"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/11/2020

Jurisprudência 2020 (87)


Injunção;
oposição; competência material


1. O sumário de RE 7/5/2020 (24120/19.9YIPRT.E1) é o seguinte:

É admissível o recurso ao procedimento de injunção visando cobrar crédito emergente da execução de contrato público. Se for deduzida oposição, a competência para o julgamento da acção cabe aos tribunais administrativos, seguindo-se a forma de processo declarativo, prevista no artigo 35.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A recorrente sustenta a tese de que a competência para o julgamento da acção emergente da dedução de oposição ao procedimento de injunção cabe, em qualquer caso, aos tribunais judiciais, e nunca aos tribunais administrativos, apelando ao disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013, o qual dispõe que, para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum. Segundo a recorrente, a referência à forma de processo comum inculca que a competência cabe sempre aos tribunais judiciais, pois esta forma de processo é deles exclusiva. Se pretendesse atribuir a competência em causa aos tribunais administrativos quando se tratasse de transacções comerciais emergentes de contratos públicos, o legislador teria previsto a aplicabilidade do “processo declarativo”, previsto no artigo 35.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Conclui a recorrente que os tribunais administrativos são sempre incompetentes para julgar causas emergentes do processo de injunção, independentemente da natureza do contrato, uma vez que o objecto é sempre o mesmo: dívidas resultantes de transacções comerciais.

A recorrente não tem razão.

As questões relativas à delimitação da competência material dos tribunais administrativos face aos tribunais judiciais têm de ser resolvidas com base nas normas jurídicas que regulam essa competência, que a recorrente pura e simplesmente ignora na sua argumentação.

Resulta dos artigos 211.º, n.º 1, da Constituição, e 64.º do CPC, que a competência material dos tribunais judiciais é residual: nela se compreendem as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Portanto, se houver norma que atribua competência aos tribunais administrativos para o julgamento de determinada causa, estará afastada a competência dos tribunais judiciais.

A norma que define o âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais é o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Interessa-nos o disposto na alínea e) do n.º 1, de acordo com a qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Esta norma inclui, pois, no âmbito da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à execução de contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.

Perante esta norma, que tem como escopo precisamente a delimitação da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, é claro que o julgamento da presente acção se enquadra nessa mesma competência. Estamos perante créditos que, sem prejuízo de serem qualificados como resultantes de transacções comerciais nos termos definidos pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, emergem da execução de contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por uma pessoa colectiva de direito público.

Não é a circunstância de o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013 falar em “processo comum” e não em “processo declarativo” que afasta a aplicabilidade da norma fundamental sobre a competência dos tribunais administrativos e fiscais, que é o citado artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Trata-se de mera flutuação terminológica, que não tem a consequência que a recorrente dela pretende retirar em matéria de delimitação da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, solução essa que, saliente-se, constituiria uma significativa e injustificada distorção das regras gerais sobre tal competência.

Diga-se, por último, que a jurisprudência dos tribunais administrativos que conhecemos sobre a questão que nos ocupa é unânime no sentido de que a competência material destes últimos não é afastada pela circunstância de o crédito emergente da execução de contrato público ter sido reclamado através do procedimento de injunção, seguindo-se, na hipótese de haver oposição, o processo declarativo previsto no artigo 35.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Sul de 07.11.2013 (proc. n.º 09992/13; relator: Paulo Pereira Gouveia), 05.06.2014 (proc. n.º 10080/13; relator: Rui Pereira); 26.02.2015 (proc. 08987/12; relatora: Helena Canelas) e 09.05.2019 (proc. n.º 105/12.5BELLE; relatora: Alda Nunes); acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Norte de 11.02.2015 (proc. n.º 0047/14.5BEBRG; relator: Rogério Martins) e 06.11.2015 (proc. n.º 280/12.9 BEBRG; relatora Helena Ribeiro).

Concluindo este ponto, o Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal é materialmente incompetente para o julgamento desta acção, não merecendo censura a decisão recorrida na parte em que declarou essa incompetência e, em consequência, absolveu o réu da instância."

[MTS]