Despacho saneador;
conhecimento do mérito; princípio do contraditório*
1. O sumário de RG 14/3/2019 (4762/17.8T8GMR-A.G1) é o seguinte:
Não há violação do princípio do contraditório, nem do direito de defesa das partes, se o tribunal recorrido decide conhecer no despacho saneador do objeto da causa, por considerar que se encontrava já munido de todos os elementos de prova necessários para tomar uma decisão conscienciosa.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Da violação do princípio do contraditório e do direito à defesa:
Insurge-se a recorrente contra a decisão recorrida, alegando no essencial que a mesma constitui uma decisão surpresa e que violou o princípio do contraditório, já que foi proferida sem a audição das testemunhas por si arroladas, não lhe dando oportunidade de produzir contraprova relativamente ao teor do relatório pericial existente no processo executivo.
Mais invoca a violação dos princípios da livre apreciação da prova e da fundamentação, que obrigava o tribunal a ter em conta todos os meios de prova constantes do processo e fazer uma avaliação criteriosa, fundada na relevância ou na maior relevância que dá a um deles em detrimento dos demais.
Invoca ainda a violação do seu direito de defesa, legal e constitucionalmente consagrado, nomeadamente os princípios constitucionais da igualdade e do acesso à justiça, e o princípio da igualdade das partes, segundo o qual o tribunal deve assegurar a ambas as partes as mesmas condições, seja para exercer o seu direito à prova de um facto, seja para exercer o seu direito à contraprova ou à prova do contrário de determinado facto.
*
Mas sem razão, podemos adiantar desde já.
Como decorre da decisão proferida, acima transcrita, entendeu o Mm.º Juiz a quo, para proferir decisão de imediato no despacho saneador, que "O estado dos autos, dado o teor do título executivo e o resultado inequívoco do relatório pericial realizado nos autos principais (...) permite proferir decisão quando ao mérito da presente oposição mediante embargos à execução".
E fê-lo ao abrigo do disposto no artº 595º do CPC, no qual se prevê que o despacho saneador destina-se a conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente, e a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial do ou dos pedidos deduzidos, ou de alguma exceção peremptória (alíneas a) e b) do nº 1 do preceito).
Acrescenta ainda o nº 3 do mesmo preceito legal que na hipótese prevista na alínea b), o despacho fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença.
Ou seja, é a própria lei a reconhecer poderes ao juiz de decidir, de acordo com a sua análise dos factos e das provas existentes nos autos, que a questão pode ser decidida logo no despacho saneador apenas com as provas produzidas, não se podendo considerar que haja aqui qualquer violação, quer do princípio do contraditório, quer do direito à defesa que a recorrente sente que lhe foi coartado.
Caber-lhe-ia apenas, caso considerasse que a decisão proferida não foi a acertada em termos de direito, impugná-la quanto ao seu mérito, podendo vir a considerar-se, analisada a decisão proferida, que o juízo do tribunal recorrido não foi o mais correto quanto à suficiência das provas existentes nos autos, carecendo a prova de ser ampliada, nos termos previstos no artº 662º nº2, alínea c) do CPC (em sede de impugnação da matéria de facto).
Do que não podemos falar, contrariamente ao defendido pela recorrente é que tenha havido, na decisão proferida, a violação, por parte do tribunal, quer do princípio do contraditório, quer do seu direito de defesa.
O princípio do contraditório é, de facto, a garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirectamente, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, pp. 7-8; Ac desta Relação de Guimarães, de 26/09/2013; Ac da Relação do Porto de 18.06.2007 - ambos disponíveis em www.dgsi.pt; e Acórdão do Tribunal Constitucional - Acórdãos do TC, 11.° vol., pág. 741 e 20.° vol., pág. 495).
Acresce que o princípio do contraditório só é correctamente observado se for de molde a que cada uma das partes possa, não apenas deduzir as suas razões, de facto e de direito, e oferecer as suas provas, mas também controlar as provas do adversário, discreteando sobre o valor e resultado de umas e de outras.
Ora, a recorrente em momento algum das suas alegações refere que lhe tenha sido coartada a possibilidade de participar efectivamente em todo o decurso do processo, nomeadamente na produção da prova (pericial) ordenada pelo tribunal no processo executivo, tendo inclusivamente, como consta da matéria de facto, solicitado esclarecimentos ao sr. perito, após a apresentação do respectivo relatório, que lhos prestou.
Questão bem diferente, que a recorrente também vem suscitar nos autos, é a de saber se poderia o tribunal decidir, como decidiu, à margem das provas por si indicadas, considerando que se encontrava já munido de todos os elementos de prova necessários para tomar uma decisão conscienciosa, decidindo do mérito da causa sem necessidade de fazer seguir o processo para julgamento, nomeadamente para produção de outras provas, entre elas as indicadas pela embargante. Essa tomada de decisão, que a lei lhe permite como vimos (em homenagem ao princípio da economia processual consagrada no artº 130º do CPC), não contende, no entanto, com a alegada violação do princípio do contraditório nem com a alegada violação do direito de defesa da recorrente, pois as provas indicadas pelas partes servem apenas para formar a convicção do julgador e ele, em consciência, pode já considerar-se satisfeito com as provas produzidas nos autos no momento de proferir o despacho saneador.
Também não se pode falar aqui de uma decisão surpresa, porque as regras processuais são do conhecimento das partes e dos seus mandatários, sendo admissível, à luz do citado artº 595º, que o juiz possa decidir a questão suscitada nos autos logo no despacho saneador, o qual tem como uma das suas funções, expressamente consagradas na lei, a de nele poder vir a conhecer-se do mérito da causa, ficando aquele despacho a ter o efeito de uma sentença final.
Por outro lado, o direito à defesa - traduzido no direito das partes de produzirem todos os meios de prova por si indicados e admitidos nos autos, nomeadamente o direito de produzirem a prova testemunhal por si indicada -, é um direito a respeitar pelo tribunal em sede de audiência de julgamento, mas esse direito das partes cede, caso a decisão seja proferida no despacho saneador, perante o poder que o juiz tem de prescindir da produção das provas indicadas pelas partes, se as considerar desnecessárias para a decisão da causa.
E claro que este tribunal de recurso não pode apreciar se as provas indicadas pelas partes eram ou não necessárias para a decisão da causa, se a embargante não põe em causa no recurso o mérito da decisão; se se limita a invocar – como faz a apelante -, a violação de princípios processuais relacionados com a sua defesa e apenas susceptíveis de afetar a validade formal da decisão; não a sua validade substancial.
Improcedem, assim, na totalidade, as alegações de recurso da apelante."
*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não parece que a RG tenha decidido nada bem.
O art. 595.º, n.º 1, al. b), CPC permite que o juiz conheça do mérito no despacho saneador, se o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas. Supõe-se que esta condição não se verifica se alguma das partes -- e, em especial, a parte que seria prejudicada com o imediato conhecimento do mérito -- tiver requerido provas a realizar na audiência final. Não conhecendo o tribunal que provas vão ser produzidas pela parte, não pode esse tribunal afirmar que não necessita dessas provas para decidir. Logo, não está preenchida a condição estabelecida no art. 595.º, n.º 1, al. b), CPC.
MTS