"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/09/2019

Jurisprudência 2019 (78)


Acção de reivindicação;
impugnação da matéria de facto; requisitos*


I. O sumário de STJ 21/3/2019 (61/17.3T8VRL.G1) é o seguinte:

1- Não constitui condenação ultra petitum a declaração do direito de propriedade feita na decisão de ação de reivindicação, em que é pedido o reconhecimento de tal direito, antes se englobando no pedido formulado, que tem tal declaração implícita.

2- Não cumprem os recorrentes o ónus de impugnação da decisão da matéria de facto imposto pela al. b), do nº1, do art. 640º, do CPC (especificada, indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida), quando se limitam a, meramente generalizando, impugnar factos em bloco, sem especificação concreta das provas, ponto por ponto, com, também, concreta e individualizada análise crítica das provas de cada facto. As referidas faltas de indicação especificada dos meios probatórios e de análise crítica das provas, têm como consequência a rejeição do recurso, nessa parte.

3- Não é de aplicar esta gravosa cominação quando razões de proporcionalidade o reclamem, o que se justifica no caso de a impugnação em bloco ser de restritos pontos de facto encadeados entre si, e agrupados por elos de ligação a traduzir continuidade e a demandar as mesmas concretas provas;

4- Imperando a livre apreciação da prova, que assiste ao julgador
a quo, fundada na imediação, na oralidade e, ainda, na concentração da prova, que lhe tornam percetíveis reações, essenciais para a formação da convicção, as quais não são apreensíveis pelo julgador do tribunal ad quem, só em caso de erro pode este Tribunal alterar a decisão da matéria de facto, nos pontos impugnados. Não impondo a prova produzida julgamento diverso, pois que não ocorreu qualquer erro na apreciação dos factos impugnados, antes a matéria de facto foi livremente e bem decidida na 1ª instância, a decisão deve ser mantida;

5- O esquema da ação de reivindicação preenche-se através de duas finalidades, que correspondem aos dois pedidos que integram e caracterizam a ação (comum) de reivindicação (sujeita ao regime previsto nos artigos 1311º e segs, do C. Civil): um, o reconhecimento/declaração do direito de propriedade (
pronuntiatio), outro, a restituição da coisa (condemnatio);

6- A ação de reivindicação tem como causa de pedir o ato ou facto jurídico concreto que gerou o direito de propriedade (ou outro direito real – cfr art. 1315º, do C. Civil) na esfera jurídica do peticionante e, ainda, os factos demonstrativos da violação desse direito. Ao reivindicante cabe o ónus de alegação e o, correlativo, ónus da prova de que é proprietário da coisa e de que esta se encontra em poder do réu;

7- Pese embora a probatio diabolica característica das ações de reivindicação, onerando-se os peticionantes com uma prova extremamente difícil de, em concreto, realizar, a tarefa dos mesmos é facilitada, pela consagração legal de presunções, designadamente: a presunção de titularidade do direito de propriedade derivada da posse, prevista no nº1, do art. 1268º, do C. Civil;

8- Entre os modos de aquisição do direito de propriedade conta-se a usucapião (art. 1316º, do C. Civil), cuja noção consta do artº 1287º, do C. Civil, o qual consagra que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação, tendo a mesma, prescrição positiva ou aquisitiva (aquisição originária) sempre, na sua génese, uma situação possessória.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2ª - Dos ónus impostos para a impugnação decisão da matéria de facto

Quanto a esta questão, como vimos decidindo em casos similares [...], a fim de fixar definitivamente a matéria de facto e de analisar da modificabilidade da fundamentação jurídica, antes de mais, cumpre decidir se os apelantes impugnantes observaram os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, e que vêm enunciados nos arts 639º e 640º, os quais constituem requisitos habilitadores a que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação e decidi-la.

O nº 1 do art. 639º, consagrando o ónus de alegar e formular conclusões, estabelece que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do tribunal.

E o art. 640º, consagra ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no nº1, que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (negrito nosso).

O n.º 2, do referido artigo, acrescenta que:

a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes [...].

Como resulta do referido preceito, e seguindo a lição de Abrantes Geraldes, quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:

a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; [...]

b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;

c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;(…)

e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente; ([Abrantes Geraldes, 
Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, pags 155-156]). [...]

