"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/11/2020

Âmbito de aplicação material do Reg. 1215/2012


1. No recente acórdão da RL 10/11/2020 (25787/19.3T8LSB.L1-7) decidiu-se o seguinte:

I - Nas causas que envolvam elementos de conexão com diversos Estados-membros da União Europeia, a competência internacional dos Tribunais portugueses deve ser determinada à luz do Regulamento nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, e não à luz do disposto nos arts. 60º e segs. do CPC.

II - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para uma execução para pagamento de quantia certa intentada por um banco português contra duas pessoas singulares de nacionalidade espanhola e residentes em Espanha, tendo por títulos executivos livranças onde consta como lugar do pagamento Lisboa, e que os executados assinaram na qualidade de avalistas e gerentes da sociedade subscritora – art. 7º, nº 1, al. a) do referido Regulamento.

2. a) Verdadeiramente, não há muito a dizer sobre a orientação defendida pela RL, a não ser que a mesma assenta num equívoco, dado que o Reg. 1215/2012 não é aplicável ao processo executivo. Em concreto: nenhuma regra de competência constante do Reg. 1215/2012 tem aplicação no processo executivo. O mesmo vale, aliás, para a CLug II referida no acórdão.

Importa lembrar que o processo executivo se orienta por um princípio de territorialidade, segundo o qual as medidas executivas só podem ser tomadas no Estado da situação dos bens. Basta esta circunstância para demonstrar que, se, por acaso, alguma vez tivesse havido alguma dúvida sobre a aplicação do Reg. 1215/2012 ao processo executivo, a dúvida estaria imediatamente desfeita pela circunstancia de as regras de competência que dele constam não serem adequadas ao processo executivo. Por exemplo: de pouco serve entender -- como a RL fez -- que é competente para a execução o tribunal do lugar do cumprimento da obrigação (art. 7.º, n.º 1, Reg. 1215/2012), se no respectivo Estado-Membro não houver bens penhoráveis do executado. Aliás, é também exactamente pela mesma razão que as regras internas que constam do art. 62.º CPC não são aplicáveis ao processo executivo: para este processo, a sua utilidade é reduzida, se não mesmo nula.

Até ao momento, o único instrumento europeu que possibilita que certas medidas executivas sejam decretadas num Estado-Membro e executadas num outro Estado-Membro é o Reg. 655/2014, relativo ao procedimento de decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial. Para uma apresentação geral deste Regulamento, clicar em Teixeira de Sousa, ROA 79 (2019), 189.

b) A única regra de competência em que é referido o processo executivo é a que consta do art. 24.º, n.º 5, Reg. 1215/2012. Mas o sentido -- indiscutível -- do preceito é o de determinar que o tribunal no qual corre a execução (e cuja competência é aferida pela lei interna do Estado-Membro) tem competência exclusiva para os processos declarativos que constituam incidente ou apêndice do processo executivo, como, por exemplo, os embargos de executado ou os embargos de terceiro.

c) Duas notas finais:

-- Atendendo ao princípio de territorialidade acima referido e dado que a própria exequente informou o tribunal de 1.ª instância que desconhece que os executados tenham bens situados em Portugal, a execução agora pendente nos tribunais portugueses vai ser, muito provavelmente, uma execução inútil que se extinguirá por não serem encontrados bens penhoráveis em Portugal (art. 750.º CPC);

-- Ao contrário do que se dá a entender no n.º I do sumário, o Reg. 1215/2012 também é aplicável quando a causa tenha conexão com Estados terceiros; por exemplo: se dois argentinos com domicilio na Argentina litigarem sobre um prédio situado em Lisboa, o Reg. 1215/2012 é aplicável, estabelecendo a competência exclusiva dos tribunais portugueses para a respectiva acção (art. 24.º, n.º 1, § 1.º, Reg. 1215/2012).


MTS