"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/11/2020

Jurisprudência 2020 (99)


Cumulação simples de pedidos;
incompatibilidade substantiva; sanação*


1. O sumário de RE 21/5/2020 (1032/19.0T8STR-B.E1) é o seguinte:

1. A actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de mérito.

2. No actual enquadramento sistemático do código revisto, a insupribilidade é hoje residual, respeitando tão só àquelas excepções que, pela sua natureza ou por via do seu regime, não consentem suprimento, oficioso ou mediante convite às partes.

3. A existência de um quadro de contradição do objecto do processo por dedução de pedido substancialmente incompatível é sanável, por aplicação do regime vinculativo do dever de gestão processual estabelecido no nº 2 do artigo 6º e nos nº 2 e 3 do artigo 590º do Código de Processo Civil.

4. A redução teleológica do nº 4 do artigo 186º do Código de Processo Civil, quando conciliada com a aplicação analógica do artigo 38º do mesmo diploma, admite que, nas situações de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, a nulidade não subsista em caso de desistência do pedido ou da instância ou acto de natureza equivalente relativamente a um desses pedidos, pois a escolha de uma única pretensão jurídica compatível faz desaparecer os pressupostos que, inicialmente, conduziriam a uma hipótese de ineptidão da petição inicial, desaparecendo assim, por actividade ulterior correctiva, os fundamentos que determinariam a absolvição da instância.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – Objecto do recurso:

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo diploma).

Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da existência de ineptidão da petição inicial e da possibilidade de a parte ser convidada a desistir de um pedido incompatível com os demais, circunstância esta que conduziu à absolvição parcial da instância. [...]

IV – Fundamentação:

O presente recurso assenta em três realidades sequenciais, complementares e incindíveis ao nível do resultado final: o convite de escolha de eliminação de pedido incompatível, a redução do objecto da causa por via dessa faculdade concedida ao Autor e, finalmente, o julgamento da excepção de ineptidão da petição inicial.

A solução integrada encontrada pela Primeira Instância acaba por absolver da instância os Réus relativamente a um conjunto de pedidos substancialmente incompatíveis e é isso que obstaculiza à procedência da excepção deduzida. Por isso, a tarefa inicial deste Tribunal passa assim por apreciar a noção de pedidos substancialmente incompatíveis.

Do disposto no nº 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil retira-se, em termos conceptuais, que o pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção com eventual suprimento pelo Tribunal de manifestos erros de qualificação, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório [...].

É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial (artigo 186º, nº 1, do Código de Código Civil). Nos termos do número do artigo acima transcrito, «diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis».

A ineptidão da petição inicial, embora seja uma excepção dilatória, gera a anulação de todo o processado. E, na opinião dos recorrentes a sentença recorrida violou entre outras, as normas constantes do artigo 186º, nºs 1 e 2, alínea c), 577º, alínea b) [...], e 576º, nº 2 [...] do Código de Processo Civil.

O Autor pode deduzir vários pedidos cumulativos contra o Réu, desde [que] eles sejam entre si substancialmente compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação [...], de harmonia com a disciplina impressa no nº 1 do artigo 555º [...] do Código de Processo Civil. [...]

E é entendimento consensual que é manifesto que a decisão de mérito se mostra inviabilizada quando se pretende a extinção contratual (declaração de nulidade do contrato) e, ao mesmo passo, a condenação da contraparte no seu integral cumprimento.

Aliás, isso é expressamente reconhecido pelo julgador «a quo» quando avança que «não é possível pedir, a título principal, o cumprimento de um contrato e a declaração de nulidade do mesmo».

O nó górdio judicando assenta assim na interpretação da possibilidade de sanação do objecto do processo nos casos de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.

Aquilo que importa apurar é se, nos casos de ineptidão da petição inicial por contradição entre pedidos principais formulados, o Tribunal pode convidar o Autor a esclarecer qual é o pedido inconciliável que pretende ver apreciado?

