Transacção;
efeitos
I. O sumário de RE 7/5/2020 (493/17.7T8SSB.E1) é o seguinte:
1 - Uma transação permite afastar, por via contratual, uma situação de incerteza, mediante concessões recíprocas.
2 - In casu, a transação ocorreu no âmbito de um processo judicial e através da qual as partes procederam a uma nova regulação contratual da situação litigiosa relacionada com as estremas das propriedades de cada um deles, confinantes uma com a outra, tendo os aqui apelantes concedido recuar a estrema da sua propriedade.
3 - Logo, a causa juridicamente significativa do recuo da estrema da propriedade dos apelantes gerador da perda de 50 m2 de terreno foi a transação firmada pelos apelantes e não o relatório pericial dos réus/apelados, os quais, na verdade, nada decidiram naquele processo pois o relatório pericial constitui apenas um meio probatório que o tribunal aprecia livremente (cfr. art. 388.º do Código Civil) e contra o qual as partes podem reclamar nos termos do artigo 485.º do CPC, podendo também requerer a realização de uma segunda perícia, nos termos do artigo 497.º do CPC.
II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"I. RELATÓRIO
I.1.
(…) e (…), autores na ação declarativa sob a forma de processo comum que moveram contra (…), (…) e (…), interpuseram recurso da sentença proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Sesimbra-Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o qual julgou a ação totalmente improcedente, por não provada, e, em conformidade, absolveu os réus dos pedidos.
Na ação os autores tinham peticionado que os réus fossem condenados, solidariamente, a pagarem-lhes a quantia de € 15.000,00, a título de indemnização por danos patrimoniais e morais acrescida de juros legais vincendos contados desde a data de citação e até efetivo pagamento.
Para fundamentarem o seu pedido os autores alegaram que os ora réus foram nomeados peritos no âmbito do processo n.º 1051/11.5TBSTB – no qual os aqui autores intervieram na qualidade de réus – e, no exercício daquela função, os réus elaboraram um relatório pericial que padece de erros, concretamente, usaram coordenadas desconhecidas, desenharam uma linha desapropriada à escala e utilizaram técnicas que distorcem e amplificam os erros; em consequência de tais erros os ora réus (peritos no processo supra mencionado) concluíram que a linha confinante entre o prédio dos ora autores e o prédio dos autores na ação acima mencionada coincidia e colidia com a casa de morada de família dos pais dos primeiros (aqui autores) e estes, vendo-se na iminência de demolir aquele imóvel, acordaram realizar uma transação que se consubstanciou no recuo das extremas da sua propriedade e, consequentemente, no reposicionamento do muro em arame que haviam construído há mais de 20 anos para separação dos terrenos. Mais alegaram que em consequência dos factos supra referidos sofreram danos patrimoniais e morais que especificaram e pelos quais pretendem ser indemnizados.
Os réus contestaram por impugnação alegando que a perícia por si efetuada no âmbito do processo n.º 1051/11.5TBSTB não enferma de qualquer erro e requereram, ainda, a condenação dos autores por litigância de má-fé.
Foi proferido despacho-saneador e despacho a fixar o objeto do processo e os temas de prova, após o que se realizou a audiência final, finda a qual foi proferida a sentença objeto do presente recurso. [...]
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.4.2.
Reapreciação dos pressupostos do direito a indemnização
Os apelantes insurgem-se contra a decisão do tribunal de primeira instância pelo facto de aquele ter julgado não estar comprovado o nexo de causalidade entre o “facto” e o “dano”.
Alegam os apelantes que «face à prova produzida é por demais evidente que foi o relatório pericial elaborado pelos pelados a causa direta dos apelantes terem transigido nos primeiros autos». Mais alegam que os apelados ao serem confrontados no terreno e na sequência da decisão do Tribunal da Relação de Évora com a possibilidade de uma concreta demarcação mantiveram que a linha que dividia o prédio dos apelantes e o confinante era a linha vermelha do seu relatório «o que motivou os apelantes tivessem que ceder nas suas legítimas pretensões, transigindo nos primeiros autos».
Os apelantes colocam enfâse no ónus probatório, entendendo que a prova foi realizada no que respeita aos pressupostos da responsabilidade extracontratual, em particular do nexo de causalidade.
Não é controvertido que está em causa nos presentes autos uma responsabilidade civil dos apelados por alegadamente terem cometido um ato ilícito.
A responsabilidade civil consiste na obrigação de reparar os danos sofridos por alguém. Ou, dito de outra forma, traduz-se numa obrigação de indemnização, procurando-se, através daquele instituto, reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento causador dos prejuízos (art. 562.º do Código Civil).
