"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/11/2020

Jurisprudência 2020 (100)


Reformatio in peius; 
matéria de conhecimento oficioso


1. O sumário de STJ 4/2/2020 (610/14.9TBBJA.E1.S1é o seguinte:

I - A declaração de nulidade de contrato de compra e venda tem como reflexo imediato a nulidade do negócio de constituição da hipoteca sobre a coisa através daquela adquirida.


II - A proibição da reformatio in pejus não tem aplicação na apreciação dessa nulidade por ser de conhecimento oficioso.


III - A nulidade do negócio constitutivo da hipoteca determina o cancelamento do correspondente registo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"É incontroverso que estamos perante uma situação em que já foi reconhecida, por segmento decisório transitado em julgado, a nulidade dos contratos de compra e venda celebrados em 14 de Maio de 2009 relativos à fracção “A”, primeiro entre BB e DD e, logo depois, entre esta e EE. Tal nulidade foi declarada por se ter verificado que foram celebrados em fraude à lei, na medida em que visaram alcançar um resultado que a lei não permite, fora das condições previstas no art.º 877.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, sem o consentimento da autora. Com efeito, perante a recusa desta em aceder a uma solução proposta sobre o pagamento das dívidas do 4.º réu, seu irmão, este e o pai de ambos - o referido BB, dono da fracção “A”, combinaram com a segunda ré a celebração daqueles contratos, o primeiro em que esta constasse como compradora e o segundo como vendedora ao 3.º réu, filho do quarto réu e neto do referido ….

Assente tal nulidade, importa extrair os efeitos da sua declaração relativamente à hipoteca e respectivo registo, uma vez que vem questionado o cancelamento do registo da hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, também determinado na sentença, mas revogado, nessa parte, pelo acórdão recorrido.

Efectivamente, na sentença, foi determinado o cancelamento do registo daquela hipoteca, bem como o cancelamento dos registos das aquisições a favor de DD e de JJ, após a declaração de nulidade dos dois contratos de compra e venda por estes celebrados. Embora a parte decisória seja omissa relativamente ao acto constitutivo da hipoteca, a verdade é que faz referência a ele na respectiva fundamentação nos seguintes termos:

Importa agora determinar qual a consequência da nulidade da compra e venda sobre a hipoteca constituída a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA. Tal hipoteca foi constituída por quem substancialmente não a podia constituir. Ora, para que o devedor (ou terceiro) possa constituir uma hipoteca, sobre um bem imóvel, será indispensável que tenha o poder de dispor dele. Só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens – cfr. art. 715.º do CC.

Assim, também a hipoteca registada sobre o bem imóvel acima identificado terá que ser cancelada, por ter na sua base um negócio nulo.”

Por sua vez, no acórdão recorrido, após suscitar questões, nomeadamente quanto à falta de declaração, na parte decisória, da invalidade do contrato de constituição da hipoteca, o tribunal ad quem entendeu que não se podia substituir ao tribunal a quo, por força da proibição da reformatio in peius, consagrada no art.º 635.º, n.º 5, do CPC.

Porém, afigura-se-nos que não tem aqui aplicação essa limitação, por se tratar de uma questão de conhecimento oficioso em que o tribunal ad quem não está limitado pela iniciativa das partes à semelhança da matéria de qualificação jurídica dos factos (cfr. art.º 5.º, n.º 3, do CPC), sendo-lhe lícito “conhecer oficiosamente de determinadas questões relativamente ao segmento decisório sob reapreciação” [Cfr. Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 117], como a decorrente da nulidade substantiva que esteve subjacente ao cancelamento do registo, visto que dispõe dos necessários elementos de facto e foi respeitado o contraditório.

Cremos não haver dúvidas de que a nulidade é de conhecimento oficioso, como claramente flui do disposto no art.º 286.º do Código Civil, ao preceituar que: “A nulidade … pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.

Com a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre BB e a segunda ré e do contrato celebrado entre esta e o terceiro réu, este deixou de ser titular do direito de propriedade da fracção que declararam ter adquirido através deste contrato e de ter qualquer disponibilidade sobre a mesma.

