"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/11/2019

Jurisprudência constitucional (160)


Custas de parte; 
nota justificativa; reclamação


TC 13/11/2019 (661/2019) decidiu

[...] Julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 33.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, com o sentido de que “[d]a decisão proferida cabe recurso em um grau se o valor da nota exceder 50 UC”, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias, constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), em conjugação com o artigo 20.º, n.º 1, da CRP.



Jurisprudência 2019 (129)

 
Revista excepcional;
âmbito do recurso
 

1. O sumário de STJ 23/5/2019 (3583/16.40T8BR.C1.S2) é o seguinte:
 
 I - Os poderes cognitivos da conferência julgadora, nos casos de admissão excecional da revista, circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do art. 672.º do CPC.

II - Consequentemente, o objeto do recurso, delimitado nos termos do referido em I, não abarca quaisquer outras questões que, cumulativa e paralelamente, hajam sido enunciadas na revista.

III - Os certificados sanitários para exportação emitidos no Vietnam farão prova nos mesmos moldes que os documentos da mesma natureza emitidos em Portugal (art. 365.º, n.ºs 1 e 2 do CC), sendo, assim, tidos como documentos autênticos (art. 363.º, n.º 2, do CC).

IV - A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se, nos termos do art. 371.º, n.º 1, do CC, aos factos, praticados ou percecionados pela autoridade ou oficial público, de que emanam os documentos, já não abarcando, porém, os níveis de histamina presente no pescado, situação que ultrapassa o alcance das perceções do documentador.

V - Não estando a atestação da conformidade com os critérios microbiológicos estabelecidos pelo Regulamento (CE) n.º 2073/2005, da Comissão, de 15-12, abarcada pela força probatória plena que deve ser reconhecida aos certificados sanitários, forçoso se torna concluir que é inaplicável a proibição de recurso à prova testemunhal que se acha estabelecida no n.º 2 do art. 393.º do CC.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Tem-se vindo a entender neste Supremo Tribunal de Justiça que, nos casos de admissão excecional da revista, os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

Se assim não fosse, afrontar-se-ia o cariz restritivo da admissibilidade da revista subjacente à instituição da dupla conforme [A este respeito, atente-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto e ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, Almedina, págs. 283 e 284 e, entre tantos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2013 no processo n.º 675/08.2TBCBR.C1.S1 e acessível em www.dgsi.pt.] e contornar-se-ia o respetivo regime legal.

Consequentemente, o objeto do recurso, assim delimitado, não abarca quaisquer outras questões que, cumulativa e paralelamente, hajam sido enunciadas na revista [...].

Revertendo estas considerações para a revista sub juditio alcança-se a conclusão de que o acórdão da formação de apreciação preliminar ajuizou que apenas a questão atinente ao âmbito da força probatória recognoscível aos certificados sanitários para exportação emitidos no ...e [...] ostentava a relevância jurídica qualificada que é erigida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil como fundamento de admissibilidade da revista excecional.

Assim, atento o cariz definitivo daquele aresto (n.º 1 do artigo 620.º e n.º 4 do artigo 672.º, ambos do Código de Processo Civil), é de considerar que as remanescentes questões suscitadas no recurso – quais sejam as atinentes à perfeição do cumprimento do contrato de compra e venda e à legitimidade substancial da resolução contratual encetada pela recorrida – não devem ser apreciadas.

É que o acórdão da formação de apreciação preliminar não afirmou, quanto a essas questões, a verificação de qualquer um dos pressupostos de que depende a admissibilidade da revista excecional, pelo que, em decorrência do que antes se expendeu, há que reconhecer que as mesmas estão excluídas do âmbito da revista.

E, mesmo que assim não se devesse entender, o certo é que – como a própria recorrente implicitamente reconheceu no requerimento de interposição de recurso –, o acórdão recorrido confirmou a sentença quanto àquele aspeto, não se tendo, para tanto, socorrido de fundamentação que se possa qualificar como sendo essencialmente diversa.

Constata-se, pois e quanto àquelas questões, que sempre ocorreria o obstáculo à admissão da revista normal que é prevenido pelo n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil.

Assim, na concorrência destes dois fundamentos, torna-se patente que as sobreditas questões se acham inapelavelmente excluídas do âmbito da presente revista.

Impõe-se, em consonância, enjeitar o conhecimento desse segmento do objeto da revista (alínea b) do n.º 1 do artigo 652.º e n.º 1 do artigo 655.º, ambos do Código de Processo Civil)."
 
[MTS]




28/11/2019

Responsabilidade pelo pagamento da taxa de justiça no recurso procedente da decisão de indeferimento liminar de procedimento cautelar


[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]



Bibliografia (860)


-- Danelzik, K. S., Die Gerichtsstandvereinbarung zwischen ZPO, EuGVVO und HGÜ (Nomos: Baden-Baden 2019)



Bibliografia (859)

 
-- Autorità garante per l’infanzia e l’adolescenza (Ed.), La Convenzione delle Nazioni Unite sui diritti dell’infanzia e dell’adolescenza: conquiste e prospettive a 30 anni dall’adozione (Roma 2019)
 
 

Jurisprudência 2019 (128)

 
Dupla conforme;
requisitos*
 
 
1. O sumário de STJ 23/5/2019 (2222/11.0TBVCT.G1.S1) é o seguinte:

I - A figura da dupla conforme, consagrada no art. 671.º, n.º 3, do CPC, consubstancia uma relevante excepção ao preceituado no n.º 1 desse preceito, traduzida na inadmissibilidade de recurso de acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e sem fundamentação substancialmente diversa, a decisão proferida na 1.ª instância.

II - O ponto de referência para a verificação de uma situação de dupla conforme é um acórdão da Relação que, incidindo sobre a decisão prolatada na 1.ª instância, conheça do mérito da causa ou determine a extinção – total ou parcial – da instância.

