Prova;
princípio inquisitório; âmbito
I- O princípio do inquisitório, no seu sentido restrito, adquire plena eficácia na fase da instrução do processo, uma vez que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, tendo o poder/dever de diligenciar pela obtenção da prova necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art. 411º do Cód. de Processo Civil).
II- O uso de poderes instrutórios está sujeito aos seguintes requisitos: i) a admissibilidade do meio de prova; ii) a sua manifestação em momento processualmente desadequado; iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio; e iv) a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer.
III- Está vedado à recorrente pretender obter, por via oficiosa, que lhe seja lícito produzir prova que, por sua iniciativa, oportunamente não requereu, tendente à demonstração de factos que tão pouco tempestivamente articulou e que extravasam os factos carecidos de prova que ao tribunal é lícito conhecer.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Os autos de execução de que estes embargos de executado são dependentes deram entrada em Juízo, no dia 25.01.2018, tendo no requerimento executivo a (então) exequente alegado, entre o mais, que “1 - A Caixa ..., S.A. é legítima portadora de três letras de câmbio sacadas pela sociedade "K – Acabamentos Têxteis, S.A.” e aceites pela sociedade "X -Indústria Têxtil, Lda.", tendo de seguida identificado as três letras de câmbio dadas à execução.
Consta ainda do requerimento executivo que “[a]s letras em apreço vieram à detenção da Caixa … por via de endosso da sociedade sacadora, na sequência da realização de operação de desconto bancário” e que “[a]presentadas a pagamento na data dos respectivos vencimentos não foram” as mesmas “pagas pelos seus obrigados cambiários, nem nessa data, nem posteriormente (…)”.
Como se depreende da consulta dos títulos dados à execução deles consta, entre o mais, “Reforma da letra …” identificando a respetiva letra.
Após ter sido citada, a embargante/executada apresentou oposição à execução, mediante embargos de executado, alegando, entre o mais, que as letras não foram aceites pelo único gerente da embargante, nem por ninguém que a pudesse legalmente representar para o efeito, sendo falsa a assinatura nelas apostas, requerendo a realização de exame pericial para determinar se alguma das assinaturas aí apostas é do gerente da embargante.
A embargada/exequente deduziu contestação, alegando, na parte que ora interessa, que a alegada falsificação da assinatura do gerente da sociedade embargante, a ter ocorrido, só pode ter sido praticada por quem nela tivesse interesse, ou seja, pela própria sociedade sacadora – a Sociedade K, SA..
Foi proferido despacho saneador, no qual foi fixado o objeto do litígio, enunciados os temas da prova e ordenada a realização de prova pericial à letra do legal representante da embargante.
O objeto do litígio foi definido nos termos seguintes (...):
“Constitui thema decidendum a determinação da existência e na afirmativa da medida, da responsabilidade da embargante/executada pelo pagamento da quantia exequenda”.
E foram enunciados os seguintes temas da prova:
“1- Da genuinidade das assinaturas imputadas à embargante e constantes do aceite das letras dadas à execução.
2 – Dos juros”.
Ocorreu, entretanto uma cessão do crédito em causa nos autos, tendo a exequente cedido o crédito relativo à ora embargada, proferindo-se sentença a habilitar a mesma como adquirente do crédito exequendo, em 07.06.2019.
Em 09.07.2019, foi junto aos autos o relatório pericial, cuja conclusão é no sentido que “é muito pouco provável que a assinatura tenha sido aposta pelo gerente da embargante”, o qual, tendo sido notificado às partes, não foi objeto de qualquer pedido de esclarecimento ou requerimento.
Posteriormente, em 29.10.2019, já após a realização da primeira sessão de julgamento, a embargada, ao abrigo do disposto no art. 411º do CPC, requereu as seguintes diligências de prova:
I) A inquirição das testemunhas que identificou como pertencendo e como sendo membros do conselho de administração da sociedade sacadora das letras;
II) A notificação ao Sr. Administrador de Insolvência para juntar uma série de documentação da referida sociedade K - Acabamentos Têxteis, Lda;III) Notificação da executada, ao abrigo do disposto no art. 429º do CPC, para juntar aos autos a conta corrente existente, faturas e recibos lançados referentes a tal sociedade, alegando que atentas as mais elementares regras da experiência comum surge como muito improvável ou dificilmente explicável que a executada tenha procedido a pagamentos parciais ao valor das letras reformadas, tenha entregue novas letras e que as mesmas não provenham da única pessoa e órgão competente para poder vincular a sociedade sacada, aceitante da letra e aqui executada.
O referido requerimento foi indeferido por despacho datado de 6/11/2019, proferido em sede de audiência de julgamento.
Posteriormente, foi proferida sentença, que julgou «procedente a presente oposição à execução mediante embargos de executado e, em consequência», determinou «a extinção da instância executiva quanto à embargante».
