Processo de insolvência;
quinhão hereditário; imóvel; hipoteca*
I- Segundo o artigo 686º nº 1 do CC, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
II – Tendo num processo de insolvência sido apreendida para a massa insolvente o quinhão hereditário pertencente à insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge, dela fazendo parte um imóvel objecto de hipoteca, o credor hipotecário beneficiário dessa dita hipoteca não beneficia de preferência na graduação do seu crédito, sendo mero credor comum.
III - A hipoteca goza de sequela sobre o bem e não caduca com a venda do quinhão hereditário, continuando o bem imóvel hipotecado a responder pela satisfação do crédito garantido.
IV – A qualificação do crédito reclamado deve ser feita, aquando da sentença de graduação e graduação de créditos, de acordo com o património efectivamente apreendido para a massa insolvente.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Será que a hipoteca do apelante, que incide sobre o dito imóvel, lhe dá preferência a ser pago no processo de insolvência?
A resposta tem que ser negativa.
Senão vejamos.
Nos termos do disposto artigo 686º nº 1 do Código Civil, a hipoteca é a garantia especial que confere ao respectivo credor o direito de ser pago pelo seu crédito preferencialmente sobre os demais credores pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas.
O efeito principal da hipoteca é, pois, a satisfação do direito de crédito garantido através do bem hipotecado, e, como direito real, goza de preferência e sequela, o que significa que, em princípio, prevalece sobre os direitos reais de garantia posteriormente constituídos e segue a coisa onerada nas suas transmissões.
Nos presentes autos de insolvência, como vimos, o que foi e está apreendido a favor da massa insolvente é o quinhão hereditário pertencente à insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge, do qual faz parte o aludido prédio urbano hipotecado.
Nesta medida, e em bom rigor, o que poderia ser vendido, por se encontrar apreendido, seria o dito quinhão hereditário e não o imóvel hipotecado, pelo que o credor hipotecário não beneficia de preferência na graduação do seu crédito, sendo, como consignado na sentença recorrida, um mero credor comum.
Não tendo sido apreendido o bem sobre o qual recai a hipoteca invocada, será indiferente que esse imóvel integre o dito quinhão, pois o quinhão hereditário não confere o direito aos bens concretos que integram herança, sendo certo que a quota de herança indivisa não pode ela própria ser objecto de hipoteca, o que o impede o artigo 690º do CC, o que se estaria a permitir, caso fosse dada preferência no pagamento pelo produto da venda desse direito.
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, na obra Curso de Direito da Família, vol. I, 2ª edição, pág. 507, referem-se, nestes casos, ao chamado património colectivo como sendo aquele que “pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. Enquanto esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum”.
No Acórdão do STJ de 26/01/99, publicado no BMJ n.º 483, p. 211, diz-se que «a comunhão hereditária, geralmente entendida como universalidade jurídica, não se confunde com a compropriedade (cfr. nº 1, do art. 1403), uma vez que os herdeiros não são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. Da aceitação sucessória apenas decorre directamente para cada um dos chamados o direito a uma quota hereditária. Os herdeiros são titulares apenas de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito ficará a pertencer, se só a alguns ou a um, sendo os demais compensados em tornas. Enquanto a herança se mantiver no estado de indivisão, nenhum dos herdeiros tem “direitos sobre bens certos e determinados”, nem “um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles”».
Donde, e em resumo, até à partilha existe apenas uma massa patrimonial, autónoma, na qual os herdeiros têm uma fracção ideal do conjunto, sendo que só depois da partilha desse acervo patrimonial, que extingue o património autónomo da herança indivisa, é que cada um deles poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de um bem determinado que pertenceu à herança.
Em suma, enquanto a herança não estiver partilhada, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles. Só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança.
Nesta ordem de raciocínio, não incidindo a apreensão dos autos de insolvência sobre um imóvel concreto e determinado, não funciona a preferência que para o Banco apelante resulta da hipoteca que oportunamente constituiu sobre o dito imóvel.