III - Assim sendo, a decisão da 1.ª instância relevante para um juízo de conformidade com o pertinente acórdão, tem de necessariamente constituir objecto da parte dispositiva ou estatuitória final de tal acórdão, ou seja, tem de a conclusão – thema decisum – deste aresto versar/recair sobre essa decisão, outrossim a confirmando sem divergência substancial de fundamentação.

IV - Essa decisão recorrida, manante da 1.ª instância, não poderá ser ou consubstanciar um qualquer pronunciamento emitido no desenvolvimento da peça impugnada – um elemento intercalar do respectivo arrasoado ou parte motivatória – mas um acto judicativo final, no sentido de integrante ou representativo do seu ultimador dispositivo, do seu terminante e verdadeiro decreto.

V - Assim, ainda que respeito da questão da presunção de culpa a que se refere o art. 503.º, n.º 3, do CC tenha ocorrido veredicto por parte do aresto sindicador coincidente com o que lhe foi conferido no âmbito da sentença recorrida, não tendo tal questão sido objecto ou integrado a parte decisória final quer da sentença, quer do acórdão sobre esta incidente, não se verifica qualquer impedimento decorrente da dupla conforme, podendo a mesma ser novamente suscitada no quadro da revista interposta pelos recorrentes a respeito da responsabilidade pela produção do acidente.

VI - Já quanto à questão da quantificação da indemnização destinada a ressarcir os danos não patrimoniais da vítima do acidente, uma vez que, como vem sendo defendido a nível doutrinal e jurisprudencial, a admissibilidade ou não do recurso normal de revista deve fazer-se mediante o confronto de cada um dos vários segmentos decisórios, verificando-se uma situação de dupla conforme no tocante ao valor da indemnização devido a este título por parte da sentença e do acórdão recorrido (€ 80 000) e não sendo a circunstância do valor final da indemnização variar em função da percentagem de responsabilidade atribuída pelo produção do acidente (75% pela 1.ª instância e 70% pela Relação) impeditiva a que se verifique uma situação dupla conforme, não é o recurso de revista admissível nesta parte.

VII - O conceito de velocidade excessiva, definido no art. 24.º, n.º 1, do CEst, contempla duas realidades distintas: uma vertente absoluta, verificada sempre que se ultrapassem os limites legalmente estipulados, e uma vertente relativa, quando a não adequação da marcha à situação concreta, implica que o condutor não consiga parar no espaço visível à sua frente.

VIII - Ainda que constitua entendimento generalizado que não pode exigir-se a um condutor que preveja ou conte com os comportamentos imprudentes, culposos, dos demais utentes da estrada, a diminuição de velocidade de um motociclo, a despeito de súbita, não constitui um facto imprevisível que, repentinamente, se tenha interposto ou intrometido entre a visão do condutor e o limite do horizonte por ela proporcionado que leve à desconsideração de uma situação de excesso de velocidade.

IX - Resultando da matéria de facto provada que o veículo automóvel em causa nos autos embateu no motociclo que circulava na sua dianteira, encontrando-se ambos no lado esquerdo da via de uma auto-estrada, quando circulava animado de uma velocidade não inferior a 110/kms/hora e que deixou um rasto de travagem de 16,50 metros a anteceder o embate, conclui-se que o condutor desse veículo seguia com uma velocidade excessiva e sem observar a distância mínima suficiente para evitar o embate, incorrendo em violação do disposto nos arts. 18.º, n.º 1, e 24.º, n.º 1, do CEst.

X - Ficando, ainda, provado que o embate se deveu igualmente à súbita diminuição de velocidade do motociclo devido à necessidade do condutor de accionar a reserva de combustível, incorreu este em violação do disposto nos arts. 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2, 13.º, n.º 1, e 24.º, n.º 2, do CEst, pelo que se mostra correcta a repartição de culpas efectuada pelo tribunal da Relação de 70% para o condutor do veículo automóvel e de 30% para o condutor do motociclo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II - Questão prévia da parcial inadmissibilidade do recurso de revista independente

1. Neste quadro, sustenta a Ré que, tal como se acaba de ver, os AA., nas suas alegações de recurso subordinado da sentença, vieram pugnar pela subida para € 100.000,00 da indemnização destinada a ressarcir o dano não patrimonial da vítima, indemnização essa que a dita sentença, como também mencionado, havia fixado em € 80.000,00.

Consoante também se teve o ensejo de constatar, mais diz, no Acórdão recorrido entendeu-se manter esse valor, fixado na 1.ª Instância, que se reputou justo e adequado.

Por outro lado – prossegue a Ré ‑, vê-se da p. i. que o primitivo A. [o acidentado motociclista, e pai dos agora AA.] sustentou a condenação da Ré, além do mais, na circunstância de se dever presumir a culpa do condutor do veículo seguro, nos termos do art. 503.º, n.º 3, do Cód. Civil.

A sentença apelada, porém, entendeu não estarem reunidos, “in casu”, os pressupostos de facto que permitem a actuação dessa presunção, ou seja, a culpa do comissário, reportada nesse preceito legal.

Ora, nas alegações que apresentaram na apelação subordinada, os AA. insurgiram-se contra o assim decidido, mas a Relação, no Acórdão ora recorrido, pronunciou-se de igual modo sobre essa questão, nesse aresto referindo que "Ora, no caso em apreço, ficou provado que a viatura segura na ré não pertencia ao seu condutor, mas não ficou demonstrado que ela era conduzida ao serviço da respectiva proprietária, pelo que não se verifica a presunção de culpa."

Nestes termos – mais aduz a Ré ‑, segue-se que no Acórdão ora recorrido a Relação confirmou, sem qualquer voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, o valor da indemnização destinada a ressarcir o dano não patrimonial do sinistrado, bem como que não se está perante caso em que se deva presumir a culpa do condutor do veículo segurado na Ré, pelo que, quanto a estas questões, deve-se considerar irrecorrível a decisão “sub judice”, por sobre elas se ter formado a chamada dupla conforme, de acordo com o disposto no n.º 3, do art. 671.º, do CPC..

