Despacho saneador;
conhecimento do mérito da causa
I. O sumário de RL 19/5/2020 (5598/18.4T8LSB.L1-7) é o seguinte:
1. O ónus de alegação do Réu, assente no princípio geral da boa-fé processual, visa acautelar o Autor de um articulado amalgama, entre impugnação e excepção, deixando passar alguma excepção “oculta”, à qual não responda, e lhe acarrete o efeito cominatório da admissão por confissão/falta de impugnação.
2. Ressalvadas as situações excluídas por lei, à partida toda a causa poderá ser julgada na fase intermédia do processo, posto que o julgador antecipe que, o proveito da fase instrutória dos factos controvertidos, ante a solução plausível de direito, seja indiferente para o destino do litígio.
3. Em ordem a alicerçar a conclusão de que está habilitado a conhecer de imediato do pedido, o juiz não pode, todavia, cingir-se à sua percepção da realidade do facto controvertido, firmada através dos elementos documentais (e outros) já disponíveis nos autos; tal prognose, não se equivale, no momento do saneador, à suficiência da convicção antecipada do julgador sobre a realidade do(s)facto(s).
4. À luz da solução plausível de direito eleita - prevalência da invocada prescrição do direito peticionado sobre a intemporalidade de invocação da nulidade do negócio jurídico - mostra-se relevante apurar da factualidade susceptível de interromper o prazo de prescrição de 20 anos.
5. Daí que, estando essa matéria de facto controvertida entre as partes, e a sua demonstração aferível, v. g., por depoimento testemunhal, assiste ao Autor o direito de perseverar na respectiva prova (com ou sem êxito), de que o seu conhecimento do direito peticionado ocorreu em data ulterior à celebração do negócio jurídico/mútuo bancário.
6. Subsistindo controvertida essa factualidade, que intercepta o rumo de procedência ou de improcedência da excepção da prescrição, o estado da causa não permite antecipar o julgamento no saneador, sem a produção da prova testemunhal indicada pelo Autor.
7. Os objectivos de economia e gestão processual e parcimónia nos custos, tão caros à administração da justiça, cederão, na medida necessária, em prol do exercício do direito à acção e do direito à prova, vertentes do princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"2.1. Do conhecimento de mérito na fase do saneador.
Como é sabido o julgador pode nessa fase conhecer do pedido (ou de algum deles), desde que, caucionado pela condição imposta pelo artigo 595, nº1 al) b do CPC − o estado do processo o permitir.
A seu propósito estatui o artigo 595 do CPC:
1 - O despacho saneador destina-se a:a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;b) conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Damos por adquirido que as alterações normativas acomodaram evolução na concepção teórica-dogmática do conhecimento de mérito no saneador. [...]
Com a reforma de 1996 [...], mantida no novo CPC, abandonou-se a tradicional dicotomia entre questão de direito e de facto, cingindo-se a possibilidade - “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas.”
A partir deste quadro normativo, sinaliza-se dissonância na doutrina [...] e na jurisprudência [...], quanto a admitir-se, ou não, o conhecimento de mérito no saneador nas situações, em que estando o juiz seguro da solução jurídica para o litígio, alicerçada em factos assentes aptos, permanecem ainda factos relevantes controvertidos para a decisão da causa, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito.
À parte da hesitação do julgador na casuística de certas situações, supomos, contudo, fiável afirmar que, ante a estrutura do processo civil, ressalvadas as situações excluídas por lei, toda a causa poderá ser julgada na fase intermédia do processo, posto que o julgador conclua que o proveito da fase instrutória seja indiferente para o destino do litígio.
O actual Código Processo Civil assim o determina, designadamente pelo disposto nos seus artigos 6º, 130 º e 152º.
Salvaguardada fica, por seu turno, a hipótese de o tribunal de recurso preconizar distinta solução jurídica da assumida pela sentença, e não dispondo os autos de elementos para decidir, determine a ampliação factual da causa, conforme o estatuído no artigo 662, nº 2, al. c) do CPC.