E a nossa jurisprudência tem sido praticamente unânime na qualificação desse crédito hipotecário como comum.
Vejam-se, a título de exemplo, e que aqui acompanhamos, entre muitos, todos eles acessíveis em www.dgsi, o Acórdão desta Relação de Lisboa de 13/02/2014, relatado por Vaz Gomes, onde se diz que «Não incidindo a apreensão dos autos sobre a fracção autónoma, mas sobre a meação do insolvente, não funciona a preferência que para o Banco apelante resulta da hipoteca que oportunamente constituiu sobre ela, já que na liquidação dos autos nunca poderá ser vendido o imóvel em questão - art.º 174.º do CIRE»;
Os Acórdãos da Relação de Coimbra de 14/02/2012, relatado por Carlos Gil, onde se diz que «.. 2. A credora hipotecária titular de hipoteca constituída sobre imóvel integrante da meação conjugal do insolvente, não goza da preferência conferida pela hipoteca no pagamento pelo produto da venda da meação conjugal do insolvente.»; e de 07/02/2017, relatado por Vítor Amaral, assim sumariado «1. - Verifica-se erro manifesto a que alude o art.º 130.º, n.º 3, do CIRE, legitimando a intervenção corretora do Tribunal – em vez da simples homologação da lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência e não impugnada –, se, apreendido no âmbito da ação de insolvência o direito à meação da insolvente no património comum do ex-casal constituído com o seu ex-marido, são vendidos, em sede de liquidação, bens concretos (imóveis) integrantes da comunhão (por ausência de partilha), em vez daquele apreendido direito à meação. 2. - Ainda que o ex-cônjuge da insolvente também haja sido declarado insolvente no âmbito de outro processo insolvencial, sem apensação que permitisse uma liquidação única/conjunta, tal coexistência de insolvências não altera a natureza do que foi apreendido nestes autos (o aludido direito à meação e não quaisquer bens concretos ou quota-parte de bens determinados). 3. - Vendidos pelos administradores das duas insolvências, em atuação conjunta, imóveis integrantes daquele património comum dos ex-cônjuges, sem prévia partilha ou aquiescência do Tribunal ou dos contitulares, ocorre desconformidade entre o apreendido no âmbito desta insolvência e o assim vendido. 4. - Caso em que a verificação e graduação dos créditos deve fixar-se, para efeitos qualificativos, no que foi efetivamente apreendido (a graduação e a liquidação do ativo dependem do património apreendido). 5. - Embora certos credores estejam garantidos por hipoteca sobre imóveis determinados integrantes daquele património comum, tal garantia não incide sobre o apreendido direito à meação, com a consequência de os créditos desses credores haverem, neste plano, de ser tidos como comuns e como tal objeto de graduação»;
E bem assim os da Relação de Guimarães, de 05/06/2014, relatado por Manuel Bargado, assim sumariado «I - A herança é uma universalidade jurídica de bens, pelo que cada interessado não tem uma quota-parte em cada um de todos esses bens mas uma quota referida àquela universalidade, ao conjunto de todos os bens, só pela partilha se determinando aqueles em que se concretiza a quota-parte ou quinhão de cada interessado. II – Assim, o que ficou atribuído ao insolvente foi a possibilidade de poder exercer naquela universalidade jurídica um seu direito próprio perante os restantes interessados no quinhão hereditário que possui na herança, ilíquida e indivisa, aberta por óbito do seu pai, legitimando-o, se e quando assim o entender, a dar os passos necessários tendentes a haver para si a quota-parte dos bens determinados que integram tal herança. III - Enquanto se não constatar a efectiva titularidade de algum bem concreto que constitui o acervo da herança, os protegidos com esta venda não desfrutam do atinente direito sobre certo e determinado bem da herança. IV- Não incidindo a apreensão dos autos de insolvência sobre o imóvel que integra o quinhão hereditário do insolvente, mas sobre o direito àquele quinhão, não funciona a preferência que para o Banco apelante resulta da hipoteca que oportunamente constituiu sobre aquele imóvel, já que na liquidação dos autos nunca poderá ser vendido o imóvel em questão (art.