A indemnização pode consistir na reconstituição natural, ou seja, na restituição do lesado à situação material efetiva em que ele se encontrava antes da ocorrência do evento danoso (reconstituição in natura) ou, quando esta não seja possível, não reparar integralmente os danos, ou seja, excessivamente onerosa para o devedor, lança-se mão da indemnização em dinheiro (art. 566.º, n.º 1, do CC).
No campo da responsabilidade civil, distingue-se a responsabilidade contratual/obrigacional da responsabilidade extra contratual/delitual. Enquanto a primeira supõe a falta de cumprimento de uma obrigação, isto é, pressupõe uma relação jurídica obrigacional e que aquele que nela ocupe a posição de devedor não cumpra pontualmente (arts. 762.º, n.º 1 e 763.º, n.º 1, do CC), a segunda supõe a violação de um dever genérico – sendo o caso mais frequente a violação de deveres correspondentes a direitos de personalidade ou a direitos reais – da qual resulta para outrem um dano na respetiva esfera jurídica.
Dispõe o art. 483.º, n.º 1, do Código Civil que:
«1 - Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. 2- «Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei».
Nos termos do normativo legal acima transcrito, são pressupostos da responsabilidade civil extracontratual:
1) O facto, isto é, uma conduta objetivamente dominável pela vontade imputável a um sujeito, a qual pode revestir a forma de ação ou omissão.2) A ilicitude, ou seja, a anti-juridicidade da conduta, no sentido de que esta implica a violação de direitos absolutos ou de interesses legalmente protegidos de terceiros.3) A imputação do facto ao lesante, ou seja, a culpa, o que implica a formulação de um juízo de censurabilidade, isto é, sustentar que a pessoa podia e devia ter agido de outro modo.4) O dano, o qual consiste numa lesão, num prejuízo ocorrido na pessoa ou na esfera patrimonial de outrem.5) O nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano.
A conduta lesiva, para o ser, supõe uma determinada conexão entre a ação/omissão imputável a determinada pessoa e o dano a ela associado, não bastando, contudo, que o comportamento de alguém haja desencadeado o processo causal que conduziu à ocorrência do dano ou que aquela conduta seja uma das condições que concorrem para a produção do dano. Ao invés, é necessário que exista uma particular ligação entre o primeiro e o segundo por via da qual se possa afirmar que o dano é atribuível à conduta de outrem, ou seja, é necessário definir que características deverá ter determinada condição para que se possa considerá-la causa juridicamente significativa de entre as várias condições que concorrem para a produção de determinado resultado.
A orientação consagrada no nosso ordenamento jurídico é aquela que considera causa jurídica do prejuízo/dano a condição que, pela sua natureza e em face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada para o gerar. A ideia de causalidade restringe-se às condições que apresentam aptidão ou idoneidade para a produção do dano [...].
Prescreve o artigo 563.º do Código Civil que «A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão».
Este normativo legal consagrou a chamada doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa, segundo a qual o facto que atuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano — assim, entre outros, Acórdão do STJ de 27.01.2005, proc. n.º 05B2286-7 e Acórdão da RC de 29.04.2014, processo n.º 231/10.5TBSAT.C1, ambos publicados em www.dgsi.pt.
De acordo com a teoria da causalidade adequada ali consagrada há que determinar, em primeira linha, se o evento lesivo constituiu conditio sine qua non do dano causado e, em segunda linha, se, em abstrato, aquele evento se revela adequado a produzir o dano segundo o curso normal ou típico das circunstâncias à luz das regras da experiência comum, atendendo-se tanto às circunstâncias cognoscíveis, à data do facto, por um cidadão médio, como às circunstâncias realmente conhecidas pelo agente.
A teoria da causalidade adequada não pressupõe, por conseguinte, a exclusividade da condição, bastando que seja uma das condições do dano. O facto que atuou como dano só deixará de ser “causa adequada” se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano.
No caso em apreço, a responsabilidade civil (extracontratual) imputada aos réus/apelados emerge da elaboração pelos mesmos de um relatório pericial no qual aqueles indicaram a linha que, no seu entendimento, deveria delimitar a propriedade dos aqui autores com o prédio confinante, linha que resultaria do cadastro geométrico da propriedade rústica existente para o local (cfr. supra factos provados n.ºs 10 e 43.º).
Está provado que a linha traçada pelos réus/apelados como sendo aquela que supostamente dividiria o prédio dos autores do prédio confinante melhor identificado no facto provado n.º 20 foi traçada a partir de marcos cujas coordenadas não correspondem àquelas que foram atestadas pela Direção Geral do Território (cfr. facto provado n.º 21) e que a linha traçada pelos réus como sendo aquela que supostamente dividiria as duas propriedades não se situa nos terrenos que foram objeto de perícia (cfr. facto provado n.º 26).
