Nulidade da sentença;
regra da substituição
1. O sumário de STJ 9/4/2019 (2673/12.2T2AVR.P1.S1) é o seguinte:
I - A regra da substituição ao tribunal recorrido na hipótese de nulidade fundada em omissão de pronúncia (art. 665.º, n.º 1 do CPC), implica, por natureza, a supressão de um grau de jurisdição, e por isso não incorre em excesso de pronúncia o acórdão da Relação que, declarando a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, conhece do objeto da apelação na parte que foi omitida, ao invés de ordenar à 1ª instância que o faça.
II - Sendo suscitada por uma parte, por via de recurso, a nulidade da sentença da 1ª instância, e uma outra parte, que inclusivamente aderiu a esse recurso, tido oportunidade de se pronunciar sobre essa nulidade, não tinha o relator na Relação que fazer ouvir esta última parte nos termos do n.º 3 do art. 665.º do CPCivil, de modo que não houve qualquer privação do contraditório nem a produção de qualquer decisão-surpresa.
III - Visando o dona da obra obter uma indemnização do empreiteiro por deficiente execução da obra, está-se perante um caso de responsabilidade contratual e não delitual, mesmo que o dano a indemnizar não recaia sobre a própria obra objeto da empreitada, mas, reflexamente, sobre outra coisa do dono da obra.
IV - Havendo defeitos na obra, presume-se a culpa do empreiteiro na sua execução, mesmo que a obra tenha sido realizada por subempreiteiro.
V - Tendo o subempreiteiro fornecido e aplicado na obra uma forquilha, fabricada por terceiro, que sofreu rutura por deficiência de conceção e de fabrico, havia de se ter reparado nessa deficiência e disso se ter feito ciente a dona da obra. Não se mostrando que assim procedeu, não pode dizer-se que ficou ilidida a presunção de culpa que recaia sobre o empreiteiro, mesmo que a fiscalização da obra tenha achado a obra conforme ao que fora solicitado.
VI - A circunstância das condições gerais do contrato de seguro de responsabilidade civil excluírem das coberturas do seguro as perdas indiretas, o que aliás foi reiterado nas condições particulares, só por si não esvazia de objeto o seguro, cujo interesse para o segurado se mantém.
VII - Resultando o prejuízo do dono da obra de um concurso de causas, umas da sua responsabilidade outras da responsabilidade do empreiteiro, este, não alegando e provando qualquer facto extintivo da obrigação, está normalmente obrigado a reparar o prejuízo na proporção em que, como concausador, foi estabelecida pelo tribunal.
VIII - Sabendo-se que o dono da obra recebeu da sua seguradora, por efeito de um contrato de seguro de danos sobre coisas que celebrou, uma indemnização que reparou parte do dano, mas não alegando e provando o empreiteiro que a abrangência desse seguro se confinava apenas ao dano causado por terceiro (como seria o caso do empreiteiro), não cobrindo também o dano da responsabilidade do dono da obra, não pode dizer-se que com aquele recebimento ficou o crédito do dono da obra sobre o empreiteiro satisfeito, exonerando-se assim o empreiteiro.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Quanto à matéria das conclusões III a IX:
Sustenta-se aqui que o tribunal recorrido conheceu de matérias de que não podia conhecer, violando o n.º 2 do art. 665.º do CPCivil, por isso que não lhe competia substituir-se ao tribunal de 1ª instância como fez.
Mas a Recorrente carece de razão.
Lendo-se o art. 665.º do CPCivil - e como é confirmado (e se dúvidas houvesse, que não há, tão clara é a lei) por Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª ed., pp. 225 e 226), com referência ao art. 715.º do anterior Código de Processo Civil, replicado no art. 665.º do atual Código de Processo Civil - a substituição da Relação ao tribunal de 1.ª instância pode ocorrer em dois casos: no caso de a decisão que põe termo ao processo ser declarada nula, e no caso de o tribunal a quo ter deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio. Como diz o referido autor, a regra da substituição ao tribunal recorrido quer nesta segunda hipótese, quer na hipótese de nulidade fundada em omissão de pronúncia, implica a supressão de um grau de jurisdição. Entendeu a lei, mais acrescenta o autor, que os inconvenientes resultantes da instância única seriam largamente compensados pelos ganhos em termos de celeridade, apreciando o tribunal ad quem as questões controvertidas.
