"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/11/2020

Jurisprudência 2020 (104)


Embargos de executado;
exigibilidade da obrigação; liquidação da obrigação*


1. O sumário de RG 21/5/2020 (1773/19.2T8GMR-D.G1) é o seguinte:

I- Porque o âmbito de aplicação da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC não abrange excepções peremptórias, apenas estarão em causa, no que concerne à impugnação da liquidação e da exigibilidade da obrigação como fundamento de suspensão da execução sem prestação de caução, razões atinentes aos pressupostos processuais da acção executiva, não já motivos de natureza substantiva.

II- Não questionando a embargante a liquidez da obrigação, tão só a justeza do montante reclamado (que sustenta exceder o que poderá ser devido), é manifesto que não impugna a iliquidez da obrigação nos termos pressupostos pela alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC.

III- Alegando a embargante que, no âmbito da relação subjacente à relação cartular (relações mediatas), a embargada não procedeu à sua interpelação, não questionando porém a exigibilidade que os títulos dados à execução (livranças) demonstram à evidência, tem de concluir-se não se enquadrar a situação na previsão normativa da alínea c) do nº 1 do art. 713º do CPC.

IV- Porque a partir da apensação, atenta a unificação das causas para efeitos de tramitação, instrução e julgamento, se tem de considerar que as partes que intentaram acções separadas e distintas passam a ser partes numa causa única, estão elas (porque podem depor como partes), impedidas de depor como testemunhas.

V- Solução diversa implicaria conceder a incoerência dogmático-normativa do ordenamento processual - que uma mesma pessoa, no âmbito do mesmo processo, pudesse depor como parte (v. g., a requerimento do contraparte – no caso, a requerimento do exequente) e como testemunha (a requerimento de uma das outras partes)


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

À economia da presente apelação importa [...] a última hipótese – o fundamento previsto na alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC.

Preceito cuja aplicação demanda redobradas cautelas – constituindo a suspensão da execução fundada no recebimento dos embargos de executado situação excepcional (não a regra), tem de existir também ‘uma particular exigência na admissibilidade da suspensão da execução por via da norma’ em questão, tendo o juiz, ademais, de considerar, ouvido o exequente/embargado, que se justifica a suspensão da execução sem prestação de caução [Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva (…), pp. 256/257].

Primeiro pressuposto para aplicação da previsão em análise é o de que oposição deduzida tenha por fundamento a inexigibilidade e/ou a iliquidez da obrigação exequenda (art. 729º, e) do CPC).

A exigibilidade da prestação verifica-se ‘quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do art. 77º, nº 1 do CC, de simples interpelação ao devedor’; pelo contrário, não será exigível a prestação quando, ‘não tendo ocorrido o vencimento, este não está dependente de mera interpelação’, como acontece nas obrigações de prazo certo ainda não decorrido/esgotado, nas situações de prazo incerto e a fixar pelo tribunal (art. 777º, nº 2 do CC), nos casos em que a constituição da obrigação foi sujeita a condição suspensiva, ainda não verificada (arts. 270 do CC e 715º, nº 1 do CPC) ou, ainda, quando em caso de sinalagma, o credor não satisfez a contraprestação (art. 428º do CC) (José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, pp. 100/101).

A liquidez da obrigação concerne à determinação ou apuramento quantitativo da prestação – necessitando (em vista da execução, pois que esta depende da certeza, exigibilidade e liquidez da prestação – art. 713º do CPC) a obrigação ilíquida de ser liquidada, seja em incidente de liquidação no âmbito da acção declarativa (art. 704º, nº 6 do CPC), seja no âmbito da própria execução (art. 716º do CPC) (José Lebre de Freitas, A acção Executiva (…), pp. 102 a 104.).

Parece evidente que, no que concerne à impugnação da liquidação, que esta só poderá justificar a suspensão da execução nos casos em que a obrigação deva ser liquidada no processo executivo, nos termos do art. 716º do CPC, fora dos casos em que apenas depende de simples cálculo aritmético – a previsão da alínea c) do nº 1 do art. 733 do CPC incide sobre a verificação de excepção dilatória do processo executivo, como é o caso da inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda (Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva (…), p. 257).

Porque o âmbito de aplicação da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC não abrange excepções peremptórias, apenas estarão em causa, também no que concerne à impugnação da exigibilidade da obrigação, como fundamento de suspensão da execução sem prestação de caução, razões atinentes aos pressupostos processuais da acção executiva e não já motivos de natureza substantiva [...].