2.2. Retomando o caso dos autos.
Razões de segurança e certeza jurídicas do ordenamento, leva-nos a admitir como solução plausível de direito, segura e consistente na composição do litígio, a opção da sentença em recurso, ao considerar prevalecente a prescrição sobre a possibilidade de invocação da nulidade do negócio jurídico a todo tempo. [...]
Aderindo embora à orientação que perfila em modo amplo o conhecimento de mérito no despacho saneador, não é, mesmo assim, viável o imediato conhecimento do pedido, quando permaneçam controvertidos factos relevantes sob um juízo de prognose antecipado.
Doravante, na situação com que nos defrontamos no caso sub judice, verifica-se uma notória subsistência de factos controvertidos, cuja prova de apreciação livre, interfere frontalmente com o desfecho da causa, sob a solução jurídica da prescrição. [...]
Explicitando.
Nos termos do artigo 298 do Código Civil, a prescrição consiste na perda ou extinção de um direito disponível ou que a lei não declare isento de prescrição, por virtude do seu não exercício durante certo tempo.
Por seu turno, à luz de uma das soluções plausíveis de direito, o termo inicial do prazo de prescrição coincidirá com o conhecimento pelo lesado “do direito que lhe compete”, i. e, dos elementos/pressupostos que condicionam o seu exercício. [...]
O Tribunal a quo antecipou a decisão de mérito, fundamentando-se nos elementos documentais das relações contratuais juntos pelo próprio Autor [...]
Documentos que sob a sua apreciação crítica, contrariam o conhecimento ulterior da operação pelo Autor, que alegadamente o privou dos imóveis, parecendo outrossim, que só muito mais tarde é que teria tomado conhecimento de eventual facto novo desfavorável que despoletou a conveniência na arguição da nulidade por simulação do negócio celebrado na década de 80.
Incontornável é que o Autor alegou factualidade susceptível do efeito interruptivo no decurso do prazo de prescrição de 20 anos, em que assentou a sentença (artigo 309 do Código Civil).
Daí que, estando essa matéria de facto controversa entre as partes, e a sua demonstração aferível, v.g. por depoimento testemunhal, assiste ao Autor o direito de perseverar no direito à respectiva prova (com ou sem êxito); com a finalidade de demonstrar que o seu conhecimento do direito peticionado ocorreu em data ulterior à celebração do negócio jurídico/mútuo bancário - cf. artigos 76º, 77º,78º da PI., e,28º, 30º a 38º do articulado aperfeiçoado e pronúncia sobre a excepção da prescrição. [...]
É de sublinhar que, a desnecessidade ou inutilidade da produção de prova sobre factos necessários controvertidos face à solução jurídica eleita, não se equivale no momento do saneador, à suficiência da convicção antecipada do julgador sobre a realidade dos mesmos factos.
Neste momento processual, em ordem a alicerçar a conclusão de que está habilitado a conhecer de imediato do pedido, o juiz não pode cingir-se à sua percepção da realidade do facto relevante e controverso, motivada apenas pelos elementos documentais [...] (ou outros) já disponíveis nos autos.
Nos autos, está controvertido que o autor tivesse conhecimento dos factos tendentes à invocação da nulidade por simulação em data contemporânea à celebração do negócio, ou só ulteriormente, conforme alegou.
Deixando dúvidas sobre tal contemporaneidade, factualidade que intercepta objectivamente o rumo de procedência ou improcedência da excepção da prescrição, segundo as soluções plausíveis de direito, o estado da causa não permite antecipar o julgamento no saneador, sem a produção da prova testemunhal indicada, em audiência final.
Os objectivos de economia e gestão processual e parcimónia de custos, tão caros à administração da justiça, cederão, na medida necessária, para o exercício do direito à acção e do direito à prova, vertentes do princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva - artigo 20, nº1 da Constituição da República Portuguesa."
[MTS]