Porque a declaração de nulidade tem efeito retroactivo (cfr. art.º 289.º, n.º 1, do Código Civil), forçoso é concluir que o terceiro réu adquirente deixou de ter poderes de disposição sobre a fracção, pelo que a hipoteca foi constituída por quem não tinha legitimidade para hipotecar (cfr. art.º 715.º do Código Civil).

A lei equipara a constituição da hipoteca à alienação da coisa, aplicando-se-lhe, por conseguinte, as mesmas regras, designadamente quanto à hipoteca de coisa alheia.

À hipoteca de bens alheios, aplica-se o regime da venda de bens alheios, constante do art.º 892.º do Código Civil. A hipoteca de bens alheios é constituída sobre uma coisa que, no momento da constituição, pertence a outrem, não tendo o devedor o poder de disposição sobre ela [ Cfr. Isabel Menéres Campos, em anotação ao art.º 715.º, Comentário ao Código Civil, Universidade Católica Editora, pág. 959], como sucedeu no presente caso em face da declaração de nulidade do contrato de compra e venda da fracção pelo 3.º réu devedor.

Tal negócio é nulo, tanto mais que não haverá lugar a convalidação mediante a aquisição pelo hipotecador da propriedade da fracção, em face da instauração da presente acção [cfr. art.ºs 895.º e 896.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Civil].

A declaração de nulidade da compra da fracção autónoma em causa nos autos pelo 3.º réu, seu declarado adquirente, origina, “como reflexo imediato” [Cfr. Acórdão do STJ e desta Secção, de 29/3/2012, processo n.º 2441/05.8TBVIS.C1.S1, publicado na CJ – STJ – ano XX, tomo I, págs. 180 a 185], a nulidade do respectivo negócio de oneração constitutivo da hipoteca, efectuado por ele em favor da chamada CGD.

Sendo nulo o negócio constitutivo da hipoteca, como é, extinguiu-se o direito que dela emergia, o que determina o cancelamento do correspondente registo nos termos do art.º 13.º do CRP.

Com efeito, o direito que a mesma conferia ao credor (a chamada Caixa Geral de Depósitos) de ser pago pelo valor da coisa hipotecada com preferência sobre os demais credores (cfr. art.º 686.º, n.º 1, do Código Civil) deixou de subsistir com a declaração de nulidade da compra e venda da fracção e da consequente nulidade do negócio de constituição da hipoteca, não fazendo sentido manter-se o respectivo registo, tanto mais que este é constitutivo daquela, como resulta, a nosso ver, do art.º 687.º do Código Civil e sustenta a melhor doutrina [Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações – Garantias – Almedina, pág. 753; Isabel Menéres Campos, obra citada, pág. 915 e demais autores aí mencionados].

À mesma conclusão se chegaria se o registo não fosse considerado constitutivo, mas apenas uma mera condição legal de eficácia, como alguns sustentam. Trata-se de uma distinção de escassa relevância prática, uma vez que, “não produzindo a hipoteca não registada efeitos sequer inter partes, a preferência ou a prioridade no pagamento, que são os efeitos mais relevantes como garantia real, não se verificam” [Cfr. Isabel Menéres Campos, obra citada e local citados na última nota] (cfr. citado art.º 687.º e art.º 4.º, n.º 2, do CRP).

Aqui, não está em causa a hipoteca sem registo, mas o registo sem hipoteca, por ser nula. Deixando de existir o facto, não pode subsistir o correspondente registo a que está  sujeito e ao qual pretende dar publicidade [cfr. art.ºs 1.º e 2.º, n.º 1, al. h), ambos do CRP]. Trata-se de um registo que apenas cobre um direito inexistente, pelo que não pode subsistir, havendo que determinar o seu cancelamento.

Destarte, o recurso procede na parte referente à questão aqui em causa, havendo que reconhecer à autora/recorrente o direito de obter o cancelamento do registo, como lhe fora reconhecido na sentença, que deve ser repristinada."


[MTS]