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"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
31/10/2020
30/10/2020
Papers (451)
-- Pardo, Michael S. / Allen, Ronald Jay, Generalizations and Reference Classes (SSRN 10.2020)
Bibliografia (944)
-- Temer, S., FINANCIAMENTO DE LITÍGIOS POR ‘TERCEIROS’ (OU ‘THIRD-PARTY’ FUNDING): O FINANCIADOR É UM SUJEITO PROCESSUAL? NOTAS SOBRE A PARTICIPAÇÃO NÃO APARENTE, RePro 309 (2020), 359
Jurisprudência 2020 (84)
Decisão penal absolutória;
eficácia; presunção
1. O sumário de RL 14/5/2020 (24619/17.1T8LSB.L1-8) é o seguinte:
1.–A presunção legal prevista no artº 624º do C.P.C. tem um campo de aplicação restrito, pois que se exige que na sentença penal se tenha considerado provado que o arguido não praticou os factos em causa, não bastando, portanto, que a prática dos factos tenha sido dada como não provada – o que corresponde à generalidade das situações, pois o tribunal penal raramente se dirige à prova do contrário, à prova do não cometimento do crime.
2.–Em contraposição às causas enunciadas nas alíneas a) e c) do artº 1781º do C.C., em que se exige o decurso do prazo de um ano, a cláusula geral prevista na alínea d) prescinde de qualquer prazo, bastando que os factos de per se, independentemente de culpa, assumam gravidade ou reiteração tais que revelem inequivocamente estar comprometida, de forma irreversível, a comunhão de vida que caracteriza o casamento.
3.–É de valorar a separação de facto, que se iniciou cerca de um mês antes da propositura da ação, mas que perdurava à data do julgamento, mais de um ano depois, como elemento integrador do conceito da “rutura definitiva do casamento”, em conjugação com os demais factos provados, graves e/ou reiterados, reveladores da quebra de deveres conjugais, bem como da vontade irreversível de um dos cônjuges de não pretender o restabelecimento da comunhão própria da vida conjugal.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"O recorrente entende que o tribunal a quo não realizou convenientemente o exame crítico nomeadamente da prova documental, violando a norma presente no art.º 607.º n.º 4 CPC, porquanto em sede de motivação, explicita, de forma genérica, que valorizou a “acusação e sentença – absolutória – proferidas no processo-crime instaurado contra o réu”. Analisada a factualidade dada por assente, constatam-se contradições manifestas entre tal factualidade e o decidido em sede penal. Sustenta, ainda, a sua posição, na força de autoridade de caso julgado, por via da qual os factos provados e não provados constantes da sentença penal não podem, nesta sede, ser alterados. Pugna, assim, para que o ponto 3 da factualidade provada seja alterado, passando a ter a seguinte redação:
“3. Isso aconteceu na sequência de discussões que S… e J… mantiveram nos dias 3 e 18 de Setembro de 2017, respetivamente, em casa e na presença dos pais da autora, em Alcobaça, e em sua casa, na presença das filhas.”
Por seu turno, a apelante alegou que a prova produzida sustenta os factos provados. E para o efeito, fundou-se em depoimentos de testemunhas, fazendo breves citações sem, no entanto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda (artº 640º, nº 2, al. b) do C.P.C.).
Estabelece o artº 624º do C.P.C. que:
“1– A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.2– A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.”
A sentença penal absolutória constitui mera presunção da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário. O que equivale a afirmar que a sentença penal absolutória não se impõe no processo cível com efeito de caso julgado, nem de autoridade de caso julgado.
Em sede de direito probatório a presunção prevista neste preceito assume especial relevância em confronto com presunções estabelecidas na lei civil, cedendo estas (nº 2). Inexistindo presunção de direito civil, a sentença penal absolutória constituirá, em regra, mero reforço do princípio geral do ónus de prova estabelecido no artº 342º, nº 1 do C.C.). Com efeito, raros serão os casos em que por força da presunção de inexistência dos factos imputados ao arguido, incumbirá à “contraparte” a prova do contrário dos factos abrangidos pela presunção penal.
Mas que factos são estes?
A presunção legal prevista no artº 624º do C.P.C. tem um campo de aplicação restrito, pois que se exige que na sentença penal se tenha considerado provado que o arguido não praticou os factos em causa, não bastando, portanto, que a prática dos factos tenha sido dada como não provada – que corresponde à generalidade das situações, pois o tribunal penal raramente se dirige à prova do contrário, à prova do não cometimento do crime. Ou nas palavras de Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “não se trata da presunção da inexistência de um facto”, mas da “presunção da ocorrência do seu contrário” (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 693).
Impõe-se, assim, ao juiz cível a análise da fundamentação da sentença penal (para além da mera enunciação dos factos provados e não provados).
Estão desde logo excluídos os factos que se considerem não provados por aplicação do princípio in dubio pro reo. Mas também todos aqueles que, concernentes à prática de determinada conduta, surgem como não provados (ainda que não decorram daquele princípio de direito probatório penal, mas de simples falta de prova) – apenas relevando a absolvição com fundamento em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados. Isto é, a prova positiva de que os factos não foram praticados.
Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 18 de junho de 2014, in www.dgsi.pt:
“Tem entendido este Supremo Tribunal que não pode considerar-se integrada a previsão daquela disposição legal nos casos em que a absolvição decorre da simples falta de prova dos factos imputados ao arguido (designadamente por dúvidas do julgador), só relevando, para efeitos desta presunção, a absolvição fundada na prova (positiva) de que os factos não foram realmente praticados.
Como se refere no Ac. do STJ de 10.2.2004: “não é qualquer decisão penal absolutória que constitui presunção da inexistência dos factos imputados ao arguido; esta presunção só existirá se a absolvição no processo-crime tiver por fundamento a prova de que o arguido não praticou aqueles factos, sendo que a simples falta de prova da acusação, como foi aqui o caso, não permite fundar qualquer presunção, valendo, então, no âmbito do processo penal, a presunção de inocência do arguido, sem qualquer valor fora desse processo”.
Ora, no caso dos autos, apenas se considerou que determinada factualidade imputada à A. “não se mostra suficientemente indiciada”, o que é realidade bem diversa. “
Da certidão junta a fls. 121vº e ss. e fls. 167vº, resulta que a sentença, proferida no processo 1248/17.4PTLSB, em que foi arguido o ora R. e assistente a ora A., absolveu o arguido da prática do crime de violência doméstica que lhe era imputado.
Tal sentença apenas transitou em julgado em 14/08/2019 - data posterior à realização da audiência nestes autos e cuja certificação de trânsito apenas foi junta com a alegação de recurso – pelo que o tribunal recorrido não podia ter aplicado a presunção prevista no artº 624º do C.P.C.
Nela se considerou como não provado que “no dia 3 de setembro de 2017, no âmbito de discussão entre o arguido e assistente, aquele tenha desferido palmadas no dorso das mãos desta e torcido o braço direito; que na situação ocorrida em 18 de setembro de 2017 o arguido tenha dito “não és minha não és de ninguém”, “se achas que viveste um inferno, a tua vida agora é que vai começar, eu destruo tudo”.
Da respetiva fundamentação consta o seguinte:
“Perante estas versões contraditórias e a negação dos factos por parte do arguido, ficámos com dúvida sobre o que sucedeu na discussão do dia 3 de setembro de 2017, nomeadamente se chegou a existir alguma agressão. (…)
Deste modo, o Tribunal ficou com muitas dúvidas que no dia 03/09/2017 o arguido tenha desferido palmadas ou torcido o braço da assistente.
Da prova produzida não ficou convencido que tal facto ocorreu, pelo que se impõe lançar mão do princípio in dubio pro reo e resolver da forma mais benéfica para o arguido, ou seja, considerar tal facto como não provado.”
Relativamente às expressões proferidas em 18/09/2017, depois de analisar os meios probatórios produzidos, não sendo coincidentes, considerou-se “quanto às expressões que não constam do facto 5 da matéria provada demos como não provados”.
Trata-se, assim, de decisão que não tem por fundamento a prova positiva da não prática dos factos constitutivos do crime pelo arguido, mas que se funda no princípio in dubio pro reo e na falta de prova daqueles factos, sendo inaplicável a presunção estabelecida no artº 624º do C.C..