Discutindo-se nos presentes embargos de executado a falsidade das assinaturas apostas no aceite das letras dadas à execução, como sendo do seu legal representante, as razões pelas quais o tribunal “a quo” considerou como não provada a matéria de facto relativa à assinatura constante do aceite mencionada em 2) a 4) foi aposta por R. M., único gerente da embargante (cf. alínea a) dos factos não provados da sentença), ficaram as mesmas muito claras na motivação da matéria de facto da sentença recorrida.
Delas sobressai o resultado da perícia à letra [...], no qual se concluiu que “é muito pouco provável que a assinatura aposta no lugar destinado ao aceite dos títulos dados à execução ter sido aposta pelo legal representante da embargante, o seu gerente, resultado esse que não fica numa situação de certeza científica”.
A que acresce o facto de a restante «prova produzida no decurso da audiência de julgamento não ter permitido ao tribunal colocar em causa a perícia e as competências técnicas dos peritos intervenientes naquela», além de que «também não foi produzida prova em sentido contrário às conclusões a que os peritos chegaram», acrescentando-se que «as respostas negativas relativas aos restantes factos, e para além do que já ficou dito, deveram-se à ausência e/ou insuficiência de prova sobre os mesmos, nomeadamente testemunhal ou documental».
Com a interposição da presente apelação, interposta da sentença final e não daquele despacho que indeferiu as sugeridas diligências probatórias – se bem que se analisarmos a argumentação da apelante facilmente verificamos que, através da presente apelação, a mesma pretende reverter o decidido no despacho datado de 6/11/2019, por recurso aos princípios do inquisitório e da cooperação –, sustenta a recorrente “que com aquele indeferimento o Tribunal a quo impediu a boa descoberta da verdade material, ainda que oficiosamente”. [...]
Com o devido respeito, afigura-se-nos não lhe assistir razão.
Em matéria de alegação de factos, para além do já referido no art. 5º do CPC, no âmbito da ação executiva releva o disposto no art. 724º, n.º 1, al. e), do CPC, nos termos do qual no requerimento executivo, dirigido ao tribunal de execução, o exequente deve, entre o mais, expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.
E, nos termos do art. 573º do CPC:
«1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente». [...]
No que ao momento e local de indicação da prova pelas partes diz respeito, resulta dos arts. 552º, n.º 2, e 572º, al. d), do CPC que os meios de prova devem ser apresentados/requeridos logo nos respetivos articulados (petição e contestação), podendo, porém, o requerimento probatório ser alterado na audiência prévia quando a esta haja lugar, e dispondo ainda as partes da faculdade de, até 20 dias antes da data da audiência final, aditarem ou alterarem o rol de testemunhas (cfr. art. 598º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
E, no que concerne à prova documental, atento o regime previsto no art. 423º do CPC, consignam-se três momentos possíveis para a junção de documentos pela parte, sendo o primeiro a regra geral e os seguintes as exceções:
i) - com o articulado respetivo, sem cominação de qualquer sanção;ii) - até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, ficando neste caso a parte sujeita ao pagamento de multa, exceto se alegar e provar que os não pôde oferecer com o articulado;iii) – ultrapassado esse limite temporal, são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento ou aqueles cuja apresentação se tenha revelado necessária por virtude de ocorrência posterior.
Ora, como bem se refere no despacho que indeferiu as “sugeridas” diligências probatórias, os factos que a embargada agora pretende ver esclarecidos não foram oportunamente alegados (quer no requerimento executivo, quer na contestação de embargos), além de que, acrescentaríamos nós, os mesmos exorbitam do âmbito dos enunciados temas da prova, sendo que não visam demonstrar factos alegados carecidos de prova. [...]
Concluindo, meios de prova relevantes para a fixação da matéria de facto serão então aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, entendendo-se estes como os que importem, ainda que instrumentalmente, a qualquer uma das possíveis soluções de direito da causa, a aferir na conformação do quadro do litígio por via da causa de pedir invocada e das excepções deduzidas (...).
No caso, como se disse, os meios de prova que a recorrente pretende ver produzidos por via oficiosa destinar-se-iam à prova de factos estranhos à matéria da causa (que não foram tempestivamente alegados), a factos cuja prova é irrelevante para a sorte da ação, o que nos leva a concluir pela sua impertinência. [...]
Assim sendo, e contrariamente ao propugnado pela recorrente, as sugeridas diligências probatórias (prova testemunhal e documental) não são aptas à demonstração de factos necessitados de prova, pelo que, não sendo imprescindíveis ou necessárias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio, é de concluir que o tribunal recorrido, ao não as ter oficiosamente ordenado, não violou os poderes instrutórios a que se mostra adstrito.
O que a recorrente pretende obter neste recurso é que, por via oficiosa, lhe seja lícito produzir prova que, por sua iniciativa, oportunamente não requereu, tendente à demonstração de factos que tão pouco tempestivamente articulou e que extravasam os factos carecidos de prova que ao tribunal é lícito conhecer.
Assim, é manifestamente ilegal o propósito da recorrente, até porque o uso dos poderes instrutórios depende, além do mais, da necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio e de a prova a produzir incidir sobre factos de que o juiz pode conhecer, requisitos estes que não se mostram verificados (...)."
[MTS]