"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/09/2019

Jurisprudência 2019 (80)


Acção de divórcio; competência internacional;
Reg. 2201/2003


1. O sumário de RE 28/3/2019 (2428/17.8T8FAR.E1) é o seguinte:

I - Mostrando-se adquirido nos autos que autor e ré, ambos de nacionalidade francesa, viviam em França no mês de Outubro de 2016, quando o autor instaurou a ação de divórcio no Juízo de Família e Menores de Faro, em 11.08.2017, não se mostrava preenchido nenhum dos requisitos de atribuição de competência ao tribunal português para julgar a ação, os quais se encontram previstos no nº 1 do artigo 3º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27 de Novembro, nomeadamente ter o autor residido em Portugal pelo menos no ano imediatamente anterior à data do pedido.

II - Ao propor a ação de divórcio em Portugal indicando como residência da ré uma morada que o autor sabia não corresponder à morada daquela, o mesmo inviabilizou a citação da ré, pelo que face ao disposto no artigo 16º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, não pode considerar-se instaurada na data da sua apresentação a ação de divórcio no tribunal português. Situação diferente ocorre com a ação de divórcio instaurada pela recorrida no tribunal francês em 19.09.2017, onde o réu foi devidamente citado, pelo que esta ação sempre teria de considerar-se instaurada em primeiro lugar.

III – Neste circunstancialismo, caberia ao tribunal português suspender oficiosamente a instância até que fosse estabelecida a competência do tribunal francês, mas tendo este tribunal estabelecido já a sua competência para o processo de divórcio, só restava ao tribunal português declarar-se incompetente a favor daquele (artigo 19º, nº 1 e nº 3, do Regulamento (CE) nº 2201/2003).

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nas conclusões 5ª e seguintes sustenta o recorrente que o Juízo de Família e Menores de Faro é o competente internacionalmente para dirimir o divórcio entre ele e a recorrida, afirmando que isso resulta das disposições conjugadas dos artigos 72º e 62º, al. a) do CPC, 3º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27 de Novembro[4], imputando ainda à decisão recorrida a violação do artigo 19º daquele Regulamento.

Vejamos, pois, se lhe assiste razão.

Prescreve o nº 1 do artigo 3º do Regulamento, que são competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:

a) Em cujo território se situe:

- a residência habitual dos cônjuges, ou

- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
- a residência habitual do requerido, ou

- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu “domicílio”;

b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do “domicílio” comum.

Antes de mais importa salientar, como decorre do primado do direito comunitário, da sua prevalência sobre o direito português e da sua aplicação direta na ordem interna que, à luz do Regulamento, não cabe aferir da eventual aplicação do disposto em normas de direito nacional, como as vertidas no Código de Processo Civil, nomeadamente as dos artigos 72º e 62º, al. a).

Isto mesmo decorre do Regulamento onde se estabelece que as regras de competência são diretamente aplicáveis nos Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia - cfr. art. 72º do Regulamento.

Assim, tendo o recorrente e a recorrida nacionalidade francesa, mas residindo ambos em Portugal, de acordo com o que foi alegado pelo autor na petição inicial, nada obstaria à instauração da presente ação de divórcio em Portugal.

Todavia, a factualidade apurada no processo de divórcio instaurado em França pela recorrida, não confirma de modo algum que ambas as partes tenham residência em Portugal, de modo a poder afirmar-se em termos inequívocos a competência dos tribunais portugueses.

A este propósito, com inteira pertinência para o caso, escreveu-se no Acórdão de 12 de Abril de 2018 proferido pelo Tribunal de Grande Instância de Aix en Provence:

«(…), no caso em apreço consta dos debates que os esposos viveram durante certo tempo em Portugal, posto que o réu apresenta o certificado de inscrição no registo dos franceses estabelecidos fora do território francês. Contudo, notar-se-á que o referido certificado foi lavrado no mês de Junho de 2016 e que depois, o Senhor BB tem iniciado um processo de divórcio em França por meio de pedido apresentado na Secretaria no dia 21 de Outubro de 2016 no qual ambos os esposos aparecem com domicílio em França e no território da competência do juiz de família do Tribunal de Grande Instância de Aixe n Provence. Por outra parte, tiveram lugar numerosas trocas entre os advogados das partes como consta dos seus escritos.

Contudo, o Senhor BB desistiu deste procedimento, e no dia 1 de Agosto de 2017 submeteu o caso ao juiz português. O acórdão de aceitação da desistência do juiz francês é de 5 de Setembro de 2017.

Em face da desistência de seu esposo, a Senhora submeteu o assunto ao juiz francês por pedido apresentado pela própria no dia 18 de Setembro de 2017, desconhecendo obviamente que o Senhor tinha recorrido ao juiz português.

Assim, o réu que mantém hoje que só o juiz português seria competente para conhecer do pedido de divórcio, recorreu primeiro ao juiz francês. Não é correto em consequência manter hoje o contrário quando os critérios de competência são os mesmos, e o mesmo nunca concluiu pela incompetência do presente tribunal no quadro do seu primeiro processo. Faz assim manifesta prova de má-fé, sem dúvida orientada por motivos fiscais ou financeiros vantajosos para os seus interesses pessoais, mas que não podem ser aceites por este tribunal que não pode ser interessado e desinteressado conforme os interesses dos particulares.

Finalmente, se o Senhor BB deseja outra vez viver sozinho e instalar-se definitivamente em Portugal (também por motivos fiscais que lhe concernem a ele só) isto não tem consequências sobre o presente procedimento.

Permanece constante que os esposos viviam ambos em França no mês de Outubro de 2016, que por este motivo a sua residência habitual era situada em França ao menos desde um ano antes do pedido da Senhora e que um dos esposos ao menos continua a residir em França, que ainda ambos são de nacionalidade francesa.

Assim, o único juiz competente é o juiz francês deste tribunal.

Em consequência, a exceção de incompetência será julgada improcedente e as partes citadas para uma tentativa de conciliação».

Ora, mostrando-se adquirido no processo que recorrente e recorrida viviam ambos em França no mês de Outubro de 2016, quando o recorrente instaurou a ação de divórcio no Juízo de Família e Menores de Faro em 11.08.2017, não se mostrava preenchido nenhum dos requisitos de atribuição de competência ao tribunal português para julgar a ação, nomeadamente ter o recorrente residido em Portugal pelo menos no ano imediatamente anterior à data do pedido.

Tanto bastaria, pois, para claudicar a pretensão do recorrente de ver atribuída a competência ao Juízo de Família e Menores de Faro para julgar a ação de divórcio que aí instaurou contra a recorrida."

[MTS]