.

Na verdade, pode-se ler no art. 819º do CC que “… são inoponíveis à execução os actos de disposição … dos bens penhorados…”.

Da mesma forma, estabelece o art. 820º do CC que “sendo penhorado algum crédito do devedor, a extinção dele por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora é igualmente inoponível à execução”.

Finalmente, refere o art. 823º do CC que “se a coisa penhorada se perder, for expropriada ou sofrer diminuição do valor e, em qualquer dos casos, houver lugar a indemnização de terceiro, o exequente conserva sobre os créditos respectivos, ou sobre as quantias pagas a título de indemnização, o direito que tinha sobre a coisa”.

Como decorre destes preceitos legais, o legislador visou impedir que o executado, de alguma forma, pudesse, por acto seu ou de terceiro, diminuir o valor dos bens penhorados ou impedir a sua venda executiva.

Assim, e desde logo - para o que aqui nos interessa -, o legislador estabeleceu que, após a efectivação da penhora, qualquer acto de disposição do bem ou direito penhorado é inoponível à execução; o mesmo sucedendo (inoponibilidade) com a extinção de um direito de crédito penhorado, por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor (arts. 819º e 820º do CC).

Significa esta inoponibilidade que a disposição (ou extinção) de um bem ou direito penhorado, efectuada pelo executado, ou por um terceiro em sua representação ou a seu pedido, é válida, já que a penhora limita-se a onerar o direito em causa, mantendo-se o executado como o proprietário do bem ou do direito. No entanto, a eficácia plena daqueles actos praticados ficam dependentes do desfecho da execução, sendo inoponíveis à própria execução.

Trata-se de uma situação de ineficácia; não estamos perante uma invalidade; os actos são válidos, o executado não ficou privado dos poderes de disposição (ou de extinção), mas estes não produzem efeitos enquanto estiverem penhorados. [...]

Por outro lado, no caso de perda da coisa penhorada estabelece o legislador que a penhora pode passar a incidir sobre a eventual indemnização de terceiro (art. 823º do CC).

Neste preceito legal prevê-se um caso de convolação automática da penhora de coisa penhorada, que deixe de figurar no património do executado (por ex. por perda ou expropriação), pelo eventual direito de crédito indemnizatório que possa surgir, em substituição, no património do executado ([..]).

Ora, é justamente por assim ser que se invoca este preceito legal em abono da tese aqui defendida.

É que com a adjudicação do bem penhorado à Recorrente (cônjuge do executado) no processo de inventário, tal bem é retirado do património do executado, sendo substituído neste, pelo correspondente quinhão que veio a caber ao executado (constituído pelas tornas ou direito às tornas).

Ora, por força da situação analógica prevista no art. 823º do CC, deve-se entender que, nestas situações, a penhora, por identidade de razões, se deve transferir (por sub-rogação ou convolação automática) para os bens que hão-se constituir o quinhão do seu cônjuge, devedor, no caso, o valor das tornas, sobre elas passando a incidir a garantia do pagamento do crédito ([...]).

É por tudo isto que o eventual pagamento das tornas ao cônjuge/executado (extinção do direito de crédito que passou a estar penhorado, pelo pagamento) ter-se-á que considerar ineficaz em relação à execução, atento o disposto no arts. 819º e ss. do CC, como bem entendeu o Tribunal Recorrido.

Isso decorre, como resulta do exposto, do facto de se ter concluído que a conversão da penhora primitiva nesta “segunda penhora” torna-se operativa por conversão automática da primeira, numa outra que recairá sobre os bens que constituem o quinhão do executado (no caso concreto, as tornas ou o direito às tornas).

E é também por isso que, contrariamente ao que defende a Recorrente, é aqui aplicável o disposto no art. 820º do CC (a Recorrente referia que este preceito legal não era aplicável porque os bens penhorados não tinham a natureza de um direito de crédito), porque incindindo a nova (convertida) penhora sobre um direito de crédito (o direito às tornas), também a sua extinção (pelo alegado pagamento), como se referiu, é inoponível à execução. [...]

Aqui chegados, pode-se, assim, concluir que:

- Se no processo de Inventário para separação de meações instaurado, na sequência do cumprimento do disposto no art. 740º, nº 1 do CPC, por apenso à acção executiva que corre termos apenas contra um dos cônjuges, os bens imóveis (comuns do casal) que se mostravam penhorados vierem a ser adjudicados ao cônjuge do executado, a penhora que onerava os referidos bens converte-se automaticamente numa outra que recairá sobre os bens que constituem o quinhão do executado (no caso concreto, as tornas ou o direito às tornas);
 
- Nessa medida, qualquer acordo de composição dos quinhões que tenha sido estabelecido pelos cônjuges naquele Inventário, por via do qual se atinja aquele resultado (o bem penhorado seja adjudicado ao cônjuge não executado, ficando o cônjuge executado com direito a tornas, logo, alegadamente, pagas em mão), deve ser considerado ineficaz em relação ao Tribunal da execução por aplicação analógica do regime da penhora de créditos (artºs. 740º, nº 2; cf. art. 777º do CPC; e artºs. 820º e 823º do CC, este por analogia), ficando o executado (ou o cônjuge do executado) obrigado a entregar as tornas no processo executivo - mesmo que estas já tenham sido alegada e indevidamente entregues ao executado pelas razões já atrás explanadas (ineficácia do acto extintivo do direito de crédito – direito às tornas).

Enquanto isso não suceder, como entendeu também o Tribunal Recorrido, a penhora que incide sobre os bens imóveis tem que se manter, pois que, conforme já ficou referido, decorre do disposto no art. 740º, nº 2 do CPC que a penhora primitiva se mantém (“permanece”) “até à nova apreensão”."
 
[MTS]