"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/11/2020

Jurisprudência 2020 (92)


Acompanhamento de maiores;
poderes do tribunal; poderes inquisitórios


1. O sumário de RL 8/5/2020 (2039/19.3T8ALM.L1-8) é o seguinte:

I - Ao processo especial de acompanhamento de maiores aplicam-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de decisão e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes;

II - Em consonância com o Referido, não existe no referido processo audiência de discussão e julgamento e nele não está o juiz obrigado a produzir provas destinadas à escolha da pessoa do acompanhante;

III - Em conformidade com o art.° 145.°, do CC, o acompanhamento pode envolver uma representação legal, assim como pode implicar o recurso à assistência, mediante a autorização do acompanhante para a prática de certos actos, ou consistir num mero apoio deste à actuação do acompanhado, como sucede nas situações contempladas na alínea e) do n.° 2 do referido art.° 145.°.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"De acordo com o art.° 141.°, a própria pessoa que necessita de ser acompanhada pode requerer o acompanhamento, tal como o cônjuge, o unido de facto ou qualquer parente sucessível, desde que autorizados pelo requerente - salvo se o tribunal suprir a autorização do beneficiário -, bem como, independentemente de autorização, o Ministério Público. Atente- se, logo aqui, para o respeito pela vontade do deficiente, o qual, diferentemente do que sucedia com interditos e inabilitados, não só pode requerer o acompanhamento como lhe compete, em princípio, autorizar outras pessoas a fazê-lo. O acompanhamento destina-se a maiores - pois os menores estão protegidos pela sua incapacidade - mas, tal como já sucedia anteriormente, pode ser requerido e instaurado dentro do ano anterior à maioridade, para produzir efeitos a partir desta (artigos 142.° e 131.°). Tal como também já sucedia anteriormente, com a interdição e a inabilitação, é o tribunal que decide se há lugar ou não ao regime do acompanhamento; mas agora manda a lei que o tribunal deva ouvir primeiro, pessoal e directamente, o beneficiário, competindo ao tribunal, por outro lado, definir as medidas adequadas a cada situação concreta, o que bem o distancia da situação de incapacidade geral em que ficavam os interditos, que a lei equiparava aos menores (cfr. o art.° 139.°, na anterior e actual redacção). Note-se, de novo, a preocupação pela vontade do deficiente e pela sua autodeterminação.

Não é possível atender à sua vontade no caso dos autos, em razão da deficiência da A e da inexistência de qualquer manifestação de vontade da sua parte, antes da ocorrência da doença de Alzheimer.

Quanto à questão de saber quem pode ser o/a acompanhante, o n.° 1 do art.° 143.° determina que o acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal. Duas observações, a este respeito: a primeira é, mais uma vez, para a preocupação de respeito pela vontade do acompanhado; a segunda é para comprovar que, excepcionalmente, nos chamados hard cases, como é o caso dos autos, pode vigorar o instituto da representação em situações de verdadeira incapacidade de exercício.

A escolha deste instituto, afigura-se-nos em absoluto necessária atenta a factualidade provada e acima descrita.

Em qualquer caso, o acompanhante é designado pelo tribunal, a quem compete, nomeadamente, essa responsabilidade. Na falta de escolha, o n.° 2 do mesmo preceito apresenta uma lista de pessoas que podem ser designadas como acompanhantes, segundo o critério de quem “melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário”.

Efectivamente, este é o objectivo do acompanhamento do maior, destinado a assegurar o bem-estar deste, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres. Mas há situações em que isso, infelizmente, não será possível; daí as excepções para que a lei remete, assim como há situações que afastam o acompanhamento quando o objectivo deste já se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (como os dos cônjuges, por exemplo), tratando-se, pois, de uma medida supletiva (art.° 140.°). Essa preocupação pelo bem-estar e recuperação do acompanhado está também presente nos deveres de cuidado e diligência que, na “concreta situação”, o acompanhante deve respeitar (art.° 146.°). Atente-se na referência permanente à situação concreta de cada deficiente, adequando as medidas a adoptar a cada caso concreto, bem longe da incapacidade geral do regime dos interditos.

Mas em que consiste ou se traduz o acompanhamento? É fundamental, a este respeito, atender ao disposto no art.° 145.°, norma que evidencia bem as vantagens deste novo regime, em confronto com o regime anterior.