Contudo, o legislador, ao impor ao recorrente o cumprimento das referidas regras, visou afastar soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente. ([Abrantes Geraldes
, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, 2017, pag. 153])

Não se consagra a possibilidade de repetição do julgamento e de reapreciação de todos os pontos de facto, mas, apenas e só, a reapreciação pelo tribunal superior e, consequente, formação da sua própria convicção (à luz das mesmas regras de direito probatório a que está sujeito o tribunal recorrido) quanto a concretos pontos de facto julgados provados e/ou não provados pelo tribunal recorrido. A possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver a reapreciação global de toda a prova produzida, impondo-se, por isso, ao impugnante, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, a observância das citadas regras. O Tribunal da Relação, sendo de 2ª instância, continua a ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto ([
Ibidem, pág. 153]), estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.

Em suma, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, sendo que, como refere Abrantes Geraldes, esta última exigência (plasmada na transcrita alínea c) do nº 1 do art. 640º) vem reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente (…) por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (
Ibidem, pags 155 e seg e 159).

É entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme que, nas conclusões das alegações, que têm como finalidade delimitar o objeto do recurso (cf. nº4, do art. 635º, do CPC) e fixar as questões a conhecer pelo tribunal ad quem, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição do recurso, como a lei adjetiva comina no nº1, do art. 640º.

Não obstante o NCPC proceder, como vimos, ao alargamento e reforço dos poderes da Relação no domínio da reapreciação da matéria de facto, deve ser rejeitado o recurso, no atinente a tal ponto, quando o recorrente não cumpra os ónus impostos pelos nº1 e 2, a), do art. 640º (15). E impõe-se a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando ocorra:

a) falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto (art. 635º, n.º 4 e 641º, n.º 2, al. b);

b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a);

c) falta de especificação (que pode constar apenas na motivação), dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);

d) falta de indicação exata, (que pode constar apenas na motivação), das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

e) falta de posição expressa, (que pode constar apenas na motivação), sobre o resultado pretendido a cada segmento da impugnação” ([ Abrantes Geraldes, idem, pags 155-156]).

Os critérios têm sido aplicados pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme resulta dos acórdãos proferidos em 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; em 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; em 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, em 12/5/2016: Processo 324/10.9TTALM.L1:S1; em 31/5/2016: Processo 1184/10,5TTMTS.P1:S1, todos in dgsi.net.

Este Tribunal Superior tem vindo a distinguir, quanto aos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, entre:

- ónus primário ou fundamental, que se reportam ao mérito da pretensão;

- ónus secundários, que respeitam a requisitos formais.

Quanto aos requisitos primários, onde inclui a obrigação do recorrente de formular conclusões e nestas especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados e falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, requisitos estes sobre que versa o n.º 1 do art. 640º, do CPC, a jurisprudência tem considerado que aquele critério é de aplicar de forma rigorosa, pelo que sempre que se verifique o incumprimento de algum desses ónus por parte do recorrente se impõe rejeitar o recurso – cfr. Acs. do STJ de 27/10/2016, Processo 110/08.6TTGM.P2.S1 e Processo 3176/11.8TBBCL.G1.S1, in dgsi.net."


Assim, e como se decidiu no Ac. do STJ proferido em 3/5/2016, Processo 17482/13: Sumários, Maio/2016, p 2 “O apelante pretendendo que o Tribunal da Relação reaprecie o julgamento da matéria de facto, para dar cabal cumprimento ao preceituado na al. c) do nº1, do art. 640º, do NCPC (2013), deve ser claro e inequívoco, afirmando que os pontos da matéria de facto impugnados deveriam ter as respostas que segundo a sua apreciação deveriam ter tido, indicando-as, de harmonia com as provas que indicou. II. Tal ónus não se satisfaz expressando o recorrente meras apreciações discordantes do julgamento e juízos de valor críticos, referidos aos depoimentos das testemunhas indicadas. III. A mera indicação de que certos pontos da matéria de facto, que são indicados, não deveriam ter tido as respostas que tiveram, sem se dizer quais as respostas que numa correta apreciação deviam merecer, não cumpre aquele ónus”.

A delimitação tem de ser concreta e específica e o recorrente têm de indicar, com clareza e precisão, os meios de prova em que fundamenta a sua impugnação, bem como as concretas razões de censura. Tal tem de ser especificado quanto a cada concreto facto. Não pode ser efetuado em termos latos, genéricos e em bloco por referência a “factos provados” ou “factos não provados”.


*III. [Comentário] Nada há a objectar ao decidido pelo STJ sobre a questão da impugnação da matéria de facto.

Cabe igualmente salientar que o STJ também decidiu bem a questão relativa à acção de reivindicação. É claro que, como decorre do disposto no art. 1311.º, n.º 1, CC, a procedência da acção de reivindicação -- que é a acção proposta pelo proporietário não possuidor contra o possuidor não proprietário -- pressupõe o reconhecimento do direito de propriedade. 

MTS