"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/09/2019

Jurisprudência 2019 (77)


Alteração da matéria de facto;
dupla conforme*


1. O sumário de STJ 2/4/2019 (5293/15.6T8VNG.P1.S1) é o seguinte:

I. Para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode ser atribuído significado a alterações meramente secundárias ou marginais, sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).

II. Prendendo-se a única questão procedente no Acórdão recorrido com a alteração de um ponto da matéria de facto e tendo este sido absolutamente irrelevante para as decisões das duas instâncias (não tendo qualquer delas alicerçado ou apoiado nele, nem expressa nem implicitamente, a respectiva fundamentação e sendo a mesma a fundamentação jurídica das duas decisões), configura-se o bloqueio recursório conhecido como “dupla conforme”.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como acontece sempre, antes de se conhecer do objecto do recurso, deve o Relator apreciar a sua admissibilidade.

Ambas as partes suscitaram (e trataram) a questão da admissibilidade do recurso: a recorrente para alegar que o recurso era admissível e a recorrida para negar que o fosse.

Não é por acaso.

Alega o recorrente que o Tribunal da Relação julgou parcialmente procedente a apelação, pelo que não se verifica o bloqueio recursivo conhecido como “dupla conforme”. Mas, com o devido respeito, não lhe assiste razão.

Apesar de a acção ter sido julgada parcialmente procedente, o Tribunal a quo confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância.

Foi a seguinte a decisão do Tribunal a quo: “[p]elos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida”.

A verdade é que a única razão que justificou a acção ter sido considerada parcialmente procedente reside no facto de ter sido alterado (rectius: completado) um – um único – dos pontos da factualidade provada, tendo o Tribunal concluído, para usar os seus próprios termos, “não existindo, portanto, fundamento para que este tribunal altere a decisão da matéria factual dada como assente pelo tribunal recorrido excepto no que concerne ao ponto 21. da fundamentação factual”.

Quer dizer: do total de 115 conclusões formuladas pela recorrente na apelação só uma procedeu, sendo, em conformidade alterado o ponto 21. dos factos provados, que passou a ter a seguinte redacção: “As contas apuradas entre Janeiro e Agosto de 2014 do referido estabelecimento demonstram que a 1.ª ré apresentou um acréscimo de facturação na ordem dos € 560.000,00 face ao ano anterior, tendo, no entanto, resultados líquidos negativos, mas será possível obter um … positivo”.

Mas, mais do que o número de conclusões procedentes, o que interessa – o que interessa realmente – é a sua natureza bem como o seu contributo para a criação da convicção do julgador, ou seja, in casu, a susceptibilidade de a questão procedente funcionar como elemento determinante ou fundamento da decisão.

Como é compreensível, não é – não pode ser – atribuído significado, para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, a alterações meramente secundárias ou marginais, sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efectuar a selecção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).

Ora, aquilo que pode verificar-se, no caso em apreço, é, primeiro, e como se disse, a questão procedente se prende com a mera alteração de um único ponto da matéria de facto, e, segundo, é que o facto em causa foi absolutamente irrelevante para as decisões das duas instâncias, não tendo nenhuma delas alicerçado ou apoiado nele, nem expressa nem implicitamente, a respectiva fundamentação e sendo a mesma a fundamentação jurídica das duas decisões.

Diz, a propósito, Abrantes Geraldes, que “[a] expressão 'fundamentação essencialmente diferente' pode porventura, confrontar-nos com o relevo a atribuir a uma eventual modificação da decisão da matéria de facto empreendida pela Relação, ao abrigo do art. 662.º. Todavia, tal evento não apresenta verdadeira autonomia. Uma modificação da matéria de facto provada ou não provada apenas será relevante para aquele efeito na medida em que também implique uma modificação essencial da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da diversidade ou da conformidade das decisões centrada na respetiva motivação” [
Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 364-365 [...]].

Apesar da alteração daquele ponto da matéria de facto, não é possível, assim, dizer-se que o Acórdão da Relação do Porto não confirmou a decisão da 1.ª instância, como pretende a recorrida, ou que o fez usando fundamentação essencialmente diferente.


Configura-se, em síntese, o bloqueio recursório do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, tornando-se, consequentemente, inadmissível o recurso de revista."
 
*3. [Comentário] A acção foi julgada improcedente tanto na 1.ª instância, como na Relação. A única diferença reside em que a Relação alterou um dos factos que foi dado como provado pela 1.ª instância, sem que, no entanto, isso a tenha levado a alterar a improcedência da causa decretada pela 1.ª instância.

Nesta circunstância, é claro que se verifica a dupla conforme e que o STJ decidiu bem.
 
MTS