Há que sublinhar que, não sendo reconhecido à sentença penal absolutória a autoridade de caso julgado, caso se verificasse a presunção sempre se imporia averiguar se não tinha sido feita prova do contrário, em sede cível.
O apelante limita-se a alegar que quanto à agressão e frase imputadas ao R., não se vislumbra na sentença qualquer referência ao modo como o tribunal a quo chegou a tais conclusões.
Da fundamentação de facto da sentença recorrida alude-se à acusação e sentença absolutória proferida no processo-crime instaurado contra o réu, no que concerne “as perspetivas de um e de outro, confirmando-se, entre o mais, o motivo principal dos dissensos mantidos, o desgaste que, em todo o caso, a relação já sofrera e, finalmente, o abandono da casa onde viviam não em setembro, mas já em outubro de 2017.” Assim, o Tribunal não se baseou na sentença penal para considerar provado o facto nº 3.
O Tribunal assentou a sua convicção relativamente aos factos provados sob o nº 3 “no teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, a saber:
- a filha Joana ….. que também confirmou que a mãe saiu de casa em Outubro de 2017, na sequência das discussões havidas com o pai, o desgaste de que a relação já sofria, mormente, em razão da doença da irmã, o abalo que tais discussões provocaram na mãe e aquilo que as provocou, o receio que sentiram, nos dias seguintes, de que o mesmo se irritasse, a decisão tomada pela mãe e, finalmente, a reação do pai, que lhe pedia, insistentemente, que convencesse a mãe a voltar para casa, o que – frisou – nunca chegou a acontecer e acredita não irá acontecer, e começou a segui-las, fazendo dezenas de chamadas e enviando outras tantas mensagens;
- a filha, Ana ….., que descreveu o desapego que caracterizava os pais, inclusivamente, antes de terem mantido as discussões que viriam a precipitar o fim do seu casamento, a razão da sua ocorrência e a quebra de confiança que se verificou (da mãe, Susana Maria, no pai, José Manuel);
- os pais da autora e sogros do réu, Artur …. de Carvalho, e Maria ……de Carvalho, os quais também confirmaram a ocorrência da discussão protagonizada, em 3 de setembro de 2017, pelo casal, em sua casa, a razão da mesma e o sucedido nessa ocasião, o medo que a família “lhe tomou” e a decisão tomada pela filha, saindo de casa para não mais voltar, como, de resto, o desgaste que a relação já acusava;
- o namorado de Ana ….., de seu nome João de ……., visita de sua casa antes da separação, o qual descreveu a dinâmica familiar, nas suas palavras, “binuclear”, inclusivamente, antes das discussões a que se vem fazendo referência, o desgaste que a relação do casal já evidenciava, fruto de discussões e das “embirrâncias” do réu, mas também as palavras que José ….. dirigiu à esposa, Susana ……., quando esta lhe anunciou o fim do casamento e a perseguição que, ulteriormente, lhes moveu a todos.
Mereceram credibilidade pela forma, aparentemente, objetiva com que apresentaram os seus relatos, que não tendo sido infirmados por qualquer meio probatório, se mostraram consistentes em si mesmos – porque isentos de contradições e/ou hesitações - e consonantes entre si (e com a demais prova carreada para os autos), não deixando de confirmar que não têm notícia de, em momento anterior, a autora, Susana …., ter sido, por alguma vez, agredida pelo marido.”
A fundamentação de facto é clara e traduz raciocínio consistente e estruturado."
[MTS]
[MTS]
29/10/2020
Jurisprudência 2020 (83)
Prova testemunhal; contradita;
prova documental*
1. O sumário de RP 27/4/2020 (1776/19.7T8MTS-A.P1) é o seguinte:
I - Os documentos são um dos meios de prova contemplados no CPC, que devem ser apresentados: (i) com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes; (ii) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sob multa, excepto se a parte provar que os não pôde oferecer com o articulado; (iii) no caso de a apresentação não ter sido possível até ao segundo momento; (iv) quando a apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
II – A apresentação dos documentos deve ser “controlada” pelo juiz na fase da instrução do processo, quer quanto à sua temporalidade na apresentação, quer quanto ao seu interesse/importância para a apreciação do objecto da causa, tendo em atenção, mormente, a causa de pedir, a descoberta da verdade material e o princípio da livre apreciação judicial das provas.
III - Nas situações (iii) e (iv), descritas em I., deve o requerente fazer a respectiva prova, acto essencial para o tribunal poder decidir em conformidade e de modo plausível.
IV – Inexiste a violação dos princípios de igualdade, equidade e imparcialidade quando a parte apresenta a acção em juízo e exerce o direito ao processo em todas as fases processuais. Se o faz indevidamente, sibe [sic] imputet.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"3.1. - Os documentos são um dos meios de prova contemplados no CPC (serão deste diploma as normas citadas sem menção de origem), a par da prova por confissão das partes, pericial, inspecção judicial e testemunhal – cf. título V, capítulos II, III, IV, V e VI do CPC.
Atento o disposto no artigo 362.º do Código Civil (CC), “Prova documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.”.
Nos termos do artigo 63.º - Indicação das provas - do CPT, “1 - Com os articulados, devem as partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer quaisquer outras provas.”.
Por seu lado, o artigo 423.º - Momento da apresentação – do CPC, prevê três momentos para a apresentação de documentos: (i) com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes; (ii) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sob multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado; e (iii) cuja apresentação não tenha sido possível até ao segundo momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
E, ao contrário do que sucede com a prova testemunhal (salvo casos de inabilidade, impedimento ou recusa) - o juiz não pode “escolher”, do rol apresentado pela parte, as testemunhas a ouvir em audiência, essencialmente, por ser um meio de prova de natureza subjectiva, apenas perceptível pelo respectivo depoimento no momento e local, próprios -, os restantes meios de prova podem, e devem, ser “controlados” pelo juiz na fase da instrução do processo, quer quanto à sua temporalidade na apresentação, quer quanto ao seu interesse/importância para a apreciação do objecto da causa, tendo em atenção, mormente, a causa de pedir, a descoberta da verdade material (para o que releva o princípio do inquisitório, expressamente, admitido no artigo 411.º do actual CPC, à semelhança do que já consagrava o CPT) e o princípio da livre apreciação judicial das provas.
3.2. - No caso em apreço, o primeiro documento (junto a fls. 67v. destes autos) não foi admitido por dois motivos: (i) “o mesmo não se destina a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa (nos moldes previstos pelo art. 423º do CPC), antes visando aferir ou afetar a credibilidade das testemunhas em causa”; (ii) “inexiste qualquer prova de o trabalhador não ter tido possibilidade de ter juntado o documento em apreço em data anterior (documento esse que, reitera-se, é da sua própria autoria e está datado de Abril de 2018, ou seja, de data anterior àquela em que a acção deu entrada em juízo)”.
O documento em causa é a cópia de um e-mail enviado, pelo próprio autor, a “D…”, a 13 de abril de 2018, ou seja, muito antes de 28 de março de 2019, data da apresentação em juízo do formulário previsto no artigo 98.º-D do CPT.
O segundo documento (junto a fls. 68 destes autos) também não foi admitido por dois motivos: (i) não estão previstos os legais pressupostos tendentes a tal junção (art. 423º do CPC)”, (ii) e “a mensagem do mesmo constante reporta-se ao serviço a realizar no dia “17/02/2018” e não no dia “24” desse mês, sendo que aquela primeira data não está em discussão na factualidade que foi imputada ao trabalhador.”.
Nas conclusões de recurso, o autor alegou:
“II. O decidido, violou o disposto no artigo 423.º n.º 3 e por consequência o disposto nos artigos 411.º (princípio do inquisitório) e 436.º do CPC, pois o fim último é a busca da verdade material e bem assim, por inerência, o princípio processual da aquisição.
III. Revelando-se um documento essencial para a descoberta da verdade material, ainda que extemporâneo, deverá o Tribunal admitir a sua junção aos autos para livre apreciação e buscar o fim último da justiça que é a verdade material. ”.
Ou seja, em sede de recurso, o enfoque da junção dos dois documentos já não é a eventual prova “dos problemas de relacionamento pessoal com a pessoa que comunicou à Ré as alegadas facturações indevidas de horas de trabalho” – a testemunha E… -, mas a violação dos artigos 423.º, n.º 3, e 411.º do CPC.