O preceito em análise está orientado para que se ponderem interesses conflituantes – o interesse do executado/embargante em evitar o ataque ao seu património em processo executivo que não cumpre requisitos legalmente exigidos (exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda – art. 713º do CPC) e o interesse do exequente/embargado em não ver paralisada a execução em consequência de uma gratuita e não consistentemente sustentada arguição da inexigibilidade e/ou iliquidez da obrigação exequenda [...]

Justificar-se-á, pois, suspender a execução (trazendo justo equilíbrio à relação de interesses opostos e conflituantes), ao abrigo da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC, quando os elementos carreados aos autos (conjugando os que constem do processo executivo com os carreados aos embargos) permitam concluir (num juízo forçosamente sumário e não definitivo – prévio ao que a contraditoriedade da audiência permitirá formular a final), pela consistência da argumentação – dito doutro modo, que os elementos existentes nos autos imponham concluir estar abalada (pelo menos consistentemente questionada) a exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda.

Na situação dos autos, é de manifesta e linear evidência que não pode decretar-se a suspensão da execução em virtude de estar arguida a iliquidez da obrigação – a obrigação é líquida em face dos títulos executivos, não sendo caso de liquidação no processo executivo, nos termos do art. 716º do CPC (e como acima referido, só em tais casos o preceito tem aplicação), não questionando a embargante a liquidez da obrigação, tão só a justeza do montante reclamado (que sustenta exceder o que poderá ser devido).

Não pode concluir-se, pois, que no caso dos autos seja impugnada, nos termos pressupostos pela alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC, a liquidação da obrigação exequenda.

Também se não pode concluir da argumentação expendida pela embargante na sua petição de oposição que seja impugnada a exigibilidade da obrigação exequenda.

O que a embargante sustenta é que, no âmbito da relação subjacente à relação cartular (relações mediatas), a embargada não procedeu à sua interpelação.

É perante o título executivo que se apura o pressuposto e requisito de exigibilidade da obrigação exequenda (por isso que não resultando do título o incumprimento da obrigação - cuja existência o título revela -, deverá tornar-se a mesma exigível - para lá de certa e líquida, quando assim for o caso -, sem o que a execução não pode prosseguir (José Lebre de Freitas, A acção Executiva (…), p. 99)) e, no caso dos autos, a exigibilidade da obrigação é evidente considerando s livranças dadas à execução.

Ademais, mesmo que fosse de ponderar a relação subjacente (e não é – já vimos que a previsão da alínea c) do nº 1 do art. 733º incide sobre a verificação de excepção dilatória e não sobre o que constitui excepção peremptória, ou seja, incide sobre os pressupostos processuais da acção executiva e não sobre matéria substantiva relativa à obrigação exequenda), sempre teria de considerar-se suficientemente demonstrado (num juízo exclusivamente assente nos elementos disponíveis – prova documental junta pelas partes –, prévio ao contraditório da audiência de julgamento e por isso não definitivo) que a embargada, previamente ao preenchimento das livranças, interpelou a embargante (e restantes executados) para o cumprimento (vejam-se os documentos de fls. 70, 73 e 76, que constituem comunicações dirigidas à embargante pela embargada solicitando o cumprimento da obrigação, e bem assim de fls. 84 a 86, reveladores de que tais comunicações, feitas por correio registado com aviso de recepção dirigidas para a morada da embargante constante do contrato, foram devolvidas ao remetente por não reclamadas – tendo por isso a declaração produzido os seus efeitos, à luz do art. 224º, nº 2 do CC).

De concluir, pois, não se enquadrar a situação dos autos na previsão normativa da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC.

*3. [Comentário] A RG, segundo o que tudo indica, decidiu bem o caso concreto. 

O que, salva a devida consideração, não é aceitável são as afirmações genéricas de que

"o âmbito de aplicação da alínea c) do nº 1 do art. 733º do CPC não abrange excepções peremptórias"

e de que 

"a previsão da alínea c) do nº 1 do art. 733º incide sobre a verificação de excepção dilatória e não sobre o que constitui excepção peremptória, ou seja, incide sobre os pressupostos processuais da acção executiva e não sobre matéria substantiva relativa à obrigação exequenda". 

É claro que a exigibilidade e a liquidação não são pressupostos processuais do processo executivo, mas antes qualidades substantivas da obrigação exequenda. Por exemplo: a invocação contra a exigibilidade da obrigação de uma moratória concedida pelo exequente não é outra coisa que não a invocação de uma excepção peremptória.

MTS