"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/09/2019

Jurisprudência 2019 (74)


Juízos do trabalho; 
competência material; competência por conexão
 

1. O sumário de RL 10/4/2019 (676/18.2T8LRS-A.L1-4) é o seguinte:

I – Numa ação em que a causa de pedir, complexa, assenta, por um lado, num alegado contrato de trabalho que existiu entre a Autora e o 1º Réu e na violação, por parte deste, de deveres laborais, designadamente do dever de lealdade para com a sua entidade empregadora e, por outro lado, num alegado conluio entre o 1º Réu e a 2ª Ré, durante a vigência daquele contrato de trabalho, conluio traduzido na circunstância desta, em concorrência desleal, ter levado o 1º Réu a colaborar e a coordenar serviços prestados pela 2ª Ré a clientes da Autora, na sequência do que ocorreu a transferência para a 2ª Ré de boa parte do negócio que existia entre a Autora e uma sua cliente, para além de a 2ª Ré ter levado a que, quer o 1º Réu, quer outros quatro colaboradores da Autora, tivessem feito cessar os seus contratos de trabalho com esta e celebrassem imediatamente contratos de trabalho com a 2ª Ré, decorrendo de tudo isto prejuízos para a Autora, a Secção do Trabalho é competente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de indemnização a pagar solidariamente pelos Réus a título de lucros cessantes;

II – Relativamente ao 1º Réu aquela competência decorre do disposto no art. 126º n.º 1 al. b) da LOSJ aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26-08, enquanto em relação à 2ª Ré essa competência verifica-se por conexão, nos termos da al. n) do mesmo preceito legal.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] é-nos colocada a questão de saber se o Tribunal a quo, enquanto Juízo ou Secção do Trabalho, tem, ou não, competência em razão da matéria para a apreciação do litígio que envolve as partes, mais concretamente no que concerne à responsabilização da Ré/apelante CCC, S.A., a par do 1º Réu BBB, pelo pagamento da indemnização pedida pela Autora/apelada AAA, S.A. através da presente ação.

Como se sabe, a competência em razão da matéria, enquanto medida da jurisdição atribuída a um tribunal e que o legitima a conhecer de um determinado litígio, constitui um pressuposto processual que visa garantir que a decisão final é emanada do tribunal mais idóneo para o efeito [...]. [...]

Ora, a Constituição da República Portuguesa no n.º 1 do seu art. 211º estabelece que «[o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».

Por seu turno, o Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no art. 1º n.º 2 al. a) do Código de Processo de Trabalho, em consonância com o mencionado preceito constitucional e depois de estipular no n.º 1 do seu art. 60º que «[a] competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código», prevê no art. 64º que «[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», sendo que a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26-08 e que entrou em vigor em 1 de setembro de 2014, depois de estabelecer no n.º 1 do art. 38º que «[a] competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei» e de estipular no n.º 2 do art. 40º que «[a] presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada», define no seu art. 126º a competência cível das Secções do Trabalho, estipulando-se no n.º 1 desse preceito e no que aqui releva que «[c]ompete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível: …b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado… n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente».

Posto isto e como também se sabe, a competência dos tribunais, em razão da matéria, determina-se pelos termos em que o Autor formula o pedido, o “quid disputatum” no dizer do Prof. Manuel da Andrade, parafraseando Redenti, (ob. cit. pagª 91), e apresenta a correspondente causa de pedir [...].

No caso vertente e como decorre do que se referiu no precedente relatório, a causa de pedir é complexa já que assentando, por um lado, num alegado contrato de trabalho que existiu entre a Autora “AAA, S.A.” e o 1º Réu BBB, contrato que perdurou de 01.06.1998 até 21.08.2017, bem como na violação, por parte deste, de deveres laborais enquanto Chefe de Serviço (Chefe Operacional e Comercial) do Departamento de Obras de Arte da Autora, designadamente do dever de lealdade para com a sua entidade empregadora, assenta também num alegado conluio entre o 1º Réu BBB, e a 2ª Ré “CCC, S.A.”, durante a vigência daquele contrato de trabalho, traduzido na circunstância desta, em concorrência desleal, ter levado aquele 1º Réu a colaborar e a coordenar serviços prestados pela 2ª Ré a clientes da Autora, na sequência do que ocorreu a transferência para a 2ª Ré de boa parte do negócio que existia entre a Autora e a sua cliente Fundação Calouste Gulbenkian, para além de a 2ª Ré ter levado a que, quer o 1º Réu BBB, quer outros quatro colaboradores da Autora no mesmo Departamento de Obras de Arte – (…) (Motorista), (…) (Embalador), (…) (Embalador) e (…) (Motorista) – tivessem feito cessar os seus contratos de trabalho com esta e celebrassem imediatamente contratos de trabalho com a 2ª Ré, decorrendo de tudo isto prejuízos para a Autora e que só em termos de lucros cessantes se traduzem num valor de € 250.000,00, montante que esta pede sejam ambos os Réus solidariamente condenados a pagar-lhe.