Está também provado que os apelantes perderam cerca de 50 m2 de terreno da sua propriedade porque recuaram as estremas do mesmo, o que ao preço do metro quadrado que hoje se comercializa terrenos rústicos na zona, equivale a um prejuízo no valor de € 3.000,00 (cfr. facto provados n.ºs 13 e 16) e que o processo judicial n.º 1051/11.5 gerou transtornos morais e de saúde para os autores (cfr. facto provado n.º 15).
Já não é controvertido que os réus/apelados cometeram um erro na realização da perícia e na elaboração do respetivo relatório pericial na medida em que terão utilizado coordenadas para traçar a linha delimitadora dos terrenos que não correspondem às do local.
Todavia, poder-se-á afirmar que foi aquele relatório pericial produzido pelos réus que determinou os danos invocados pelos aqui apelantes supra referidos?
Resulta dos autos que a perda dos 50 m2 de terreno acima mencionados resultou de um recuo das estremas da propriedade dos autores e que este recuo foi uma decorrência da transação firmada no âmbito do processo n.º 1051/11.5 pelos autores e homologada judicialmente (cfr. factos provados n.ºs 13 e 16).
Uma transação é o ato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, podendo estas envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido (cfr. art. 1248.º do Código Civil).
Uma transação permite afastar, por via contratual, uma situação de incerteza, mediante concessões recíprocas.
In casu, a transação ocorreu no âmbito de um processo judicial, através da qual os apelantes e os autores do processo judicial n.º 1051/11.5 procederam a uma nova regulação contratual da situação litigiosa relacionada com as estremas das propriedades de cada um deles, confinantes uma com a outra, tendo os aqui apelantes concedido recuar a estrema da sua propriedade.
Logo, é de meridiana evidência que a causa juridicamente significativa do recuo da estrema da propriedade dos apelantes gerador da perda de 50 m2 de terreno foi a transação firmada pelos apelantes no processo judicial supra referenciado e não o relatório pericial dos réus/apelados, os quais, na verdade, nada decidiram naquele processo. Com efeito, o relatório pericial – com o qual os aqui autores/apelantes, aliás, se conformaram (cfr. facto provado n.º 41) – constitui apenas um meio probatório que o tribunal aprecia livremente (cfr. art. 388.º do Código Civil). Com efeito, e ao contrário do que sucede no âmbito do processo penal em que é conferida à prova pericial uma força probatória reforçada uma vez que o art. 163.º do Código de Processo Penal presume subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial, impondo o n.º 2 daquele normativo ao julgador a obrigação de fundamentar a divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos, o art. 389.º do Código Civil dispõe que a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.
Nos termos do art. 485.º do CPC as partes podem formular reclamações contra o relatório pericial se entenderem que «há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas» e o art. 487.º do mesmo diploma permite às partes requererem a realização de uma segunda perícia, a qual se destinará a corrigir eventuais inexatidões dos resultados da primeira.
In casu, e como se disse, os apelantes até se conformaram com o relatório pericial.
Diga-se, a talhe de foice, que ainda que o tribunal do processo n.º 1051/11.5, na ausência de transação, viesse, porventura, a decidir a ação de demarcação a favor dos ali autores, ou seja, determinando que a linha delimitadora dos dois prédios fosse traçada em conformidade com a linha que os peritos entendiam corresponder àquela do cadastro geométrico da propriedade rústica existente para o local, nem assim haveria um nexo de causalidade entre a conduta dos peritos e o dano traduzido num recuo das estremas da propriedade dos autores porque os réus nada teriam decidido.
In casu, a transação resultou de um ato de vontade dos aqui autores que, ponderando os riscos envolvidos na ação judicial, designadamente de a mesma vir a ser resolvida de forma favorável à contraparte (risco que, aliás, existe na maioria das ações judiciais, em maior ou menor grau), resolveram transigir.
Se aquele ato de vontade porventura padece de algum vício determinante de uma eventual invalidade da transação é questão que não integra o objeto da presente ação.
No que respeita aos danos morais e de saúde sofridos pelos autores, o que está provado é que os mesmos decorreram do processo judicial em si mesmo e não do erro dos réus, os quais, repete-se, nada decidiram naquele processo.
Em face do exposto, não merece censura a decisão do tribunal de primeira instância ao julgar não verificado o pressuposto de responsabilidade civil extracontratual consistente na existência de nexo de causalidade entre a conduta dos réus, ora apelados, e os danos invocados pelos autores, ora apelantes, improcedendo, assim, o presente recurso."
*3. [Comentário] Conforme bem se diz no acórdão, o que se pode verificar é, quando muito, uma invalidade da transacção que pode ser invocada nos termos do art. 291.º, n.º 1, CPC
*3. [Comentário] Conforme bem se diz no acórdão, o que se pode verificar é, quando muito, uma invalidade da transacção que pode ser invocada nos termos do art. 291.º, n.º 1, CPC
[MTS]