Que dizer?


1.1. Consoante é sabido, essa ora convocada figura da dupla conforme, como também referido, consagrada nesse n.º 3, do art. 671.º ‑ normativo preceito este no qual se textua que “ [s]em prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte” ‑, consubstancia-se numa relevante excepção ao preceituado no n.º 1, desse mesmo artigo – “[c]abe revista para o Supremo tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.”.

Excepção, pois, traduzida na inadmissibilidade de recurso de acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e sem fundamentação substancialmente diversa, a decisão proferida na 1.ª instância ‑ salvo nas particulares situações elencadas no n.º 1, do sequente art. 672.º, permissivas da interposição de recurso de revista excepcional.

Em vista com esta figura da dupla conforme perfila-se, como igualmente sabido, a racionalização do acesso ao S.T.J. ‑ retomando-se assim o desígnio já antes prosseguido pela Reforma de 2007 efectuada em relação ao Código de Processo Civil de 19661 ‑ de modo à criação de condições para um melhor exercício, por tal órgão, da sua função de orientação e uniformização da jurisprudência.

1.2. Como claramente deflui do teor desses reproduzidos n.ºs 1 e 3, do art. 671.º, o ponto de referência para a verificação de uma situação de dupla conforme é um acórdão da Relação que, incidindo sobre decisão prolatada na 1.ª instância, conheça do mérito da causa, ou determine a extinção - total ou parcial -, da instância dos autos.

Mas assim sendo, como é, a decisão da 1.ª Instância relevante para um juízo de conformidade com o pertinente acórdão, tem de necessariamente constituir objecto da parte dispositiva ou estatuitória final de tal acórdão, ou seja, tem de a conclusão -“thema decisum” - deste aresto versar/recair sobre essa decisão, outrossim a confirmando sem divergência substancial de fundamentação.

Por outro lado, essa decisão recorrida, manante da 1.ª instância, não poderá ser ou consubstanciar um qualquer pronunciamento emitido no desenvolvimento da peça impugnada, um elemento - “intercalar”, permita-se-nos a expressão - do respectivo arrasoado ou parte motivatória, mas um acto judicativo final, no sentido de integrante ou representativo do seu ultimador dispositivo, do seu terminante e verdadeiro decreto.

Portanto, e em suma, não é no tocante a qualquer pronúncia, proferida no âmbito de acórdão de Relação que, conhecendo do recurso interposto de decisão – final, no sentido indicado ‑ da 1.ª instância, julgue em sentido coincidente questão apreciada nessa decisão, que se coloca a possibilidade de verificação de uma situação de dupla conforme, impeditiva do normal acesso ao 3.º grau de jurisdição.

Não. Essa possibilidade, e seu efeito restritivo, apenas é equacionável no tocante a questão, julgada, sim, em plena conformidade com a entidade processual recorrida, mas em que esse julgamento, essa apreciação, conste - não apenas da parte justificativa do acórdão sindicador -, mas da sua da parte injuntiva ou decisória que o remata.

1. 2.1. Frente a estes considerandos, logo surge de concluir, pois, e sem quebra do muito respeito, que no tocante a essa questão respeitante à presunção de culpa do condutor do veículo segurado na Ré, nos termos do disposto no n.º 3, do art. 671.º, do Cód. Civil, suscitada pela Contraparte em sede da 1.ª Instância e da Relação aqui recorrida, e objecto de igual pronunciamento negativo em ambas elas, nada obsta à sua nova suscitação no quadro da revista pelos AA. ora interposta, designadamente considerando a já reiteradamente mencionada figura da dupla conforme.

Com efeito, ainda que, como dito, versada/apreciada de modo sintónico em ambas as Instâncias, tal questão não foi objecto, não integrou, a parte decisória final, quer da sentença, quer do Acórdão sobre esta incidente.

Ao invés do [duplamente] postulado nesse n.º 3, do predito art. 671.º, sobre essa questão não de verificou “decisão proferida na 1.ª instância”, do mesmo passo que, ainda que tendo ocorrido veredicto por parte do aresto sindicador [o ora recorrido], a respeito dessa questão, coincidente com o que lhe foi conferido no âmbito da sentença recorrida, esse veredicto não é passível de ser reconduzido a tal aresto, que o mesmo é dizer, a “acórdão da Relação confirmativo” desse equivalente pronunciamento por parte da dita sentença.

No que tange a esta questão, portanto, a douta objecção da Ré ora em atinência naufraga."
 
*3. [Comentário] Salvo o enorme respeito, não se pode acompanhar, nesta parte, o acórdão do STJ.
 
A verdade é que há uma decisão conforme de ambas as instâncias sobre a não presunção de  culpa do condutor do veículo seguro. Trata-se de uma decisão de carácter negativo, ou seja, de uma decisão que não presume a culpa do condutor do veículo seguro.
 
Sendo assim, afastado, por ambas as instâncias, este possível fundamento da decisão, não é facilmente compreensível o que poderia (ou deveria) constar, quanto a essa matéria, da parte dispositiva do acórdão da Relação.
 
MTS

27/11/2019

Jurisprudência 2019 (127)


Factos concrerizadores

 
1. O sumário de STJ 4/6/2019 (65/15.0 T8BJA.E1.S1) é o seguinte:

I - Não padece de nulidades, por omissão nem por excesso de pronúncia, o acórdão que conhece de todas as questões colocadas e são fundadas em omissão de elementos factuais e em erro de julgamento.

II - Também não padece de nulidade por condenação em objecto diverso do pedido o acórdão que procede ao aditamento de factos provados, na sequência de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com base em documentos autênticos, dentro dos pedidos formulados.

III - A consideração de factos concretizadores dos alegados, provados por documento autêntico, resultantes da instrução da causa, não viola o princípio do dispositivo.