Aqui chegados, importa considerar que no recurso em causa não se suscita propriamente a questão da competência em razão da matéria do Tribunal a quo para a apreciação do litígio configurado na petição inicial deduzida pela Autora “AAA, S.A.” contra o 1º Réu BBB, já que, como referimos, a pretensão deduzida por aquela contra este assenta nitidamente no contrato de trabalho que, alegadamente, existiu entre ambos e que perdurou entre 01.06.1998 e 21.08.2017, bem como na violação de deveres laborais por parte deste 1º Réu durante a vigência desse contrato, competência que claramente decorre do disposto na mencionada al. b) do n.º 1 do art. 126º da referida LOSJ.

A questão que, verdadeiramente, nos é suscitada incide sobre a verificação da competência em razão da matéria, do Tribunal a quo, enquanto Secção do Trabalho, no que concerne à pretendida responsabilização da Ré/apelante CCC“, S.A.”, a par do 1º Réu BBB, pelo pagamento da indemnização pedida pela Autora “AAA, S.A.” através da presente ação, pretensão que, como também já referimos, assenta na existência do mencionado conluio que terá existido entre o 1º Réu BBB e a 2ª Ré “CCC, S.A.”, durante a vigência do contrato de trabalho que existiu entre aquele e a Autora.

Verifica-se, deste modo, que a 2ª Ré “CCC, S.A.” constitui um terceiro relativamente a esta relação contratual laboral.

Contudo, na medida em que, alegadamente através deste 1º Réu BBB, e em conluio com ele durante a vigência do contrato de trabalho que o mesmo mantinha com a Autora, a 2ª Ré “CCC, S.A.”, em concorrência desleal, terá levado o 1º Réu a colaborar e a coordenar serviços prestados pela 2ª Ré a clientes da Autora, na sequência do que terá ocorrido a transferência de uma boa parte do negócio que existia entre esta e a sua cliente FCG, para além de ter levado a que, quer o 1º Réu BBB, quer outros quatro trabalhadores qualificados da Autora tivessem feito cessar os contratos de trabalho que com esta mantinham e celebrado imediatamente contratos de trabalho com a 2ª Ré, decorrendo de tudo isto prejuízos para a Autora, verificamos que a 2ª Ré “CCC, S.A.” surge nos presentes autos numa relação emergente de responsabilidade civil para com a Autora, responsabilidade conexa com aquela relação de trabalho, por dependência, porquanto aquela relação emergente de responsabilidade civil não vive nem subsiste desligada desta relação laboral. Isto é e dito de outro modo, a mencionada relação emergente de responsabilidade civil só existe porque, alegadamente, se verificou no âmbito da relação contratual de trabalho que existiu entre a Autora “AAA, S.A.” e o 1º Réu BBB, uma vez que este, alegadamente em conluio com a 2ª Ré “CCC, S.A.”, terá colaborado e coordenado serviços prestados pela 2ª Ré a clientes que eram da Autora, na sequência do que terá ocorrido a transferência de boa parte do negócio que existia entre esta e a sua cliente FCG, para além de, alegadamente a 2ª Ré “CCC, S.A.” ter levado a que, quer o 1º Réu BBB, quer outros quatro trabalhadores qualificados da Autora tivessem feito cessar os contratos de trabalho que com esta mantinham e celebrado imediatamente contratos de trabalho com a 2ª Ré, decorrendo de tudo isso prejuízos para a Autora, razão pela qual esta formula o pedido de condenação conjunta, solidária, de ambos os Réus.

Verificam-se, portanto e também a nosso ver, os pressupostos legais mencionados na al. n) do n.º 1 do art. 126º da LOSJ aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26-08 e que, por conexão por dependência, conferem ao Tribunal a quo, enquanto Secção do Trabalho, competência em razão da matéria para a apreciação integral da presente lide, não merecendo censura a decisão recorrida ao haver concluído do mesmo modo."

MTS