Como supra referido, o n.º 3 do artigo 423.º, prevê duas situações: (i) a apresentação não tenha sido possível até ao segundo momento (20 dias antes da data em que se realize a audiência final), (ii) bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
No requerimento indeferido, o autor apenas invoca a primeira situação -“razões de natureza informática, que o impediram de aceder à conta de correio eletrónico” -, sem, no entanto, fazer a respectiva prova, acto essencial para o tribunal poder decidir em conformidade e de modo plausível, tanto mais que o primeiro documento/e-mail é da sua (do recorrente) autoria e está datado de Abril de 2018; e o segundo documento – e-mail recebido pelo autor - está datado de 16 de fevereiro de 2018, tendo a acção entrada em juízo no dia 28 de março de 2019, mais de um ano depois.
Improcede, assim, a alegada violação do artigo 423.º, n.º 3, do CPC.
3.3. – Nos termos do artigo 411.º do CPC - Princípio do inquisitório – “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”.
E o artigo 5.º - Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal - dispõe:
“1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz.a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”.
O autor não alegou qual a concreta factualidade - da causa de pedir ou da defesa -, que pretendia provar com a junção dos dois documentos, que o juiz devesse conhecer e justificasse a sua intervenção, ao abrigo do artigo 411.º do CPC.
Na verdade, no que reporta ao primeiro documento, o autor limitou-se a alegar: “Tal documento, (…), contribuirá para a descoberta da verdade material, contrariando os depoimentos da mencionadas testemunhas”.
Qual a factualidade que precisa ser descoberta e que os “depoimentos das mencionadas testemunhas” contrariaram?
O autor não indicou qual, nem no requerimento indeferido, nem nas conclusões de recurso, sendo certo que o segundo documento se refere a uma obra a realizar “sábado dia 17/2” – “obra no hall de entrada” – e não no dia 24 de fevereiro de 2018, como é mencionado no requerimento indeferido.
Improcede, também, a alegada violação do artigo 411.º, do CPC.
*3. [Comentário] Ainda que o enquadramento que o recorrente deu ao recurso não tenha sido o adequado, talvez a RP pudesse ter chegado a outra conclusão quanto ao primeiro documento.
O recorrente fundamenta o seu recurso no uso dos poderes inquisitórios do tribunal. A RP rejeitou -- e bem -- o recurso com este fundamento. No entanto, o que o recorrente devia ter alegado era que a junção do primeiro documento se tinha tornado indispensável para contraditar os depoimentos das testemunhas e que, por isso, a sua apresentação se tornou necessária em virtude dessa ocorrência posterior ao momento normal da junção da prova documental (art. 423.º, n.º 3, CPC).
É claro que, em regra, o tribunal superior está vinculado ao fundamento do recurso. Se, por exemplo, o tribunal recorrido rejeita a excepção de pagamento invocada pelo demandado e esta parte recorre da decisão condenatória sem pôr em causa essa rejeição, é evidente que o tribunal de recurso não pode analisar se a rejeição dessa excepção foi justificada.
O problema talvez possa merecer uma resposta distinta quando o tribunal recorrido aprecia uma pura questão de direito, isto é, uma questão que não depende da apreciação de nenhum facto e que é puramente valorativa. O caso em análise é precisamente deste tipo, dado que tudo está em saber se a junção tardia do documento é justificada quando se pretende contraditar depoimentos testemunhais. Note-se que nada impede que a contradita da testemunha seja realizada através de prova documental, isto é, nada obsta a que os fundamentos da contradita enunciados no art. 521.º CPC sejam provados documentalmente.
Assim, não teria sido impossível que a RP tivesse apreciado o fundamento da rejeição do documento pela 1.ª instância, apesar de estranhamente o recorrente, em vez de ter questionado esse fundamento, ter optado por suscitar no recurso uma verdadeira questão nova.
MTS
28/10/2020
Jurisprudência 2020 (82)
Recurso;
sucumbência*
1. O sumário de RG 7/5/2020 (2607/17.8T8BRG.G1) é o seguinte:
I O valor da ação e a sucumbência, tal como resulta do artº. 629º, nº. 1, do C.P.C., regem a admissibilidade de recurso.
II Em caso de dúvida fundada sobre o valor da sucumbência, que tem que ver com a relação entre pedido e decisão, rege apenas o valor da causa.
III O valor tributário do recurso para efeitos de definição da taxa de justiça a liquidar pela sua interposição pode ter por base o valor da sucumbência do recorrente, desde que faça apelo e cumpra o disposto no artº. 12º, nº. 2, RCP.
IV Neste caso a determinação da sucumbência faz-se com base no decaimento fixado para a decisão sob recurso.
V O valor da ação não se confunde com o valor tributário do recurso.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Em causa está a interpretação e aplicação do disposto no artº. 12º, nº. 2, do RCP, em conjugação com os artºs. 296º, 629º do CPC e a norma da LOSJ que trata da matéria das alçadas para efeitos de interposição de recurso – artº. 44º da Lei nº. 62/2013 de 26/8, em confronto com o seu artº. 42º, nº. 2.
Salvo o devido respeito, não há nem pode haver confusão entre o âmbito de aplicação de cada uma das disposições.
Em primeiro lugar, regem as normas relativas à possibilidade de interposição de recurso –restringindo-se a análise das que têm que ver com o valor da ação, pois que os outros pressupostos de admissibilidade de recurso não são chamados ao caso.
O que nos rege em sede de admissibilidade de recurso, para a Relação e depois para o STJ, é a regra das alçadas face ao valor do processo (nº. 2 do artº. 296º do C.P.C.); o artº. 629º, nº. 1, C.P.C., introduz como requisito também a regra da sucumbência – vamos sempre analisar apenas a parte aplicável ao caso, não obstante a previsão das situações de admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa ou da sucumbência.
Se o processo tem ou não alçada para cada recurso, tal é determinado pelo valor fixado à ação e pelo valor da sucumbência da parte que pretende recorrer.
A questão da dúvida sobre o valor da sucumbência está prevista no artº. 629º, nº. 1, C.P.C., e tem como objetivo, na dúvida (salva a redundância), essa exigência não obstar à interposição de recurso. Portanto, é uma válvula de proteção da parte que pretende recorrer, consagrando amplamente o direito de recurso e em ultima instância de acesso á justiça – artº. 20º da Constituição da República Portuguesa.
De facto, muito embora os pedidos das partes não sejam líquidos, como é o caso, a toda a causa tem de ser atribuído um valor que representa a utilidade económica imediata do pedido, designadamente para efeitos de aferição da possibilidade de recurso – artº. 296º, nº. 1, C.P.C..
No caso, foi atribuído o valor de € 50.000,01, o que não tem correspondência (numérica ou quantitativa) com os pedidos, nem sequer com regras especiais que o determinam, uma vez que, como se disse não está em causa um pedido de quantia certa em dinheiro ou convertível numa quantia certa (artºs. 297º e 298º do C.P.C.), nem se aplicam os artºs. 300º e segs. do C.P.C.. Para efeitos de recurso da decisão da 1ª instância o valor teria de ser pelo menos de € 5.000,01 para efeitos de recurso, e no caso de recurso do acórdão da Relação teria de ser pelo menos de € 30.000,01. Logo por este critério o recurso do acórdão proferido é admissível.
A sucumbência para efeitos de recurso na primeira instância haveria de ser superior a 2.500,00 (metade da alçada da 1ª instância que é o valor de € 5.000,00, ou seja, aquele até ao qual a mesma decide sem possibilidade de recurso) a na 2ª instância superior a € 15.000,00 (metade da alçada da Relação que é o valor de € 30.000,00, ou seja, aquele até ao qual a mesma decide sem possibilidade de recurso ordinário).
A sucumbência para este afeito resulta da ponderação entre o que foi pedido e o que foi procedente, e a fundada dúvida surge quando a cada pedido não corresponde um valor, impedindo uma operação aritmética.
Matéria completamente diferente tem que ver com o valor do recurso aferido pela sucumbência para efeitos de liquidação da taxa de justiça. Aqui não se coloca a questão da “fundada” dúvida quanto ao valor da sucumbência, porque para efeitos de custas – âmbito no qual nos situamos – ela tem de estar determinada ou ser necessariamente determinável – cfr. artºs. 527º e 607º, nº. 6, C.P.C..
Determinável no artº. 12º, nº. 2, RCP é sinónimo de quantificável.