IV - A procedência da impugnação pauliana conferida aos credores depende da verificação cumulativa dos pressupostos enunciados nos arts. 610.º a 612.º do CC.

V - Na impugnação pauliana de acto gratuito é dispensada a má fé do devedor e dos terceiros, independentemente do momento da constituição do crédito relativamente ao acto impugnado.

VI - Para efeito do preenchimento do pressupostos da insuficiência patrimonial, só releva a suficiência patrimonial do devedor de cujo património saíram os bens doados e sujeitos à impugnação, a provar pelo devedor ou pelo terceiro.

VII - Relativamente ao avalista, o crédito constitui-se no momento em que é prestado o aval.

VIII - Não obsta à procedência da impugnação pauliana o facto de o ex-cônjuge não ser responsável pelo pagamento da dívida e desta ter sido contraída depois do divórcio com o devedor, nem o de o bem doado sujeito à impugnação ter feito parte do património comum do extinto casal, porquanto deixou de ter essa natureza com a doação, passando a integrar o património do donatário, e por poder ser penhorado pelo credor respondendo de imediato.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No presente caso, não estamos perante factos essenciais que constituam a causa de pedir da acção, nem de factos em que se baseiem excepções, as quais nem sequer foram deduzidas, cuja alegação cabia às partes, respectivamente, à autora e aos réus. Constituem, antes, factos que foram dados como provados ao abrigo do disposto no citado art.º 607.º, n.º 4, aquando da reapreciação da decisão da matéria de facto, para os quais os apelados chamaram a atenção, por se tratar de “factos com relevo para a decisão” e resultarem de “documentos com valor probatório pleno”, como foi feito constar no acórdão recorrido, na respectiva motivação. Tais documentos foram juntos pelos próprios réus/recorrentes, fazem alusão aos mesmos na contestação que apresentaram, designadamente nos art.ºs 20.º e 22.º e constam de fls. 58 v.º a 60 v.º dos autos, como também é referido na motivação da decisão de facto e na respectiva fundamentação fáctica.

Trata-se, portanto, de factos que são complementos ou a concretização de factos alegados pelas partes e resultaram da alegação e da instrução da causa, integrantes da limitação prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC.

Ora, esta limitação, tal como as restantes previstas no n.º 2 do referido art.º 5.º, ao princípio do dispositivo não contendem com o ónus de alegação impostos às partes relativamente aos factos essenciais à procedência das suas pretensões.

A consideração da aludida certidão impunha-se não só pelo citado art.º 607.º, n.º 4, mas também pelo n.º 1 do 662.º e do art.º 413.º, ambos do CPC, e pelo chamado princípio da aquisição processual, consagrado neste último preceito, que manda ao tribunal “tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las”.

Qualquer modificação da matéria de facto, como pretendido pelos recorrentes, sai do âmbito dos poderes do STJ, cuja intervenção está limitada nos termos dos art.ºs 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3, ambos do CPC.

Nos termos do primeiro normativo “[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.

E, de acordo com este preceito, “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Não se tratando de nenhum caso desta intervenção excepcional, nem sendo caso de violação de lei adjectiva, está vedado a este Supremo sindicar o modo como o Tribunal da Relação apreciou a impugnação da matéria de facto e procedeu à sua alteração nos termos em que o fez."
 
[MTS]
 

26/11/2019

Bibliografia (858)


-- Passanante, L., Prova illecita (diritto processuale civile), EncD Ann. 10 (2017), 681

 

Jurisprudência 2019 (126)


Embargos de terceiro;
direito incompatível


1. O sumário de STJ 23/5/2019 (95/12.4JAAVR-A.P1.S1) é o seguinte:

I - Os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (artigo 674º nº 3 in fine e artigo 682º nº 2 do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682º nº 1 do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o Tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.

II - Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito.

III - A penhora envolve a constituição de um direito real de garantia, conferindo ao credor/exequente o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor, que não tenha garantia real anterior (artº 822° nº 1 do Código Civil) e gerando ineficácia, em relação ao exequente, dos actos de disposição ou de oneração dos bens penhorados, sem prejuízo das regras de registo (artº 819º do Código Civil).

IV - O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes - artigo 6º nº 1 do Código do Registo Predial.

V – A penhora do veículo encontra-se registada em 02.11.2016, data anterior ao do registo da aquisição do veículo pela embargante (07.12.2016); por isso, tal aquisição não poderá ser oponível ao exequente, só o podendo ser se caso tivesse sido adquirido anteriormente.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O CPC estabelece no seu artigo 342° n° 1, que "Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

Antes da revisão processual de 1995/1996 era um processo especial apenas dirigido à defesa da posse – artigos 1037º e 1043º do CPC; agora – artº 342º nº 1 – é um incidente de oposição a qualquer acto ordenado judicialmente, de apreensão) ou de entrega de bens que ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a diligência ordenada, direito de que seja titular quem não é parte na causa. (salvo em processo de insolvência).

Em confronto com o revogado nº 1 do artigo 1037º, constata-se que se ampliaram os pressupostos de admissibilidade dos embargos de terceiro, que deixaram de estar necessariamente ligados à defesa da posse do embargante, para abrangerem todos os actos de agressão patrimonial.

No preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro foi dito o seguinte: “Permite-se, deste modo, que os direitos substanciais atingidos ilegalmente pela penhora ou outro acto de apreensão judicial de bens possam ser invocados, desde logo, pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva da posse teve lugar, em vez de o orientar necessariamente para a propositura da acção de reivindicação – por esta via se obstando, no caso de a oposição de embargos se revelar fundada, à própria venda dos bens e prevenindo a possível necessidade de ulterior anulação desta, no caso de procedência da reivindicação”.

Daqui resulta que, para a penhora ou diligência judicialmente ordenada poder basear a oposição mediante embargos de terceiro, se torna necessária a verificação dum dos seguintes requisitos: ofensa da posse e ofensa de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.