Ou, noutra formulação, cumpre apreciar se o dever de gestão processo inscrito nos artigos 6º [...] e 590º [...] do Código de Processo Civil é aqui inoperante e se, tal como defende o recorrente, a possibilidade de correcção apenas é viável quando se esteja perante «omissões ou meras imprecisões».

Como regime regra, no actual cenário normativo, ao juiz cabe providenciar, por iniciativa oficiosa se as partes não o requererem, o suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação ou de nulidades dos actos praticados, pois a existência do vício deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância. Esta sanção processual só tem lugar quando a sanação for impossível, bem como nos casos em que, dependendo de acto de vontade da parte, esta se mantiver inactiva.

No caso de dedução de pedidos substancialmente incompatíveis, Lebre de Freitas [José Lebre de Freitas, A ação declarativa comum, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, nº 11 (7)] [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 361] defende a aplicação analógica da solução contida no artigo 38º [...] do Código de Processo Civil, facultando à parte a escolha do pedido com o qual o processo deve prosseguir.

Também Abrantes Geraldes parece ser apoiante desta ideia do máximo aproveitamento da posição expressa nos articulados [Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, pág.126, 132 e 147 a 150]. Efectivamente, a generalidade das excepções dilatórias são supríveis, quer por iniciativa do autor, quer por determinação oficiosa do Tribunal. Certamente, por isso, utilizando as palavras do actual Juiz Conselheiro, a propósito da falta de requisitos dos pedidos, deve prevalecer o entendimento de «impor o aproveitamento da instância, em conjugação com todo um conjunto de princípios que sempre devem orientar o intérprete na busca das melhores soluções – (economia processual, prevalência da substância sobre a forma, eficiência do sistema, cooperação mútua) – exigem que a questão em análise seja resolvida de forma diversa daquela que deveria emergir do anterior CPC, ao nível do despacho saneador» [Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I (1 – Princípios Fundamentais. 2 – Fase inicial do processo declarativo), Almedina, Coimbra, 1997, pág. 158].

Após a mudança de paradigma promovida pela reforma do Código de Processo Civil, na jurisprudência nacional assiste-se a uma inflexão [...] e actualmente é admitida a solução que preconiza que, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 6º do referido diploma, o Tribunal pode convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade [...].

Mesmo na antiga formulação, nos casos de dedução de pedidos incompatíveis, a legislação adjectiva não interditava a possibilidade de, até ao momento da actividade de condensação dos autos, a parte activa apresentar desistência de uma das pretensões substantivamente inconciliáveis e permitia assim a continuação dos autos para a apreciação do mérito. E, no plano axiológico, não existe divergência relevante entre esta situação e aquela que nos é submetida à apreciação em sede do presente recurso.

No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis [...].

Aliás, a redução teleológica do nº 4 do artigo 186º do Código de Processo Civil, quando conciliada com a aplicação analógica do artigo 38º do mesmo diploma, parece admitir que, nas situações de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, a nulidade só subsista quando um dos pedidos não seja aproveitável por causa da ocorrência de uma situação de incompetência do Tribunal ou por erro na forma do processo.

O processo é uma organização normativa de actos (existência), com o sentido e alcance global da constituição do caminho tendente à solução de diferendos e à pacificação social e individual (essência) [...]. E, por isso, os fundamentos para a declaração da falta manifesta de certos pressupostos processuais ou nulidade de todo o processo implicam que se esteja perante um quadro de absoluta insupribilidade.

No actual enquadramento sistemático do código revisto, a insupribilidade «é hoje residual, respeitando tão só àquelas excepções que, pela sua natureza ou por via do seu regime, não consentem suprimento, oficioso ou mediante convite às partes» [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 623], ao abrigo do dever de gestão estatuído no nº 2 do artigo 6º do Código de Processo Civil.