Entende-se por isso que aqui a sucumbência tem de ser quantificada de acordo com o decaimento fixado em sede de custas, pois que também para efeitos de custas de parte (e cálculo de custas processuais) é esse o critério norteador.
No caso, o decaimento, e pelos motivos assinalados, foi expressamente fixado no acórdão proferido. A R. usou por isso da faculdade de atribuir ao recurso – e apenas para efeitos de liquidação da taxa de justiça devida pela interposição – o valor correspondente ao seu decaimento que em sede precisamente de recurso pretende reverter.
Mais uma vez apela-se ao princípio constitucional de acesso á justiça para se dizer que também aqui se quis afastar a negação ao recurso por motivos económicos.
Portanto, o valor da ação não é alterado, e é o valor da ação inicialmente fixado por despacho transitado, e a sucumbência em função do mesmo, caso se entenda que a mesma não oferece dúvidas, que rege a admissibilidade de recurso; coisa completamente diferente é o cálculo meramente quantitativo da sucumbência com recurso ao decaimento que foi fixado, tendo em conta o valor atribuído à ação, para efeitos de determinação do valor “tributário” do recurso e tendo em vista a liquidação da taxa de justiça.
São pois duas operações e apreciações completamente distintas – isso mesmo decorre da parte final do artº. 296º, nº. 3, do C.P.C. que diz que para efeitos de custas judiciais o valor da causa é fixado segundo as regras previstas no mesmo código e no RCP – salvaguarda por isso os casos especiais do artº. 12º do RCP (cfr. António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Susa, pags. 342 e 343 do “Código de Processo Civil Anotado”, Vol I).
A sucumbência para efeitos de custas – e neste caso, por similitude de regime, taxa- tem de ser determinável e a parte tem de indicar o respetivo valor para se poder prevalecer desta disposição; para este efeito, a sucumbência não é determinável quando o decaimento não decorre da decisão proferida e sob recurso, e o mesmo decaimento não é aritmeticamente quantificável, designadamente quando se trata de uma decisão interlocutória em que não se fixa decaimento concreto para efeitos de custas, ou se remete para final a sua determinação, que pode ser de acordo com o decaimento da própria ação (ou seja, face ao conteúdo ou natureza da decisão) – veja-se Salvador da Costa, “As Custas Processuais”, pag. 166 e 167 da 6ª edição.
O artº. 629º, nº. 1, do C.P.C., que inspirou a solução do artº. 12º, nº. 2, RCP, refere-se a dúvida fundada acerca do valor da sucumbência. Já este refere-se à possibilidade de determinação do valor da sucumbência. O primeiro caso tem a ver com a possibilidade de quantificação de cada pedido (no caso de improcedência parcial), que pode levar a dúvidas quanto à sucumbência; o segundo caso tem que ver com a determinação do decaimento que, mesmo naquele caso, tem de ser feita pelo menos a final (no momento da contabilização das custas, de parte e do processo se as houver).
De todo o modo, ainda que se equiparem as expressões usadas ora no artº. 629º, nº. 1, C.P.C., e no artº. 12º, nº. 2, RCP, neste caso concreto o recurso é sempre admissível, pelo que não é pelo facto de se ter aceite que o valor da sucumbência para efeitos de valor de recurso tenha sido fixado em € 20.000,04 que se altera seja o que for, pois é “apenas” o valor da sucumbência que fixa o valor do recurso (não interferindo com o valor da causa, que é algo diferente); ou seja, a sucumbência de € 20.000,04 é sempre superior a metade da alçada deste Tribunal de que se recorre.
Assim, e como decorre do exposto, a R. podia usar da disposição do artº. 12º, nº. 2, RCP. E fê-lo corretamente já que cumpriu a exigência legal: menção do valor da sucumbência no requerimento de interposição de recurso.
Entende-se por isso ser de manter o despacho reclamado por respeitar as disposições legais atinentes a esta matéria.
*3. [Comentário] O n.º 2 do art. 12.º RCP (com a epígrafe "Fixação do valor em casos especiais") estabelece o seguinte:
2 - Nos recursos, o valor é o da sucumbência quando esta for determinável, devendo o recorrente indicar o respectivo valor no requerimento de interposição do recurso; nos restantes casos, prevalece o valor da acção.
[MTS]
27/10/2020
Jurisprudência 2020 (81)
Notificação;
falta de resposta; efeitos
1. O sumário de RG 7/5/2020 (3956/15.5T8VCT-B.G1) é o seguinte:
I- A venda por negociação particular de imóvel penhorado pode ser validamente efectuada por valor inferior ao valor base do bem fixado para a venda por propostas em carta fechada, que se frustrou, desde que:
- Haja acordo de todos os interessados;
- Ou caso tal não ocorra, exista um despacho judicial que pondere as circunstâncias pelas quais apenas foi obtido pelo encarregado da venda um valor inferior ao inicialmente fixado, e decida se, em face das mesmas, é de autorizar a venda pelo valor proposto, assim assegurando a defesa de todos os interesses em presença.
II- O princípio do contraditório é hoje entendido um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
III- Notificado o Executado de proposta de venda por um valor inferior ao valor fixado, sem a expressa advertência para, querendo, se opor à venda, ou então de que o seu silêncio seria considerado como anuência quanto à proposta feita, parece incontornável que, nos termos do artº. 217.º do CC, quedando-se o mesmo inerte e não tomando qualquer posição, existiu aceitação tácita, pois que o silêncio aqui só pode valer como aceitação, já que por força dos usos em matéria de notificações judiciais, tal significação do silêncio como concordância, é usual.
IV - A verificação de uma irregularidade processual, que possa influir no exame ou decisão da causa ou que a lei expressamente comine com a nulidade, terá de ser arguida segundo o seu próprio regime, não podendo, nunca – a não ser que o processo tenha de ser expedido em recurso antes do fim do prazo da respectiva arguição -, ser atacada por via de recurso.
2. Na fundamentação do acórdão alega-se o seguinte:
"Sem embargo da plena consciência que temos de que o objecto da presente apelação consistir numa alegada omissão de acto processual relevante gerador de uma alegada nulidade, entendemos por conveniente tecer algumas considerações sobre a substancia das questões conexas ou subjacentes a essa alegada omissão.
Assim, e desde logo, face à factualidade demonstrada, cumprirá questionar se de facto houve ou não uma violação do princípio do contraditório, e bem assim, se terá ou não havido uma venda ilegal por falta de acordo de todos os interessados ou de autorização judicial, como pretende a Recorrente.
Como é consabido, o princípio do contraditório é hoje entendido “como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirectamente, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. (Cfr. Lebre de Freitas/João Redinha/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 7-8).
Logo, por decorrência do princípio do contraditório, entendido, não no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, mas no sentido positivo, de direito de participar activamente no desenvolvimento e no êxito do processo, como necessária consequência resulta que qualquer das partes tenha sempre de ser notificada de quaisquer actos relevantes a praticar no processo e, designadamente, daqueles cuja prática dependem da sua anuência, como sucede com a venda judicial por valor inferior ao valor base do bem fixado para a venda, que, para ser validamente efectuada necessita que haja acordo de todos os interessados, ou , caso tal não ocorra, que exista um despacho judicial que pondere as circunstâncias pelas quais apenas foi obtido pelo encarregado da venda um valor inferior ao inicialmente fixado, e decida se, em face das mesmas, é de autorizar a venda pelo valor proposto, assim assegurando a defesa de todos os interesses em presença.
Assim, por decorrência desta acepção do princípio do contraditório, como necessária consequência resulta que qualquer das partes tenha sempre de ser notificada de todos os actos desta natureza, seja qual for o entendimento que o tribunal possa ter sobre a sua relevância, ou seja, tal notificação não deve apenas ser efectuada nas situações em que, no seu citério, o tribunal as considere ou lhes venha a conferir relevância.
Ora, considerado o exposto, temos que, na situação vertente a Recorrente foi notificada em 26/09/2019, “da junção da proposta apresentada por S. R. em 17/09/2019, de que se junta cópia”, no valor de 55.600,00 €, sendo seu entendimento que terá existido uma nulidade porque não foi notificada para, querendo, se opor e dessa forma aplicar o principio do contraditório, conforme dispõe o artigo 3º do C.P.C., com a cominação de nada dizendo considerar-se o seu acordo por prestado.