Respeita, sempre que possível, a vontade do beneficiário e a sua autodeterminação, limita-se ao necessário e permite ao tribunal escolher e adequar, em cada situação concreta, as medidas que melhor possam contribuir para alcançar o seu objectivo, que é, repete-se, o de assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício da sua capacidade de agir.

Mas tudo isto sem cair na posição irrealista de ignorar os hard cases, ou seja, aquelas situações de absoluta incapacidade do necessitado, pelo que, sem deixar o acompanhamento de ser hoje um modelo de apoio e de assistência, não pode deixar de transigir - em casos- limite e excepcionalmente - com medidas de substituição: daí o recurso, entre as medidas que o tribunal pode escolher para melhor talhar o “fato à medida”, ao instituto da representação legal (art.° 145.°).

Decorre, pois, do exposto, em conformidade com o art.° 145.°, que o acompanhamento pode envolver uma representação legal, assim como pode implicar o recurso à assistência, mediante a autorização do acompanhante para a prática de certos actos, ou consistir num mero apoio deste à actuação do acompanhado, como sucede nas situações contempladas na alínea e) do n.° 2 deste art.° 145.°.

Sendo no caso dos autos escolhida e bem a medida de representação legal, afigura-se-nos que bem andou o tribunal ao escolher para acompanhante o filho D indicado pelo M°P°.

A mera descrição feita pela filha E, extremamente preocupada com dinheiro, não se afigura o quadro ideal de quem quer o maior bem da mãe.

Aliás, o próprio recurso, interposto com o nome da mãe, que sofre de Alzeihmer e não tem capacidade de entendimento, tem por detrás o interesse da filha E em ver satisfeita a sua pretensão. Está demonstrado que a mãe consegue assinar, sem saber com que fim o faz.

As questões económicas serão resolvidas com a relação de bens a realizar por anexo a estes autos, pelo representante legal.

O acompanhante pode, assim, ter de assistir ou representar o acompanhado. E o novo regime acaba por estabelecer limites para a atuação do próprio acompanhante.

E o novo regime acaba por estabelecer limites para a atuação do próprio acompanhante. No que diz aos atos de disposição de bens imóveis, determina o artigo 145.°/3 CC que eles carecem sempre de autorização judicial específica. Tratando-se de um ato do acompanhante em nome do acompanhado, tal já resultava das regras do artigo 1938.° CC, conjugado com o artigo 1889.° CC. Estes preceitos são, aliás, mais amplos. De facto, enquanto a norma do artigo 145.°/3 CC fala da disposição de bens imóveis, o artigo 1938.°/1 a) CC refere-se à alienação e oneração de bens não suscetíveis de deterioração. E, embora o conceito de disposição pareça ser, em certa medida, mais amplo do que o de alienação, as restantes alíneas dos artigos citados contemplam hipóteses que se integrariam no conceito de disposição. A verdade é que os preceitos em questão se continuam a aplicar ao maior acompanhado, não pela equiparação ao menor - que inexiste - mas por expressa determinação do artigo 145.°/4 CC.

Quanto ao internamento do maior acompanhado, prevê a lei que o mesmo depende de “autorização expressa do tribunal”, podendo embora, em caso de urgência, ser imediatamente solicitado pelo acompanhante, sujeitando-se, neste caso, à ratificação do juiz (art.° 148.°). Embora a letra da lei não o diga, parece-nos que deve entender-se que a norma abrange tanto o internamento por razões de saúde, num hospital ou clínica particular, como o internamento num lar.

Dai que a lei salvaguarde as preocupações demonstradas pela filha E.

Prevê a lei que o acompanhamento cesse ou se modifique mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justificaram (art.° 149.°, n.° 1), sendo certo que, enquanto estiver instaurado, o tribunal deve rever as medidas decretadas, periodicamente, em conformidade com o que constar da sentença, mas, no mínimo, de cinco em cinco anos (art.° 155.°).

A revisão periódica é justificada pela necessidade de verificar não só se a medida de acompanhamento se mantém adequada, mas também se o acompanhante desempenhou correctamente as suas funções.

Pelo que, sempre o tribunal pode modificar a situação ora tomada, se tal se justificar."

[MTS]