"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/09/2019

Jurisprudência 2019 (73)


Indeferimento liminar;
decisão-surpresa*

1. O sumário de RP 8/3/2019 (14727/17.4T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório previsto no art.º3º do CPC, não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar).

II - A decisão-surpresa prevista no nº3 do mesmo artigo ocorre se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo.

III - No caso dos autos, não pode de todo considerar-se que estamos em presença de uma questão jurídica inesperada ou surpreendente no apontado sentido, porquanto a questão da incompetência material dos tribunais judiciais, para além de conhecimento oficioso do tribunal, tem sido objecto de inúmeras decisões dos tribunais superiores.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] resulta claro ser a seguinte a questão suscitada neste recurso:

A de saber se no caso foi cometida nulidade processual (a do art.º195º, nº1 CPC) pela omissão de prévia audição da exequente relativamente ao despacho de indeferimento liminar que foi proferido.

Para responder a esta questão importa considerar os elementos processuais antes melhor descritos no ponto I. desta decisão.

É sabido que no art.º 590 nº1 do CPC está previsto o despacho de indeferimento liminar na acção declarativa “quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente aplicando-se o disposto no art.º 560”.

Na execução compete ao juiz proferir despacho liminar, indeferindo liminarmente o requerimento executivo quando “ocorram excepções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso” (cf. o art.º 726 nº1 e 2 b) CPC).

Ora a incompetência material do tribunal consubstancia uma excepção dilatória insuprível (cf. os artigos 577º e 578º do CPC) e como tal sobre ela não pode haver lugar ao despacho de aperfeiçoamento.

Segundo o disposto no artº 3º, nº3 do CPC, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Sabe-se que o princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de – “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (cf. acórdão do Tribunal Constitucional nº177/2000, DR, II série, de 27/10/2000).

Conhece-se igualmente que a norma do referido nº3 do art.º3º do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.

Mais, a referida norma consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, garantindo efectivamente às partes a sua participação efectiva no desenvolvimento de todo o litígio.

Por outro lado, tem-se entendido que a violação do contraditório gera nulidade processual, a apreciar nos termos gerais (art.º 195º CPC - anterior art.º 201º), por ser susceptível de influir no exame e decisão da causa (cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol.1º, 1999, pág.9; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 48).

Ora no caso concreto, o que importa apurar é se a exigência de audição prévia também funciona (ou se funciona sempre) em relação ao despacho de indeferimento liminar.

Perante tal questão duas respostas têm vindo a ser dadas:

a) Uma no sentido de que o indeferimento liminar não é excepção, logo impõe-se sempre um despacho pré liminar de audição (cf. entre ouros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 29.01.2018, processo nº 3550/17.6T8CBR.C1 e os Acórdãos da Relação de Lisboa de 10.05.2018, processo nº 16173/17.0T8LSB.L1 e de 24.04.2018, processo nº 15582/17.0T8LSB.L1.7, todos em www.dgsi.pt).

b) Outra segundo a qual, em caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor/exequente sobre o motivo do indeferimento (cf. entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2015, processo nº 116/14.6YLSB, o Acórdão da relação de Coimbra de 27.02.2018, processo nº 5500/17.0T8CBR.C1 e os Acórdão da Relação do Porto de 04.11.2008, proc. nº 0826336 e de 13.06.2018, processo nº 1535/17.5T8PRT.P1, também todos eles em www.dgsi.pt).

Podemos desde já dizer que o nosso entendimento vai no sentido destas últimas decisões, sendo as razões que o justificam as seguintes:

Através da apresentação em juízo da petição ou requerimento inicial o autor exerce o direito de acção, iniciando-se a relação jurídico-processual apenas relativa ao autor, pois o “conflito de interesses que a acção pressupõe” (art.º 3º, nº 1 do CPC) só se inicia com o chamamento à “lide” do réu, e por conseguinte apenas a partir daqui é que nasce o que é costume designar-se por “estrutura dialéctica do processo”.

Ora, o despacho de indeferimento liminar é uma espécie dentro do género da “rejeição liminar”, e ocorre no caso de inviabilidade “lato sensu” da pretensão (onde se insere a falta insuprível de pressupostos processuais), em que a lei elenca taxativamente as causas relevantes da rejeição.

Sendo assim, a obrigação de prolação de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar parece ser em si mesmo contraditório porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente.

Em segundo lugar, não parece que se deva, em rigor, falar de “decisão surpresa “ na prolação de despacho de indeferimento liminar por falta insuprível de pressuposto processual porque é a própria lei que o prevê expressamente como causa específica de rejeição.

Na verdade, a lei adjectiva define as causas de indeferimento liminar, consubstanciando-se em situações de inviabilidade “lato sensu”, e como tal insupríveis, tornando inútil qualquer instrução e discussão posterior, patenteando-se, então, ser desnecessária a audição prévia sobre um projecto de indeferimento.

Acresce que nos casos de indeferimento liminar a lei concede ao autor a possibilidade de juntar nova petição, considerando-se a mesma proposta aquando da primeira (art.º 560º e 690º, nº1 CPC). E isto porque a instância não se estabilizou.

Mais, nas situações de indeferimento liminar, a lei difere o contraditório na medida em que se prevê sempre a admissibilidade do recurso, independentemente do valor e da sucumbência e se determina que o réu seja citado para os termos do recurso e da causa (cf. os arts .629º, nº 3, alínea c) e 641º, nº7 do CPC).

Daqui parece pois resultar a dispensa da audição prévia do autor, porque desnecessária, permitindo-se o contraditório diferido e em situação de igualdade.

Por outro lado, a decisão-surpresa prevista no art.º 3º, nº3 do CPC pressupõe que a parte não possa perspectivar como sendo possível, ou seja, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse prognosticado no processo.

Dizendo de outra forma, a decisão-surpresa ocorre se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, surgindo, pois, a sua imprevisibilidade como marca definidora (cf. os Acórdãos do STJ de 27.09.2011, processo nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1) e de 4.06.2009, processo nº 09B0523), ambos em www.dgsi.pt).

Ora, na situação em apreço, não pode de todo considerar-se que estamos em presença de uma questão jurídica inesperada ou surpreendente no apontado sentido, porquanto a questão da incompetência material dos tribunais judiciais, para além de conhecimento oficioso do tribunal, tem sido decidida no sentido defendido na decisão recorrida (cf. entre outros os acórdão supra citados em b)).

Ou seja, tal questão não surge, neste contexto, como uma nova questão jurídica que justifique uma prévia intervenção jurisdicional de observância do disposto no nº 3 do art.º 3º do Cód. Processo Civil, não consubstanciando, pois, a decisão recorrida uma decisão-surpresa.

Em suma, constituindo a incompetência material do tribunal uma excepção dilatória insuprível (cf. os artigos 577º e 578º do CPC) não se pode afirmar que a recorrente não pudesse prognosticar o seu conhecimento oficioso por parte do Tribunal “a quo”."

*3. [Comentário] A RL decidiu inequivocamente bem. 

O entendimento contrário só pode fundar-se no equívoco de que a decisão-surpresa é toda a decisão com a qual a parte não contava. A verdade é que a decisão-surpresa é apenas aquela em que o tribunal decide algo com que a parte, de forma previsível, não podia contar.  

Chama-se a atenção para que, ao contrário do que se refere no acórdão, RL 10/5/2018 (16173/17.0T8LSB.L1) e RL 24/04/2018 (15582/17.0T8LSB.L1.7) não entenderam que o despacho liminar sem prévia audição do autor, requerente ou exequente viola a probição das decisões-surpresa.

MTS