Na situação vertente estava em causa na apelação, tal como fora suscitada pela recorrente EE, S.A., a questão da nulidade da sentença da 1ª instância por omissão de pronúncia.
Para o efeito rege o n.º 1 do art. 665.º do CPCivil. E não, contrariamente ao suposto pela Recorrente, o n.º 2.
Nos termos desse n.º 1 o tribunal de apelação conhece da nulidade, e se a julgar verificada deve conhecer do objeto da apelação, o que implica por natureza a supressão de um grau de jurisdição. E não devolver o processo à instância recorrida para que esta vá conhecer do que não conheceu.
E o que fez o acórdão recorrido foi precisamente, após ter decidido que a nulidade existia (o que a ora Recorrente não contesta), conhecer do objeto da apelação na parte omitida, substituindo-se desse modo à 1ª instância.
Carece assim de aceitação a afirmação da Recorrente no sentido de que o processo havia de ter sido devolvido à 1.ª instância para que esta conhecesse da questão cujo conhecimento omitiu. Como carece de aceitação a afirmação de que, ao substituir-se ao tribunal da 1ª instância, o acórdão recorrido conheceu de questão que não lhe competia conhecer.
Improcedem, pois, as conclusões em destaque.
Quanto à matéria das conclusões X a XV:
Afirma-se aqui que antes de ter conhecido do objeto da apelação na parte omitida (cobertura do seguro) pela 1ª instância, havia a Exma. Relatora que ter ouvido as partes, nos termos do n.º 3 do art. 665.º do CPCivil.
Ter-se-ia, desse modo, privado a ora Recorrente de exercer o contraditório, constituindo o acórdão recorrido uma decisão-surpresa.
Mas não é assim.
Desde logo, é de entender que o n.º 3 do art. 665.º só rege para a hipótese do n.º 2 do mesmo artigo. É nessa hipótese que faz sentido ouvir as partes, pois que, como nos diz Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., p. 278), “pode acontecer que, girando as alegações apenas em torno da decisão recorrida, as partes se tenham abstido de produzir alegações sobre o restante objeto do processo”.
Já na hipótese do n.º 1, que é a que está aqui em tela, a questão da nulidade (que não é de conhecimento oficioso) tem que ser necessariamente suscitada pela parte recorrente (ou pela parte recorrida, no caso de requerer a ampliação do âmbito do recurso), tendo a contraparte a possibilidade de se pronunciar em sede de contra-alegação (ou na sua resposta à ampliação do âmbito do recurso).
Sendo assim, como é, não se coloca nesta hipótese a necessidade de um novo contraditório, nem se pode falar nunca em decisão-surpresa. A decisão sobre a nulidade e sobre a questão omitida insere-se, à partida, no objeto explícito do recurso, e a parte tem sempre possibilidade de se pronunciar.
No caso vertente, a Ré EE, S.A. arguiu no seu recurso subordinado a nulidade da sentença da 1ª instância por omissão de pronúncia; e reiterou que deviam ser julgadas procedentes as exceções que suscitara acerca da exclusão do sinistro das coberturas do seguro e que, por isso, devia ser absolvida do pedido.
Esta era, pois, a questão decidenda, que fazia parte do objeto do recurso tal como estabelecido por quem estava a recorrer.
Da respetiva alegação foi a ora Recorrente notificada, tendo, inclusivamente, aderido a esse recurso subordinado.
Teve assim a ora Recorrente toda a possibilidade de se pronunciar sobre a nulidade e sobre a questão sucedânea da (im)procedência das exceções e, consequentemente, de influenciar a decisão de recurso a proferir adrede.
Não se entende, deste modo, como pode vir argumentar com a privação do contraditório e falar em decisão-surpresa.
Termos em que improcedem as conclusões em destaque."
*3. [Comentário] O STJ decidiu bem qualquer das questões.
Numa feliz expressão escutada algures e que se aproveita para reproduzir, "a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo". Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.
MTS