Quanto ao primeiro requisito, relacionado com o artº 1285º do Código Civil, o direito de embargar pertence ao possuidor em nome próprio, por este gozar da presunção de titularidade do direito correspondente à sua posse (artº 1268º nº 1 do CC).

Quanto ao segundo requisito, o conceito de direito incompatível apura-se em referência à finalidade da diligência que o lesa [...].

Efectivamente, preceitua o artigo 1285º do Código Civil, sob a epígrafe (Embargos de terceiro), que “ o possuidor cuja posse for ofendida por penhora ou diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo”.

E o artigo 1268º (Presunção da titularidade do direito) tem a seguinte redacção:

“1. O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.

2. Havendo concorrência de presunções legais fundadas em registo, será a prioridade entre elas fixada na legislação respectiva”.

A realização coactiva das obrigações patrimoniais é garantida por via da acção executiva através da qual o credor pode promover a execução do património do devedor ou, excepcionalmente, de terceiro, nos termos genericamente previstos nos artigos 817º a 826º do Código Civil.

Por outro lado, o artigo 735º do Código de Processo Civil (objecto da execução), preceitua no seu nº 1 que “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”.

A penhora envolve a constituição de um direito real de garantia, conferindo ao credor/exequente o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor, que não tenha garantia real anterior (artº 822° nº 1 do Código Civil) e gerando ineficácia, em relação ao exequente, dos actos de disposição ou de oneração dos bens penhorados, sem prejuízo das regras de registo (artº 819º do Código Civil).

E, a penhora, para produzir efeitos em relação a terceiros, terá de ser registada (artº 2º alª n) e nº 1 do artº 5º, ambos do Código do Registo Predial).

O n° 4 do artigo 5º esclarece quem é considerado terceiro para efeitos de registo, dizendo que “são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Por outro lado, preceitua o artigo 6º nº 1 do Código do Registo Predial que o “direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes”.

Como bem observa o acórdão recorrido, a posse que, em regra, releva para efeitos de embargos de terceiro é a posse real e não a posse obrigacional, só relevando esta quando tal estiver legal e expressamente previsto, como sucede, por exemplo, com a posse do locatário (artº 1037º nº 2 do Código Civil).

Voltando ao caso dos autos verifica-se que a penhora foi realizada e registada em 21.11.2016 (fls 112-113 dos autos principais e fls 31 do I volume dos embargos de terceiro).

A embargante só registou a aquisição do veículo penhorado em 07.12.2016 (fls 31).

É certo que a embargante é terceiro para efeitos de poder embargar, mas o direito do exequente encontra-se registado em data anterior à data em que a embargante registou a sua aquisição.

Da enunciada realidade factual resulta que a penhora do veículo se encontra registada em data anterior à da aquisição do veículo pela embargante; por isso, tal aquisição não poderá ser oponível ao exequente, só o podendo ser se caso tivesse sido adquirido anteriormente."

[MTS]


25/11/2019

Jurisprudência 2019 (125)


Impugnação de deliberações sociais;
competência material

1. O sumário de STJ 23/5/2019 (4624/17.9T8FNC.L1.S1) é o seguinte:

[...] Não cabe na competência material dos Juízos de Comércio conhecer de uma providência cautelar destinada a impugnar deliberações de uma associação patronal sem fins lucrativos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. O direito aplicável:

4.1. Como supra referido, a decisão a proferir respeita, centralmente, à questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito quando considerou incompetente para conhecer da presente ação o Juízo de Comércio do Funchal.

A Lei n. 62/2013 (Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ) estabelece, no seu art.128º, a competência dos juízos de comércio:

1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.

3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
 

4.2. Entende a recorrente que o facto de a alínea d) do n.1 do art.128º não dizer expressamente que respeita apenas a deliberações de sociedades comerciais (referindo-se antes a “deliberações sociais”), permitirá concluir que o juízo de comércio também será competente para conhecer de ações respeitantes a deliberações de associações sem fins lucrativos.

Por outro lado, acrescenta, ainda que assim não se entendesse, sempre o facto de a associação requerida (apesar de lhe estar vedada a profissão de comerciante) praticar atos objetivos de comércio justificaria que pudesse recorrer ao juízo de comércio.

4.3. O acórdão em revista, subscrevendo e reproduzindo, em grande parte, a fundamentação da decisão da primeira instância, concluiu que os argumentos explanados pela recorrente na apelação (que coincidem, na essência, com os argumentos apresentados na revista) não permitem reconhecer-lhe razão.

Entendeu-se, em síntese, que da evolução legislativa em matéria de competência dos tribunais de comércio (desde o anterior art.89º da Lei n.3/1999 até ao presente art.128º da Lei n.62/2013) não se pode concluir, nem pelo elemento literal (que se manteve inalterado), nem pelos propósitos legislativos (onde se inclui o aumento do número de juízos de comércio em todo o país) que tivesse existido uma intenção de estender a competência material dos juízos de comércio a matérias de natureza não comercial, o que vale tanto para ações destinadas à suspensão ou anulação de deliberações sociais como para providências cautelares de suspensão de deliberações sociais (como é o caso dos presentes autos).

Por outro lado, no que respeita ao argumento de que podendo a requerida praticar atos objetivos de comércio, tal lhe abriria a porta dos juízos de comércio, conclui a decisão em revista que a deliberação, cuja suspensão foi pedida nos presentes autos, não é qualificável como ato de comércio.

4.4. O decidido no acórdão em revista não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito pertinente.

O supra referido art.128º estabelece um elenco taxativo de hipóteses que cabem na competência material dos juízos de comércio, as quais apresentam como nota distintiva a natureza objetivamente comercial das matérias de onde emergem os conflitos a solucionar ou uma específica indicação temática assumida pelo legislador (independentemente de nem todos os conflitos aí comportáveis poderem ter natureza objetiva comercial, como por exemplo, em alguns casos de insolvência ou de registo comercial)[1]. Por outro lado, mesmo no âmbito dos conflitos entre sócios e sociedades comerciais, nem sempre a competência para conhecer do litígio cabe aos tribunais de comércio. Assim será quando o conflito não respeite a uma matéria de natureza comercial, como se entendeu no acórdão do STJ, de 05.07.2018 (relator Abrantes Geraldes)[2].