E, assim fora desse quadro ali excepcionado (incompetência do Tribunal e erro na forma do processo), por via dos poderes vinculados de determinação oficiosa do suprimento de excepções dilatórias, fica aberto o caminho para a adopção de uma solução de escolha entre as pretensões incompatíveis. Esta, nos seus efeitos práticos, traduz-se numa desistência da instância relativamente a um dos pedidos anteriormente apresentados por autor ou reconvinte. E, com isso, consegue-se a regularização da objectiva da lide, sem necessidade de proposição de uma nova acção com o seu objecto reduzido, valorizando-se assim os princípios da economia processual, da adequação formal, do máximo aproveitamento das pretensões apresentadas em juízo, aliados ao poder de direcção do processo, em detrimento de um veredicto formado em questões estritamente formais.

Em suma, a existência de um quadro de contradição do objecto do processo por dedução de pedido substancialmente incompatível é sanável, por aplicação do regime vinculativo do dever de gestão processual estabelecido no nº 2 do artigo 6º e nos nº 2 e 3 do artigo 590º do Código de Processo Civil.

Assim, em caso de escolha – ainda que sugerida pelo Tribunal – ou desistência do pedido ou da instância relativamente a um dos pedidos substancialmente incompatíveis, a selecção de uma única pretensão jurídica compatível faz desaparecer os pressupostos que, inicialmente, conduziriam a uma hipótese de ineptidão da petição inicial, desaparecendo assim, por actividade ulterior correctiva, os fundamentos que determinariam a absolvição da instância.

Deste modo, não merece crítica a decisão tomada pela Primeira Instância, mantendo-se assim na sua completude o decidido em Primeira Instância."

*3. [Comentário] a) Concorda-se com a possibilidade de sanação da ineptidão da petição inicial decorrente de uma cumulação simples de pedidos substancialmente incompatíveis (cf. art. 186.º, n.º 2, al. c), CPC). O que não se acompanha totalmente é que a forma dessa sanação seja necessariamente realizada através da desistência de um dos pedidos incompatíveis ou da desistência da instância quanto a um deles. Dir-se-á que o mais intuitivo é transformar a cumulação simples inadmissível por incompatibilidade substantiva na cumulação em que esta incompatibilidade não obsta à cumulação de pedidos, que é, como se sabe, a cumulação subsidiária (cf. art, 554.º, n.º 2, CPC).

b) Cabe, em todo o caso, salientar que é muito duvidoso que, na situação em análise, se tenha verificado uma cumulação simples de pedidos substancialmente incompatíveis.

Afirma-se no acórdão o seguinte:

"O Autor pediu que os Réus fossem condenados a:

1) reconhecer que o contrato que firmaram ocorreu de forma meramente verbal, que não deram cumprimento ao acordado e, portanto, mercê deste não cumprimento, deixou de ter qualquer interesse na sua concretização e, em consequência serem condenados a restituir-lhe a quantia paga de € 5.000,00 e, bem assim, as despesas havidas com a requisição de crédito bancário para a aquisição no montante de € 239,20, e juros vencidos até esta data no montante de € 148,49.

2) reconhecer que não tendo sido observada a forma legal é o mesmo nulo e em consequência também são obrigados a restituir-lhe a dita quantia de € 5.000,00 acrescida das mencionadas despesas com a requisição de empréstimo bancário, no montante de € 239,20 e o indicado montante de € 148,49 a título de juros (rendimento)."

única diferença que se consegue descortinar entre o pedido 1) e o pedido 2) é o de que, no primeiro, se afirma que o contrato foi celebrado de forma verbal e que, no segundo, se qualifica como nulo esse contrato. Em ambos os pedidos é pedido o pagamento das quantias de € 5.000,00, de € 239,20 e de € 148,49. Nesta base, sem se colocar em causa que a formulação dos pedidos é muito deficiente, não se descortina nem nenhuma cumulação simples de pedidos, nem nenhuma incompatibilidade substantiva entre esses pedidos. 

MTS