º 174 do CIRE), pelo que o seu crédito terá de ser graduado como crédito comum»; de 17/10/2019, relatado por Alcides Rodrigues, assim sumariado «I- A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – art. 686º, n.º 1, do Código Civil (CC). II- A garantia decorrente da hipoteca só tem efeitos sobre o bem a que respeita e apenas pode ser considerada para efeitos da venda desse bem. III- A meação dos bens comuns do casal, bem como a quota de herança indivisa nem sequer podem ser objeto de hipoteca, conforme decorre do art. 690º do CC que as exclui expressamente. IV- Incindindo a apreensão sobre o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto, o que será vendido serão esses direitos e não o imóvel hipotecado, pelo que o credor hipotecário não beneficia de preferência na graduação do seu crédito, sendo um mero credor comum. V- A aplicabilidade ao processo de insolvência do regime previsto no 743º, n.º 2 do CPC “ex vi” do art. 17º, n.º 1, do CIRE em nada interfere com a qualificação (garantida ou não) do crédito reclamado. VI- A hipoteca goza de sequela sobre o bem e não caduca com a venda do quinhão hereditário ou direito à meação, continuando o bem imóvel hipotecado a responder pela satisfação do crédito garantido» e de 21/11/2019, relatado por Jorge Teixeira, onde se consignou «I- A penhora do direito e acção a herança ilíquida e indivisa não abrange qualquer um (ou uma quota parte) dos bens que, em concreto, integram o património hereditário. II- E assim sendo, herdeiro é titular de um direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados. III- Logo, implicando a contitularidade desses direitos um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesma e não sobre cada um dos bens que a compõem, desconhecendo-se sobre qual ou quais deles o direito se concretizará, quem o vier a adquirir só através da posterior partilha verá concretizado tal direito».
Neste enquadramento, tendo a sentença de verificação e graduação dos créditos sido feita, e bem, por referência aos créditos reclamados e pelo património apreendido para a massa insolvente, e resultando cristalino dos autos que o direito apreendido não coincide com o bem hipotecado, sempre se imporia concluir que jamais poderia a sobredita hipoteca garantir o crédito do apelante.
Neste contexto, para efeitos de verificação e graduação de créditos, deve atender-se, como entendido na sentença, ao que foi apreendido (a graduação depende, efectivamente, do que haja sido apreendido, devendo a liquidação do activo incidir apenas sobre o património apreendido), e não ao que se pretende alegadamente vender.
E a ser assim, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida quando graduou o crédito do apelante decorrente do mútuo hipotecário como crédito comum."
*3. [Comentário] Admite-se -- sinceramente, ainda que com muitas dúvidas -- a bondade da solução defendida no acórdão da RL, bem como nos arestos nele citados.
A solução tem, no entanto, uma contrapartida que se considera óbvia: o Banco, graduado como credor comum, não pode perder a hipoteca que tem sobre o imóvel que integra o quinhão hereditário, dado que a circunstância de o imóvel hipotecado vir a integrar um quinhão hereditário é algo que o Banco não pode controlar e que, pelo seu carácter aleatório, não tem a obrigação de prever. Tudo isto equivale a dizer que à venda executiva do quinhão hereditário que é realizada no processo de insolvência não se aplica, na parte respeitante à hipoteca, o efeito extintivo determinado pelo art. 824.º, n.º 2, CC.
Em termos práticos, isto significa que o quinhão hereditário é vendido como integrando um imóvel hipotecado. Portanto, a solução não permite maximizar o produto da venda do imóvel, sendo este um dos aspectos que pode fazer duvidar da sua bondade.
MTS