Ora, salvo o muito e devido respeito, a notificação efectuada não poderia ter sido interpretada com outro sentido que não fosse o de que se pretendia que a Recorrente se pronunciasse no sentido que entendesse sobre a proposta efectuada, rejeitando-a ou a ela anuindo, sem possibilidade de uma qualquer outra terceira via ou sentido.
E assim sendo, mesmo sem cominação, parece-nos incontornável que, nos termos do artº. 217.º do CC existiu aceitação tácita, pois que o silêncio aqui só pode valer como aceitação, já que por força dos usos em matéria de notificações judiciais, tal significação do silêncio como concordância, é usual (art.º 217.º do CC).
Como refere Manuel de Andrade, para que haja uma declaração tácita o que deve verificar-se é “aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões”, prevalecendo aqui um critério prático, social, e não rigorosamente lógico ou formal (Cfr P. de Lima e A. Varela, C. Civil Anotado, anotação ao artigo 217, do C.C), pelo que, bem sabendo a Recorrente que a notificação efectuada não poderia ter outro sentido que não fosse o de que se pretendia que ela se pronunciasse no sentido que entendesse sobre a proposta efectuada, rejeitando-a ou a ela anuindo, sem possibilidade de uma qualquer terceira via ou sentido interpretativo, dúvidas não podem restar de que se não adoptou um comportamento activo, opondo-se, é porque com ela concordou ou, pelo menos, dela não discordou.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra, de 13/11/2012, numa “razoável interpretação concatenada destes preceitos, importa concluir que a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.
A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as decisões que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas.
O que importa é que os termos da decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstractamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspectivado como sendo possível. [...]
Na verdade, tendo a Recorrente optado por nada dizer, bem sabendo qual era o alcance e objectivo da notificação que lhe foi efectuada, ou seja, tendo sido informada do conteúdo e intenção de alienação do imóvel pelo referido valor, e tendo-se a mesma remetido ao silêncio, não teria qualquer sentido e violaria as legítimas expectativas criadas e desprotegeria a confiança das restantes partes e do próprio tribunal, dar relevância a uma omissão de um acto absolutamente inócuo para a compreensão do sentido e objectivo da notificação que lhe foi feita.
E assim sendo, não se nos afigurando que tenha havido violação do princípio do contraditório, igualmente se nos afigura como incontornável não ter havido violação da regra sobre a obrigatoriedade de fixação do valor base dos bens, pois que, exceptuando-se desta regra os casos de acordo unânime entre o executado e os credores previstos no art. 832.º, al. a) e b), do nCPC, respeitante à venda por negociação particular, na presente situação, como se deixou dito, houve aceitação tácita, pois que o silêncio aqui só pode valer como aceitação, já que por força dos usos em matéria de notificações judiciais, tal significação do silêncio como concordância, é usual."
[MTS]
26/10/2020
Jurisprudência 2020 (80)
Aval;
obrigação cambiária; prescrição
1. O sumário de RG 7/5/2020 (2063/10.1TBBRG.G1) é o seguinte:
I - O fim visado com o aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário.
II - Deixando de existir em termos jurídicos o título cambiário (letras de câmbio) em que o aval havia sido prestado, nomeadamente, por prescrição, cessa também o respectivo aval.
III – No entanto, é possível que a prestação de um aval ao aceitante de uma letra tenha subjacente uma fiança que visa garantir o cumprimento da obrigação que emerge para o aceitante da letra do negócio jurídico subjacente ao aceite.
IV - Para tal, impõe-se a alegação e prova pela exequente de que o avalista/executado se queria obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, ou seja, que a relação subjacente ao aval era uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado da relação subjacente ou fundamental.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"No caso vertente, há a considerar que a execução deu entrada em juízo no tribunal no dia 24 de março de 2010 e que tendo ocorrido a citação (presumida) dos embargantes ocorreu no dia 29 de março de 2010, impõe-se concluir, como na sentença recorrida, que todas as letras de câmbio vencidas até ao dia 29 de março de 2007 estão prescritas, ou seja, as indicadas sob os nº1, 4 a 10 supra.
Por outro lado, extinta a obrigação cambiária decorrente dessas letras de câmbio, por prescrição, há que atentar se as mesmas podem, ainda assim, valer como título executivo, posto que delas, enquanto documento, conste a causa da obrigação subjacente, ou que esta tenha sido alegada no requerimento executivo (inicial).
Com efeito, a este propósito, dispõe o art. 703º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil que À execução apenas podem servir de base:
a) (…);b) (…)c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.
Ora, dos referidos elementos dos autos resulta alegada essa obrigação subjacente, ainda que em termos muito sumária, o que nos poderia levar a concluir que tais documentos poderiam ser aproveitados ainda como títulos executivos, agora ao abrigo do citado art. 703º, nº 1, al. c), do CPC.
Todavia, os embargantes figuram nas letras de câmbio como avalistas.
O aval é um acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou livrança garante o pagamento dela por parte de um dos subscritores (art.º 30º e 77º da LULL). A figura do aval, a par do endosso, é exclusiva das relações cartulares e somente transfere os direitos cambiários e já não os direitos fundados na relação causal.
De modo que, estando prescritas, como vimos, as obrigações cambiárias pela prescrição, cumpre verificar se subsiste alguma obrigação causal.
Propendemos para a negativa, porquanto o aval é um tipo de vinculação que se esgota no título cambiário, não sobrevivendo a este se a obrigação do avalista estiver, como está, prescrita nos termos dos artºs 70 e 71º da LULL. Neste sentido, entre outros, se sumariou no acórdão desta Relação, de 4.04.2017, proc. 49/16.1T8MDL-B.G1: “O fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário.
O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas sujeito da relação subjacente ou fundamental à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos.
Este tem a sua razão de ser no título cambiário e cessa quando este título desaparece do mundo jurídico o que acontece quando prescrita a obrigação cartular o titulo cambiário é dado à execução como mero quirografo.
A prestação de um aval ao aceitante de uma letra pode ter subjacente uma fiança que visa garantir o cumprimento da obrigação que emerge para o aceitante da letra do negócio jurídico subjacente ao aceite.
Todavia para assim se entender, necessário se torna a alegação e prova, por parte da exequente, de que o avalista/executado se queria obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, i.e., que a relação subjacente ao aval era uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado da relação subjacente ou fundamental.”
Como sustenta Ferrer Correia, (“Letra de Câmbio", pág. 196), "o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário".
Sendo o aval uma forma específica de obrigar no âmbito do título cambiário, a ele não se sobrepõe uma qualquer fiança do respectivo dador, como relação jurídica subjacente.
Seguindo de perto o acórdão supra citado: (…)”Como bem anota a recorrente não há nenhuma relação fundamental ou causal do aval. Este tem a sua razão de ser no título cambiário e cessa quando este título desaparece do mundo jurídico.
Não se ignora que já se produziu alguma jurisprudência e mesmo doutrina que propendeu a ver no aval uma figura decalcada da fiança do direito civil, sustentando que aquele se apresentava essencialmente como uma fiança, aplicando-se-lhe os princípios reguladoras desta “desde que disposições cambiárias da lei cambiária os não afastem de modo explícito”.
Este decalque foi, todavia, desmontado pelo Prof. Ferrer Correia Lições de Direito Comercial, Lex, ed. de 1994, p. 522 e seguintes do seguinte modo:
“Mas tão pouco a teoria da fiança (a qual se pode dizer que é latina, enquanto a anterior é germânica) justifica cabalmente o regime jurídico do aval. Ela não explica porque é que nulidade intrínseca da obrigação avalizada não se comunica à do avalista (art.º 32 da LULL); a este só aproveita aquela nulidade que proceder de um vício de forma. Não assim na fiança: na fiança, a nulidade da obrigação principal aproveita ao fiador. É a doutrina do art.º 632 do Cód. Civil, que só conhece uma excepção: o caso de incapacidade do obrigado. Também a teoria da fiança não nos explica o direito de regresso do avalista contra os signatários anteriores ao avalizado. (…). Temos, portanto, de concluir que o aval, sendo uma garantia, não é rigorosamente uma fiança (…)”.
E não podendo sobejar do aval uma fiança, como negócio jurídico que lhe estaria subjacente, nenhuma relação obrigacional ou reconhecimento de dívida se pode extrair da fórmula “Bom para aval”, a qual não é passível de comportar um reconhecimento de dívida fora da vinculação e significação que lhe é emprestada pela Lei Uniforme, mais precisamente nos respectivos art.º 30º a 32º.”