Constituindo um elenco taxativo, as hipóteses de convocação da competência dos juízos de comércio não podem ser aplicadas analogicamente a situações que o legislador aí não incluiu.

A competência especializada de um tribunal, na medida em que conduz a uma maior harmonização de soluções e, consequentemente, a maior celeridade decisória, mercê da repetição das tipologias de conflitos, pressupõe, necessariamente, uma delimitação objetiva da correspondente área de incidência. Se esta área pudesse ser ampliada por via de aplicação analógica, passando a englobar o conhecimento de matérias de natureza não comercial, facilmente se compreende que as vantagens da especialização tenderiam a ser esbatidas, aproximando-se estes tribunais dos tribunais de competência genérica.

4.5. O facto de, na alínea d), se falar apenas de “deliberações sociais” sem dizer literalmente que se trata de deliberações de sociedades comerciais não pode ser alvo de uma interpretação descontextualizada que conduza à conclusão de que aí podem ser incluídas deliberações de associações sem fins lucrativos (como pretende a recorrente).

Qual a identidade valorativa existente entre as deliberações sociais de uma sociedade comercial e as deliberações sociais de uma associação sem fins lucrativos que pudesse justificar um tratamento processualmente idêntico dos dois tipos de atos? Se a natureza comercial da deliberação impugnada deixasse de constituir o critério delimitador da competência do tribunal, passando tal critério a ser apenas a configuração estrutural do ato impugnado, então parece que a analogia poderia levar a admitir que as deliberações de uma assembleia de condóminos (sobretudo se se pensar na assembleia de condóminos de um edifício de escritórios) poderiam passar a ser impugnadas no juízo de comércio.

Estas considerações permitem reafirmar a ideia de que no âmbito da alínea d) não devem ser incluídas hipóteses de impugnação de deliberações que não tenham natureza comercial, ou seja, não provenham de órgãos de sociedades comerciais.

No caso concreto, aquela alínea não fornece, assim, suporte jurídico para que o juízo de comércio do Funchal pudesse conhecer da providência cautelar de suspensão de deliberação de uma associação patronal sem fins lucrativos.

4.6. A recorrente alegou ainda que a competência do juízo de comércio sempre se justificaria porque a requerida, enquanto associação de entidades patronais (apesar de lhe estar vedado o exercício do comércio como atividade), pratica atos objetivos de comércio. Ora, trata-se de uma alegação destituída de qualquer consistência argumentativa. No que ao presente caso interessa, está em causa apenas a prática de um ato: a deliberação impugnada (sendo irrelevante a prática de outros atos que, eventualmente, tenham natureza comercial). E, sem prejuízo da discussão da natureza de ato de comércio da deliberação social de órgão, mesmo quando este pertença a pessoa coletiva que tenha a qualidade de comerciante, a competência especializada não deve atender ao critério da comercialidade do ato identificado no tipo de ação (suspensão ou anulação de deliberações sociais). O que deve relevar para esse efeito é o tipo de pessoa coletiva cujas deliberações orgânicas são impugnadas: apenas se for qualificada como comerciante, de acordo com os critérios do art.13º do Código Comercial [...]. Neste sentido, como afirma Paula Costa e Silva: «A suspensão e a anulação de deliberações sociais de quaisquer outras pessoas coletivas que não sejam comerciantes não deve correr pelos tribunais de comércio, mas sim pelos tribunais cíveis» [Vd. https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2002/ano-62-vol-i-jan-2002/notas-e-observacoes-a-sentencas/paula-costa-e-silva-sobre-a-competencia-dos-tribunais-de-comercio/].

4.7. Num caso próximo do que se analisa nos presentes autos, no qual também se tratava de apreciar deliberações de uma associação (embora na vigência da LOFTJ), entendeu-se no acórdão do STJ, de 08.03.2001, no Proc. n.3275/00 (relator Silva Salazar), o seguinte: «Uma providência cautelar tem de ser proposta no tribunal que seja competente em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquela é dependência. - Não sendo a acção principal uma acção de declaração de inexistência, nulidade ou anulação dum contrato de sociedade, mas de anulação ou declaração de nulidade de deliberação social (…) está-se fora da previsão do art.º 89 da LOFTJ, mormente das suas als. b) e d), o que afasta a competência do tribunal de comércio e determina a competência dos juízos cíveis».

4.8. Dado que o art.101º, n.1 do CPC atribui ao Supremo Tribunal de Justiça o poder para decidir sobre a fixação definitiva do tribunal competente, e tendo-se já concluído que esse tribunal não é o juízo de Comércio do Funchal, o tribunal competente será o tribunal cível.

Cabe ainda apurar se esse deverá ser o juízo central cível do Funchal ou o juízo local cível do Funchal. Face à repartição de competências estabelecida pelos artigos 117º [...] e 130º [...] LOSJ, e tendo em conta que o valor da causa é de €30.000,01, a competência pertencerá ao juízo local cível do Funchal."

[MTS]

23/11/2019

Jurisprudência europeia (TJ) (206)


Reg. 655/2014 – Decisão europeia de arresto de contas – Artigo 5.°, alínea a) – Procedimento de obtenção – Artigo 4.°, n.os 8 a 10 – Conceitos de “decisão judicial”, de “transação judicial” e de “instrumento autêntico” – Injunção nacional de pagamento suscetível de oposição – Artigo18.°, n.° 1 – Prazos – Artigo 45.° – Circunstâncias excecionais – Conceito
 


TJ 7/11/2019 (C‑555/18, K.H.K./B.A.C. et al.) decidiu o seguinte:

1) O artigo 4.°, ponto 10, do Regulamento (UE) n.° 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que uma injunção de pagamento, como a que está em causa no processo principal, que não tem força executória, não cabe no conceito de «instrumento autêntico», na aceção dessa disposição.

