"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/11/2020

Jurisprudência 2020 (89)


Processo executivo;
legitimidade processual; intervenção de terceiros


1. O sumário de RG 21/5/2020 (1778/14.0TBBCL-D.G1) é o seguinte:

I. O credor que pretenda fazer valer a garantia real do seu crédito terá sempre que demandar na execução o terceiro (quanto à dívida que se executa) proprietário do bem sobre a qual foi constituída; e, por isso, terá que apresentar o título executivo de que decorre a constituição ou reconhecimento da dívida, e o título material de constituição da garantia no património do dito terceiro.

II. Tendo o credor instaurado acção executiva apenas contra o devedor, e não simultaneamente contra o terceiro proprietário do bem dado em garantia, pode depois fazer intervir este por meio de incidente de intervenção principal provocada, quando pretenda exercitar nessa mesma execução a garantia real do seu crédito.

III. O caso julgado forma-se nos precisos limites e termos em que se julga; e, no que diz respeito ao caso julgado formal, sobre a concreta questão processual apreciada (pelo que, alterando-se os pressupostos fácticos da sua apreciação e decisão, o que em conformidade se ajuíze consubstancia nova e inédita decisão).

IV. O caso julgado formal constituído sobre prévia decisão que julgue um executado parte ilegítima, por não figurar como devedor no título executivo e não ter sido justificada a sua demanda no requerimento executivo, não obsta a que seja depois deferida a sua intervenção principal provocada nos autos, por se ter conhecido a sua qualidade de actual proprietário do imóvel dado em garantia da quantia exequenda (uma vez que, tratando-se embora da aplicação do mesmo direito processual - pertinente à legitimidade passiva em processo executivo -, reporta-se a mesma a uma nova realidade fáctica).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] verifica-se que, tendo o agora exclusivo Executado (J. B.), único devedor, alienado o imóvel que antes hipotecara para garantia do cumprimento da sua dívida, e pretendendo o Exequente (C. C.) fazer pagar a mesma por conta daquele bem, não se encontram porém nos autos os seus actuais proprietário, M. P. e A. M..

Mais se verifica que, constatando-o, o próprio Tribunal a quo convidou aquele a fazer intervir estes, por meio da dedução do pertinente incidente de intervenção principal provocada, conforme se crê que, em abstracto, o poderia fazer.

Com efeito, concorda-se com aqueles que defendem que a «instância processual, conquanto regulada pelas normas de processo civil, não carece de ser “regulamentada” em todos os seus pormenores. Expostas no direito positivo as linhas mestras da tramitação processual e enunciados os pressupostos processuais inderrogáveis, deve admitir-se com naturalidade a manutenção da instância (maxime da instância executiva) quando se verifiquem aquelas condições basilares, privilegiando a realização efectiva dos direitos substantivos subjacentes, sem sobrevalorização de aspectos de natureza processual» (Ac. do STJ, de 16.01.2014, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1626/11.2TBFAF-A.G1).

Pondera-se ainda que, sendo «o único fim do processo (…) a obtenção da tutela judiciária pretendida pelas partes que para isso recorreram a tribunal», «quando o tribunal esteja na presença de uma situação duvidosa deve dar prevalência àquela que, respeitando os direitos das partes, melhor contribua para a realização do direito» (Ac. da RL, de 04.04.2019, Isoleta Almeida Costa, Processo n.º 16847/16.3T8LSB-8).

Logo, «não tendo o exequente/credor hipotecário demandado inicialmente os garantes, pode ainda fazê-lo na pendência da execução primitivamente instaurada apenas contra» o executado outorgante de confissão de dívida garantida «por hipoteca, através do incidente de intervenção principal provocada, de modo a que o bem hipotecado, propriedade daqueles terceiros cujo direito de propriedade foi adquirido posteriormente à data da constituição da hipoteca mas antes da dedução da acção executiva, possa responder pela dívida provida de garantia real» (Ac. do STJ, de 18.01.2015, Gregório Silva Jesus, Processo n.º 2482/12.9TBSTR-A.E1.S1).

*

Contudo, reagiu a Recorrente (A. M.), terceira actual proprietária do bem hipotecado, defendendo que, tendo sido antes demandada nos autos, e julgada parte ilegítima nos mesmos (com a sua inerente absolvição da instância), não poderia agora ser suscitada a sua intervenção nos mesmos, por a tanto obstar o caso julgado formal constituído sobre a prévia decisão proferida sobre a sua ilegitimidade.

Dir-se-á, porém, que o caso julgado se forma nos precisos limites e termos em que se julga (art. 621.º do CC); e, no que tange ao caso julgado formal, sobre a concreta questão processual apreciada.

Ora, o que foi unicamente apreciado e decidido nos autos foi a ilegitimidade dos antes 3.º e 4.ª Executados (M. P. e A. M.) por falta de referência dos mesmos no titulo executivo, bem como por falta de justificação da sua demanda no requerimento executivo.

Alterando-se os pressupostos fácticos dessa apreciação e decisão (isto é, sendo agora conhecida e comprovada a sua qualidade de actuais proprietários do imóvel hipotecado para garantia da quantia exequenda), o que em conformidade se ajuíze consubstancia nova e inédita decisão (de aplicação do mesmo direito processual - pertinente à legitimidade passiva em processo executivo - a nova realidade); e, assim, inexiste qualquer anterior caso julgado formal que obste à sua prolação.

Por outras palavras, a decisão proferida a propósito da ilegitimidade passiva de M. P. e A. M. só é definitiva e imperativa nos exactos termos em que foi proferida, isto é, apenas impediria a dedução e admissão do incidente de intervenção principal provocada em causa se se tivessem mantido inalterados os respectivos pressupostos (não tanto a omissão dos Intervenientes Principais no título executivo - definitiva -, como a falta de indicação nos autos de qualquer justificação para a respectiva demanda).

Já assim não sucede quando a sua legitimidade é aferida em função de uma nova realidade; e, por isso, necessariamente não ponderada naquela outra decisão (assim insusceptível de ser contraditada, ou reiterada, por aquela outra, posterior)."

[MTS]