Em todo o caso, a prestação de um aval ao aceitante de uma letra pode ter subjacente uma fiança que vise garantir o cumprimento da obrigação que emerge para o aceitante da letra do negócio jurídico subjacente ao aceite.
O art. 627º do CC, prevê que o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.
Assim, pela fiança um terceiro (fiador) responde com o seu património, cumulativamente com o património do devedor, pelo pagamento da dívida, de maneira que o credor fica a dispor de dois patrimónios como garantia do seu crédito.
Porém, para que tal se verifique, tem de haver alegação e prova, por parte da exequente, de que o avalista/executado se queria obrigar como fiador pelo pagamento da obrigação fundamental, i.e., que a relação subjacente ao aval era uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado da relação subjacente ou fundamental – v. neste sentido Acs. R. P. de 28.05.2009 (Pº 3093/07.6TBSTS), de 10.05.2010 (Pº 1137/06.8TBPMS-A. P1) e de 20.03.2012 (Pº 2590/09.3 TBVLG-A. P1) e Ac. R.L. de 29.09.2011 (Pº 2161/06.6TCSNT-A. L1-8), todos disponíveis em dgsi.pt.
No caso em apreço, nada resulta da factualidade alegada, designadamente no requerimento executivo, quanto à vontade dos executados/oponentes de se obrigarem como fiadores, não estando, por isso, provado que a relação causal do aval radica na existência de uma fiança, de harmonia com a exigência prevista no art. 628º, nº 1, do CC.
E, não tendo a Recorrente alegado factos concretos de onde se possa concluir que os embargantes se assumiram como fiadores pelo cumprimento das obrigações decorrentes da relação subjacente, não podem os referidos documentos quirógrafos (letras de câmbio prescritas) valerem como título executivo relativamente à embargante.
Por outro lado, as 2ª e 3ª letras de câmbio referidas supra, (respectivamente, com os números 500792887066530342 e 500792887066530334), não prescritas, como vimos, contêm aval do embargante, mas não da embargante. Logo, esta não consta como obrigada nessas letras, pelo que elas não constituem título executivo relativamente à embargante.
Sucede que que o embargante já não figura na execução como executado, na sequência de decisão judicial proferida nos autos, transitada em julgado.
De todo o exposto, conclui-se pela total improcedência das conclusões do recurso e, em consequência, deve manter-se a sentença recorrida."
[MTS]
[MTS]
24/10/2020
Condenação do recorrente no pagamento das custas do recurso no caso de beneficiar de apoio judiciário
23/10/2020
Jurisprudência 2020 (79)
Deserção da instância;
negligência; audição prévia*
1. O sumário de RL 7/5/2020 (3820/17.3T8SNT.L1-6) é o seguinte:
I) No regime do CPC de 2013 a apreciação da negligência nas acções declarativas foi deslocada da suprimida interrupção da instância para a deserção.
II) A deserção da instância não opera ope legis, por decurso de prazo, mas através da prolação de despacho constitutivo que aprecie dois pressupostos: o decurso de prazo para impulso e a negligência da parte em promover os termos da acção.
III) No regime do CPC de 2013, a apreciação da negligência justificativa da deserção deve ser feita face aos concretos elementos constantes dos autos, não bastando o mero decurso do prazo, pelo que deve ser operado o contraditório prévio quanto aos requisitos da deserção, se no despacho que decreta a suspensão não for feita advertência de que a inércia a determinará.
IV) A omissão de contraditório determina a anulação da decisão, podendo a nulidade ser invocada em sede de recurso da decisão de mérito, pois é o conteúdo desta que revela a omissão de acto prescrito pela lei sendo o recurso da sentença o meio adequado à impugnação.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"1. A questão suscitada pelo Recorrente consiste na sua discordância com a declaração de deserção da instância por negligência sua, sem que lhe seja dada a possibilidade de se pronunciar sobre essa presumida situação de negligência.
A questão é assim a de saber se, estando o processo a aguardar a habilitação dos sucessores de parte falecida, o despacho que declarou a deserção da instância, decorridos seis meses após a suspensão, podia ser proferido sem audição das partes, nomeadamente quanto à assacada negligência na promoção do andamento dos autos.
2. A deserção da instância constitui causa de extinção da instância da acção ou dos recursos – artigo 277.º, alínea c), do CPC – regendo quanto aos seus pressupostos o artº 281º, do mesmo diploma, o qual estatui, na parte pertinente:
1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 [que se reporta à acção executiva], considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. (…)3 - Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.4 - A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator. (…).
A norma transcrita foi introduzida pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, que entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2013, e que é aplicável no caso dos autos, porque instaurados na sua vigência.
A deserção da instância, no Código de Processo Civil na versão anterior à Lei 41/2013, decorria do mero decurso do prazo de dois anos após a interrupção fundada em negligência das partes em promover o andamento dos autos. Era o que resultava das normas dos artigos 285.º [...] e 291.º, n.º 1 [...], do CPC na redacção anterior à indicada Lei 41/2013.
A apreciação da negligência na promoção do processo, acrescida do decurso de prazo de um ano, determinava a interrupção e a deserção operava sem outra apreciação, decorridos dois anos. Assim era que o decretamento da interrupção da instância implicava, no regime anterior, uma apreciação de negligência da parte enquanto a subsequente deserção implicava tão somente a sua ausência útil da lide durante o período de tempo assinalado.
O regime actual (referimo-nos sempre e apenas às acções declarativas) deslocou a apreciação da negligência da interrupção para a deserção, operando esta não ope legis, por decurso de prazo, mas através da prolação de despacho constitutivo de apreciação da verificação dos seus requisitos.
3. Por isso, abandonado o regime da interrupção, a negligência constitui agora pressuposto da deserção, implicando, de acordo com o artigo 281.º transcrito, uma apreciação judicial.
Temos assim como certo que não basta à declaração de deserção a mera constatação de que, desde a suspensão decorreu o prazo assinalado pela lei, antes importa que tenha decorrido sem utilidade, porque a parte foi negligente em promover a acção.
Em suma, a deserção da instância deve ser decretada em despacho que aprecie dois pressupostos: o decurso de prazo de suspensão e a negligência da parte em promover os termos da acção.
O ponto é saber qual o regime dessa apreciação no que à negligência concerne, nomeadamente quanto à questão que os autos colocam de necessidade de prévio contraditório para pronúncia das partes quanto à sua verificação.
4. É muito diversa e contraditória a jurisprudência das Relações quanto a esta questão, pelo que encetaremos saber qual a do Supremo Tribunal de Justiça, também numerosa e multifacetada, com admissão de diversas revistas excepcionais que bem ilustram a discordância jurisprudencial.
Percorrer-se-á a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça publicada nas bases de dados do IGFEJ com os seguintes critérios: aplicação do Código de Processo Civil de 2013, a acções declarativas e verificação efectiva dos pressupostos (não se referirão os acórdãos em que, por outra razão, a deserção foi afastada ou confirmada).
Assim.
[--] Acórdão de 5 de Julho de 2018 proferido no processo 5314/05.0TVLSB.L1.S2 (HELDER ALMEIDA) no qual se considera que a negligência fundamento da deserção não implica audiência prévia da parte, sendo que a situação aprecianda era de despacho de suspensão que havia sido notificado e decretado com indicação de os autos aguardariam impulso do autor nos termos do artigo 281.º do CPC.
Refere ainda o mesmo acórdão que nada impõe audição prévia das partes antes da declaração de deserção, desde que as partes estejam alertadas para a respectiva consequência.
Lê-se no seu texto, adoptando argumentação anterior que ficando as partes alertadas/avisadas para a cominação — deserção da instância — que adviria da respectiva inércia em vir aos autos requerer o seu prosseguimento - porque não alcançado o acordo - , não existia outrossim qualquer pertinência de, antes da prolação da decisão recorrida, determinar o tribunal a notificação de ambas as partes - de modo a cumprir o princípio do contraditório - para se pronunciarem sobre a referida matéria [...].
[--] Acórdão de 22 de Maio de 2018, proferido no processo 3368/06.1TVLSB.L1.S1 (HENRIQUE ARAÚJO) no qual é estabelecida a necessidade de apreciação dos concretos elementos do caso para avaliar do âmbito de observância dos deveres de consulta e prevenção a cargo das partes, indicando mesmo o acórdão, com referência a anterior processo do Relator, que o novo regime de deserção da instância, instituído em 2013, implica exigência redobrada para o tribunal. Conclui o acórdão pela necessidade in casu de o tribunal proceder a uma prévia advertência das partes, razão porque anulou a decisão que decretou a deserção.