2) O artigo 5.°, alínea a) do Regulamento n.° 655/2014 deve ser interpretado no sentido de que um procedimento de injunção de pagamento em curso, como o que está em causa no processo principal, pode ser qualificado de «processo relativo ao mérito da causa», na aceção dessa disposição.

3) O artigo 45.° do Regulamento n.° 655/2014 deve ser interpretado no sentido que as férias judiciais não estão abrangidas pelo conceito de «circunstâncias excecionais», na aceção dessa disposição.




Jurisprudência europeia (TJ) (205)

 
 
Reg. 1215/2012 — Artigo 7.°, n.° 1, alínea a) — Tribunal competente em matéria contratual — Regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos — Reg. 261/2004 — Artigos 5.°, 7.°, 9.° e 12.° — Convenção de Montreal — Competência — Artigos 19.° e 33.° — Pedido de indemnização e de ressarcimento do dano resultante do cancelamento e do atraso dos voos


TJ 7/11/2019 (C‑213/18, Guaitoli et al./easyJet Airline) decidiu o seguinte:

1) O artigo 7.°, n.° 1, o artigo 67.° e o artigo 71.°, n.° 1, Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, bem como o artigo 33.° da Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal em 28 de maio de 1999 e aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001, devem ser interpretados no sentido de que o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro chamado a pronunciar‑se sobre uma ação destinada a obter, simultaneamente, o respeito dos direitos fixos e uniformizados previstos pelo Regulamento n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91, e o ressarcimento de um dano suplementar abrangido pelo âmbito de aplicação da Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal em 28 de maio de 1999 e aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001, deve apreciar a sua competência, quanto ao primeiro pedido, à luz do artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012 e, quanto ao segundo, à luz do artigo 33.° dessa convenção.

2) O artigo 33, n.° 1, da Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal em 28 de maio de 1999, deve ser interpretado no sentido de que regula, para efeitos das ações de indemnização por danos abrangidas pelo âmbito de aplicação dessa convenção, não apenas a repartição da competência judiciária entre os Estados Partes nesta, mas igualmente a repartição da competência territorial entre os órgãos jurisdicionais de cada um desses Estados.
 
 

22/11/2019

Jurisprudência 2019 (124)


Indemnização civil;
processo penal; princípio de adesão


1. O sumário de STJ 23/5/2019 (9918/15.5T8LRS.L1.S1) é o seguinte:

I - No âmbito do direito processual penal (artigo 71º), encontra-se consagrado o princípio de adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

II – A alínea a) do nº 1 do artigo 72º do CPP admite a reclamação de indemnização cível, decorrente do facto criminoso, fora do processo penal, quando “o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo”.

III – A mencionada excepção visa proteger o lesado da demora do andamento do processo penal, pondo em crise o interesse da vítima num rápido ressarcimento.

IV – O lesado, ora autor e recorrente, não intentando a acção cível dentro do aludido período que decorreu entre o completamento do prazo de oito meses após a notícia do crime e a dedução da acusação, não poderá prevalecer-se dessa excepção.

V – Constando da acusação os danos e o seu conhecimento em toda a sua extensão, não pode o lesado invocar a excepção prevista no nº 1 alª d) do artigo 72º do CPP.

VI - Só nos casos expressamente previstos na lei, que representem um verdadeiro entrave ou um obstáculo sério que inviabilizem uma decisão rigorosa da matéria cível (designadamente, por haver escassez de elementos para a determinação da responsabilidade) ou quando correspondam a incidentes que retardem intoleravelmente o julgamento da matéria penal, é que as partes civis devem ser remetidas para o tribunal cível (artº 82º nº 3 do CPP). Fora desses casos, o pedido cível deve ser julgado em conjunto com a matéria penal.

VII - Este poder do tribunal remeter as partes para os meios comuns não significa a atribuição de um poder arbitrário, livre ou discricionário. Antes impõe que o juiz avalie as questões suscitadas pela dedução do pedido cível, reenviando-o para os meios comuns apenas se concluir que ocorre grande desvantagem na manutenção da adesão, tendo sempre presente que constituindo a referida norma uma excepção, a sua aplicação deve limitar-se aos casos nela expressamente previstos e ser objecto de particular fundamentação.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tal como alega o recorrente, mostram-se verificadas as situações de excepção ao princípio de adesão obrigatória previstas nas alíneas a) e d) do nº 1 do artigo 72º do CPP?

Este artigo, sob a epígrafe (Pedido em separado), na parte que interessa, preceitua o seguinte:

1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando:

a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;

d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;

Vejamos cada uma das referidas alíneas.

A alínea a)

Esta alínea admite a reclamação de indemnização cível, decorrente do facto criminoso, fora do processo penal, quando “o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo”.

O apelante defende que se verificou a excepção prevista na primeira parte da aludida alínea, na medida em que, tendo havido notícia do crime em 31.07.2012, a acusação foi deduzida em 11.7.2013.

Mostra-se provado que:

- A P.S.P. teve notícia do crime no dia 31-07-2012 – (b);

- A acusação foi deduzida em 11.07.2013 – (f);

- A presente acção deu entrada em juízo no dia 22.07.2015 – (i).

A mencionada excepção visa proteger o lesado da demora do andamento do processo penal, pondo em crise o interesse da vítima num rápido ressarcimento.

Ora, como é bom de ver, o lesado, ora autor e recorrente, não intentou a acção cível dentro do aludido período que decorreu entre o completamento do prazo de oito meses após a notícia do crime e a dedução da acusação.