A situação vertente era em tudo semelhante à que nos ocupa. Assim, foi proferido despacho em primeira instância similar ao que foi proferido nestes autos. Veja-se o teor: “Uma vez que faleceu a Ré VVV, declaro a suspensão da instância (artigo 269º, n.º 1, alínea a) e 270º, n.º 1, do CPC)”. Após tal despacho foi declarada a deserção da instância decorrido o prazo da suspensão.
Dada a relevância transcreve-se a alusão ao anterior acórdão subscrito pelo Relator:
O presente relator subscreveu, na ocasião como desembargador adjunto na Relação do Porto, o acórdão de 02.02.2015[...], onde, depois de se fazer uma comparação entre os regimes de deserção da instância pré e pós reforma de 2013, se escreveu o seguinte:
“(…) o regime que actualmente vigora é bem mais severo para as partes, mas, em contrapartida, é também mais exigente para o tribunal. Para as partes, o efeito preclusivo da sua inacção negligente determina o cancelamento imediato da tutela jurisdicional das respectivas pretensões; mas, para o tribunal deixou também de haver qualquer automatismo entre essa inacção e as suas consequências processuais. Impõe-se sempre, no fundo, um balanceamento de valores, no sentido de determinar se a tutela jurisdicional requerida pelas partes foi por elas, voluntária ou negligentemente, desperdiçada ou mesmo prescindida, caso em que essa tutela não se justifica, de todo.
Ora, esta mudança de regime deve ser também seguida pela alteração de procedimentos. Às partes exige-se um maior cuidado no acompanhamento das suas causas para que as mesmas atinjam a finalidade normal para que foram instauradas, ou seja, a declaração, por acto jurisdicional, do direito controvertido. E ao tribunal, por sua vez, exige-se também, como já dissemos, que só cancele a tutela jurisdicional que lhe foi solicitada se houver dados bastantes para concluir, com certeza, pelo total alheamento das partes em relação à referida finalidade. O que significa, em suma, que, por regra, não pode, nem deve, proceder a esse cancelamento sem se certificar previamente que esse alheamento, propositado ou negligente, existe. E uma das formas de o conseguir é através do contraditório prévio, que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, designadamente em relação a questões, como é o caso dos autos, em que as partes não tiveram prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem (artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Não significa isto, obviamente, que a falta de impulso processual não possa ser considerada, ela mesma, sinónimo de negligência das partes ou de alguma delas. Mas não basta presumi-lo. É necessário, como dissemos, certificá-lo” [...].
Também nesse acórdão se cita o que Teixeira de Sousa refere no blog do IPPC em anotação aquele acórdão:
Efectivamente, como a deserção da instância exige que a falta de impulso decorra da negligência das partes (cf. art. 281.º, n.º 1, CPC), haverá que avaliar, caso a caso, se se justifica o cumprimento pelo tribunal do dever de prevenção. Procurando exemplificar, poderá haver razões para o cumprimento desse dever se a parte à qual cabe o impulso não estiver representada por advogado ou se esta mesma parte tiver demonstrado, pelo seu anterior comportamento processual, que está interessada na continuação do processo e se, por isso, for surpreendente a falta de impulso processual.
[--] Acórdão de 9 de Novembro de 2017 proferido no processo 56277/09.1YIPRT.P2.S1 (TÁVORA VICTOR), em que antes da decisão de deserção o tribunal notificou a parte para pronúncia quanto à ocorrência de negligência na promoção dos termos da demanda, ponderou o Supremo:
No entanto o regime jurídico aplicável, sendo o do Código de Processo Civil ora vigente, prevê apenas a suspensão da instância e a respectiva deserção. Todavia ao contrário do que sucedia antes, não basta o simples decurso do tempo e a inércia das partes para conduzir à extinção da instância. Atentemos a propósito no artigo 281.º do actual Código de Processo Civil onde pode ler-se: “1 – Sem prejuízo do disposto no nº 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. (…)
No que nos interessa considerar, a deserção da instância se se basta com o prazo de seis meses, tendo acabado o estádio intermédio da interrupção, o certo é que agora se exige ao Juiz um esforço acrescido na medida em que tem de indagar se as partes mantêm por sua culpa o processo parado não promovendo os respectivos termos. E claro está, que para conseguir o seu desiderato deverá lançar mão do supracitado artigo 6º do NCPC onde se confere para tanto ao Juiz amplos poderes intervencionistas e de agilização [...].
[--] Acórdão de 20 de Setembro de 2016, proferido no processo 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1 (JOSÉ RAINHO) defende a inexistência de um dever de o tribunal convidar as partes especificamente a pronunciar-se sobre a questão da deserção, antes devendo analisar a situação à luz do que os autos espelham a respeito, nomeadamente, quanto a negligência da parte.
Retira-se do sumário que espelha o desenvolvimento em texto integral:
V. A negligência a que se refere o nº 1 do art. 281º do CPC não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente).
VI. Tal negligência só deixa de estar constituída quando a parte onerada tenha mostrado atempadamente estar impossibilitada de dar impulso ao processo.
VII. Inexiste fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para a prévia audição das partes no contexto da deserção da instância com vista a aquilatar da negligência da parte a quem cabe o ónus do impulso processual.
De notar que o contexto deste acórdão é o da efectiva existência de um comportamento da parte a valorar: ao invés de deduzir o incidente de habilitação necessário ao prosseguimento dos autos a parte apresentou escritura de habilitação notarial sem nada requerer. Ou seja, uma vez mais a negligência é apreciada em concreto. Essa apreciação é que prescinde, no caso, na opinião do Supremo, da audição prévia das partes que, aliás, qualifica de acto inútil, à luz do ocorrido no processo concreto e não em geral.
[--] Acórdão de 14 de Dezembro de 2016, proferido no processo 105/14.0TVLSB.G1.S1 (SALAZAR CASANOVA) em que se considera desnecessária a audição das partes ou qualquer notificação prévia ao despacho que declara a deserção. Embora este aresto pareça prescindir das cautelas de apreciação do caso concreto que os demais citados indicam, lida a fundamentação, verifica-se que dela consta a ponderação da actuação das partes como segue:
Finalmente refira-se que, no caso vertente, seria absolutamente desnecessário averiguar das razões por que o incidente de habilitação não foi proposto. A interessada sabia e estava informada pelo tribunal desde o início da suspensão que teria de ser instaurado incidente de habilitação; a irmã, cuja paternidade ainda não foi reconhecida ao que se julga, declarou que por ora não deduziria o incidente e o Tribunal esclareceu o que sobre esta questão havia a esclarecer; não foi requerido ao Tribunal que a instância se mantivesse suspensa enquanto a irmã da interessada recorrente não interpusesse recurso, ou seja, não foi posta ao tribunal nenhuma questão sobre a qual houvesse de se pronunciar e, por isso, neste quadro concreto, que contraditório se poderia visar a partir do momento em que a interessada, ora recorrente, tinha advogado nomeado para exercer os direitos que provavelmente ela pretendia exercer, isto é, habilitar-se nos autos como herdeira para prosseguir a ação que seu pai intentara? ([...]).
[--] Acórdão de 18 de Setembro de 2018 proferido no processo 2096/14.9T8LOU-D.P1.S1 (SOUSA LAMEIRA) em que se sublinha justamente que a decisão de suspensão da instância advertiu a parte nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC. Como segue:
Ora, resulta da matéria de facto provada que, em 20 de Junho de 2016, foi proferido despacho a declarar a instância suspensa «sem prejuízo do disposto no artigo 281 n.º 5 do CPC» (…)
Afirmamos que foi por negligência da embargante, ora recorrente, pois esta sabia – após o despacho de 20.06.2016 – que a instância estava suspensa, sem prejuízo da sua deserção e que lhe cabia o ónus de vir ao processo despoletar o impulso processual (como aliás veio em 25.01.2017).
É inquestionável, face ao despacho de 20.06.2016, que a embargante sabia que o seu silêncio, a sua inércia processual por mais de 6 meses conduziria à deserção da instância.
A embargante sabia, pois para isso foi devidamente alertada, que se nada requeresse no prazo de 6 meses a consequência seria a deserção da instância.
[--] Acórdão de 3 de Maio de 2018 proferido no processo 217/12.5TNLSB.L1.S1 (TOMÉ GOMES) mais uma vez em situação de despacho de suspensão que advertiu as partes da possibilidade de deserção da instância. Lê-se no aresto:
No entanto, como a própria recorrida admite, há que salvaguardar o princípio genérico do contraditório consagrado no art.3.º, n.º 3, do CPC.
Ora, no caso em apreço, a recorrente foi devidamente alertada: i) para justificar a omissão de junção da documentação solicitada pelo tribunal na audiência prévia, como resulta do despacho de 18.11.2015; ii) para as consequências da sua inércia, conforme resulta do despacho proferido em 17.05.2016. E remeteu-se sempre ao silêncio.
A recorrente foi notificada para justificar a omissão de junção de documento e nada disse. E foi notificada/advertida de que os autos aguardavam o prazo de deserção atenta a sua inércia.
E, mais uma vez, nada disse.
O contraditório mostra-se, pois, devidamente assegurado.
Ou seja, o Supremo não afasta a necessidade de contraditório quanto à questão da negligência, considera que ao mesmo é bastante a advertência que resulta da referência ao regime da deserção aquando da suspensão dos autos.
[--] Acórdão de 8 de Março de 2018 proferido no processo 225/15.4T8VNG.P1-A.S1 (ROSA TCHING) em que, sem ressalvas, se opta pela inexistência de um dever de prevenção ou consulta por parte do tribunal e em que o despacho de suspensão não havia mencionado em advertência o regime da deserção.
E se é certo ter o novo Código de Processo Civil, posto também em destaque o dever do juiz de dar prevalência, tanto quanto possível, a decisões finais de mérito sobre decisões meramente processuais (art. 278º, n.º 3), o dever de gestão processual, dirigindo ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere (art. 6º, n.º 1), e de cooperação com as partes, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art. 7º, n.º 1), a verdade é que isso não pressupõe que o juiz tenha de se substituir às partes no cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo.
Julgamos, contudo, que, no caso dos autos, a questão não pode deixar de ser colocada em termos de se saber se o juiz devia atuar de forma preventiva de molde a evitar que o processo sucumbisse por deserção da instância, ou seja, se o juiz devia, no despacho que proferiu em 5 de julho de 2016 e em que determinou a notificação «do autor para proceder ao registo da ação – art. 9º do CRC, ficando a instância suspensa», advertir o mesmo de que essa suspensão ocorreria “sem prejuízo do disposto no art. 281º, n.º 1 do Código de Processo Civil”.
Cita os acórdãos 105 e 1742 acima já mencionados, onde, se bem os lemos, se verificava, todavia, uma efectiva possibilidade de apreciação da conduta da parte onerada em momento anterior à prolação do despacho de deserção.
5. Em súmula da jurisprudência indicada, com a excepção do acórdão 225 a que nos referiremos mais tarde, todos os demais consideraram os contornos específicos do caso e o que era possível extrair em concreto do processo quanto à negligência da parte em promover o andamento da acção cujo ónus lhe cabia.
Genericamente, os acórdãos não negam a necessidade de contraditório, sendo que, aqueles que prescindem de que seja operado especificamente, o fazem em situações em que houve pronúncia ou em que o tribunal ao suspender advertiu com indicação do regime da deserção após suspensão, mesmo que apenas pela lacónica menção de que o processo ficava suspenso nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC.
Na generalidade dos acórdãos o balanço é feito entre as necessidades de não permitir que os tribunais sejam enxameados de processos que as partes negligenciam (porventura em prejuízo de outro em que a sua actividade mais útil seria) e a necessidade de decisão substantiva dos litígios, fazendo apelo a um tempo aos princípios de prevenção, consulta e cooperação do tribunal e ao de auto-responsabilização das partes que, não sendo antagónicos, militam no caso em sentidos diversos.
De modo que cremos exemplar o acórdão 3368 estabelece o especial dever de cuidado que o actual regime da deserção impõe, em virtude de não estar ancorado numa anterior apreciação dos requisitos da interrupção nem num prazo longo de inércia.
Não é assim no acórdão 225, ao qual voltamos. Neste aresto é clara a opção por um regime de objectivação da negligência face ao decurso do prazo.
Do que concluímos que o Supremo, com a indicada excepção, considera em alguns arestos necessário contraditório prévio à deserção, mesmo que tabelar pela referência ao artigo 281.º, n.º1, e em todos os outros, com aquela excepção, julga indispensável a apreciação da situação de negligência em concreto do que decorre do processo, não bastando a mera verificação da inércia.
Pelo exposto, não cremos que se verifique unanimidade decisória do STJ nas circunstâncias concretas do caso que julgamos.
6. Apreciando agora o caso que nos ocupa, entendemos relevante considerar que o despacho que decretou a suspensão da instância em nenhum momento advertiu as partes de que tal suspensão determinaria a deserção e em que prazo tal ocorreria.
Dir-se-á, com o acórdão 225, que uma parte representada por advogado tem de conhecer o prazo e a consequência.
O que é verdade. Mas pode também considerar-se que a parte conhecedora da lei poderá ter em atenção que, não tendo sido advertida, será chamada a pronunciar-se antes de ser decretada a deserção.
Porque, repetimos, a variável do juízo pela negligência não é despicienda nem automática. Se no despacho de suspensão se adverte a parte de que a deserção será decretada findo o prazo do artigo 281.º, n.º 1, sempre se pode considerar negligente a parte que antes de esse prazo findar nada traz aos autos. Na ausência dessa advertência, a negligência tem de estar demonstrada por outras ocorrências processuais, como sucede em alguns dos casos citados.
É certo que o Autor/Recorrente é o pior candidato a que se entenda que não conhece o regime ou a que se considere parte indefesa. Trata-se de um Banco, com seguramente um serviço de contencioso e, naturalmente, representado por advogado. Mas não vemos critério que permita distinguir com base nessa realidade dos sujeitos.
Não nos esquecemos que mesmo no recurso o Autor não indicou qualquer dificuldade específica que o impedisse de promover o andamento dos autos, refugiando-se em alegações de ordem geral quanto a atrasos dos serviços de registo, válidas em qualquer época e situação e que não afirmou terem ocorrido com relevância no caso vertente.
Pese embora, não eram as alegações de recurso a sede própria para tal, sabido que é que os recursos se destinam a apreciar decisões anteriores e não a proferi-las ex novo.
Em suma, entendemos que no caso dos autos não pode superar-se a omissão de advertência para o regime da deserção no despacho de suspensão que, na ausência de outro facto para além da inércia, apenas pode ser salvaguardado mediante a notificação para prévia pronúncia. É o que decorre do regime do artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
Em suma, na construção de norma geral de aplicação quanto ao regime da deserção, entende-se que, no regime do CPC de 2013, a apreciação da negligência justificativa da deserção deve ser feita face aos concretos elementos constantes dos autos, não bastando o mero decurso do prazo, pelo que deve ser operado o contraditório prévio quanto aos requisitos da deserção se no despacho que decreta a suspensão não for feita advertência de que a inércia determinará a deserção, excepto quando outros elementos manifestem inequivocamente negligência tornando inútil aquela notificação.
*3. [Comentário] O acórdão da RL tem tudo para se tornar o leading case na matéria.
A referência à negligência que consta do art. 281.º, n.º 1, CPC pressupõe um juízo valorativo do tribunal sobre a omissão da parte. Este juízo requer, por seu turno, o conhecimento de uma determinada factualidade, porque em direito não há juízos valorativos nem automáticos, nem em abstracto: qualquer juízo valorativo é feito tomando em consideração certos factos. É exactamente por isso que uma mesma ausência de impulso processual depois do falecimento de uma das partes pode ser negligente no caso X e não ser negligente no caso Y.
Infelizmente, o posterior STJ 2/6/2020 (139/15.8T8FAF-A.G1.S1), afastando-se da boa doutrina, entendeu que "constituindo a habilitação de sucessores um ónus que, além destes, recai sobre a parte, em face da clareza do início do prazo de seis meses e das respectivas consequências, a declaração de extinção da instância por deserção não tinha que ser precedida de despacho a indicar tal cominação, inexistindo fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para prévia audição das partes com vista a aquilatar da sua negligência."
MTS
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