Isto é, perante a constatação, decorrido que fora o aludido prazo de oito meses sem prolação de acusação, de ter a faculdade de accionar o arguido nos tribunais civis, para reclamar o ressarcimento pelos danos sofridos, o autor não se prevaleceu dessa faculdade.

Por conseguinte, improcedem as conclusões sobre esta matéria, mantendo-se a decisão da Relação.

A alínea d)

O recorrente invoca ainda outra situação de excepção à adesão obrigatória do pedido de indemnização cível ao processo-crime e que respeita à alínea d), assim descrita:

“d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão”.

Defende o recorrente que estava em tempo quanto à dedução do seu pedido de indemnização cível, perante um tribunal cível, atendendo à extensão dos danos de que o autor foi alvo, nos termos do artigo 72º nº1 alínea d) do CPP, visto que à data da acusação, nomeadamente em 1 de Agosto de 2013, ainda nessa altura o autor se encontrava em recuperação física e incapacitado para o trabalho, relembrando que o autor ficou 390 (trezentos e noventa dias) em recuperação e temporariamente incapacitado para o trabalho visto que à data da acusação ainda nessa altura o autor se encontrava em recuperação física e incapacitado para o trabalho, relembrando que o autor ficou 390 dias em recuperação e temporariamente incapacitado para o trabalho – Cfr conclusão 8ª.

Cumpre decidir.

Rememorando a matéria de facto, mostra-se provado o seguinte:

- No dia 06-11-2012, o autor AA foi submetido a exame de avaliação de dano corporal no INML, tendo o Senhor Perito Médico solicitado mais elementos para elaboração do relatório, mas consignando que não voltaria a ser necessária a presença do examinando – (e);

- A acusação foi deduzida em 11-07-2013 – (f);

- Na acusação refere-se que o autor AA sofreu diversas feridas “…o que careceu de 390 dias, todos com incapacidade para o trabalho” – (g).

A acusação deduzida pelo Ministério Público no processo penal (fls 176), reproduziu a conclusão da perícia médico-legal, tendo descrito no seu nº 9 os danos causados pela conduta do arguido, ora réu, na pessoa do autor, aí se imputando, na pessoa do autor, uma incapacidade para o trabalho de 390 dias.

E no acórdão criminal deu-se, precisamente, como provado no nº 13, que em consequência das agressões que lhe foram infligidas o autor sofreu ferimentos que lhe causaram 390 dias de incapacidade para o trabalho (fls 41).

Esse período de incapacidade é exactamente aquele que o autor reclama na presente acção nos artigos 19º e 20º da petição inicial.

Assim sendo, tal como se mostra observado acertadamente no acórdão da Relação, não se vislumbra, em relação à conduta objecto destes autos, qualquer superveniência de danos que justifique a presente acção, nem que ocorresse, à data da acusação, incerteza relevante quanto à extensão dos danos emergentes do crime.

Um último argumento do recorrente radica no nº 3 do artigo 82º do CPP e que deixou expresso na conclusão 10ª, assim redigida:

“10ª - Importa reiterar que a trajectória da própria jurisprudência dos tribunais criminais, face a pedidos complexos de indemnização civil em sede de 1ª instância, quando se deparam perante crimes graves contra as pessoas, e desde que se verifiquem a ocorrência de danos graves, de especial complexidade, são os próprios tribunais criminais a reenviar os pedidos de indemnização, para os tribunais de jurisdição civil”.

O artigo 82º do CPP, sob a epígrafe (Liquidação em execução de sentença e reenvio para os tribunais civis), preceitua o seguinte:

3 - O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.

Só nos casos expressamente previstos na lei, que representem um verdadeiro entrave ou um obstáculo sério que inviabilizem uma decisão rigorosa da matéria cível (designadamente, por haver escassez de elementos para a determinação da responsabilidade) ou quando correspondam a incidentes que retardem intoleravelmente o julgamento da matéria penal, é que as partes civis devem ser remetidas para o tribunal cível. Fora desses casos, o pedido cível deve ser julgado em conjunto com a matéria penal.

Este poder do tribunal remeter as partes para os meios comuns não significa a atribuição de um poder arbitrário, livre ou discricionário. Antes impõe que o juiz avalie as questões suscitadas pela dedução do pedido cível, reenviando-o para os meios comuns apenas se concluir que ocorre grande desvantagem na manutenção da adesão, tendo sempre presente que constituindo a referida norma uma excepção, a sua aplicação deve limitar-se aos casos nela expressamente previstos e ser objecto de particular fundamentação.

Deste modo, improcedem as conclusões respectivas, mantendo-se a decisão do acórdão recorrido.

Finalmente, o recorrente, na conclusão 12ª, veio referir as vítimas "devem ainda gozar" de acesso efectivo à justiça, conforme decorre do artigo 8.º da Declaração Universal dos Direito do Homem, devendo ser reduzidos ao mínimo os transtornos que lhes são causados e os atrasos no andamento dos processos, bem como na protecção das ofensas que são alvo.

Cumpre decidir

Sufragamos o acórdão recorrido quando conclui que “contrariamente ao aventado pelo apelante, a decisão recorrida não afronta o direito do autor de acesso efectivo à justiça, consagrado tanto no artº 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como no artº 20º da Constituição da República Portuguesa. Pelo contrário, conforme decorre de tudo o acima exposto, ao autor foram devida e atempadamente concedidas amplas possibilidades de reclamar junto dos tribunais, quer cível quer penal, o seu direito a ressarcimento pela conduta invocada, dentro de um quadro jurídico que, além de ter justificação atendível, oferece uma flexibilidade que, como já decidido pelo Tribunal Constitucional (v.g., acórdão n.º 451/97, de 25.6.1997) o adequa às exigências constitucionais do acesso à justiça e da proibição da indefesa. Se o A. não as aproveitou, em devido tempo, sibi imputet”.

Sem necessidade de maiores considerações, improcede, também, nesta parte, a conclusão do recorrente.

[MTS]