Imunidade de jurisdição;
Conselho da Europa
I- A imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais está, normalmente, prevista nos seus tratados constitutivos, nas convenções multilaterais e nos acordos bilaterais.
II- Inexiste norma expressa que consagra a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa.
III- O Conselho da Europa não assume a figura de um Estado (possuindo, antes, uma composição essencialmente inter-estatal), pelo que as regras a estes aplicáveis não são válidas para aquele.
IV- Assim, para apurar a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa, há que lançar mão dos princípios gerais de Direito Internacional Público sobre a imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais.
V- De acordo com tais princípios, as Organizações Internacionais gozam de imunidade de jurisdição absoluta, inexistindo motivos para dar ao Conselho da Europa um tratamento mais desfavorável do que aquele que é dado às restantes Organizações Internacionais.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"e) É certo que, nem do Estatuto do Conselho da Europa, nem do Acordo Geral sobre os Privilégios e Imunidades do Conselho da Europa resulta expressamente que o Conselho da Europa, enquanto tal, goza de imunidade de jurisdição.
Por outro lado, “no ordenamento jurídico português, não existe norma que regule a questão da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros perante os Tribunais portugueses, problemática que tem de ser apreciada à luz das normas e dos princípios de direito internacional geral ou comum, que, segundo o nº 1 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, “fazem parte integrante do direito português” (cf. Acórdão do S.T.J. de 4/6/2014, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Desde logo, há que salientar que o Conselho da Europa não é um órgão governamental de qualquer Estado soberano, nem tem quaisquer funções legislativas ou executivas (na União Europeia as competências no controle e em alterações na legislação são divididas entre o Parlamento e o Conselho da União Europeia, enquanto as tarefas executivas são levadas a cabo pela Comissão Europeia).
Deste modo, não há que aplicar “in casu” a “teoria relativa da imunidade de jurisdição do Estado”, segundo a qual “dela se consideram actualmente excluídos os actos de gestão (respeitantes a actos e contratos privados), apenas sendo considerados actos de imunidade de jurisdição dos estados os praticados sob a denominação de actos de império” (cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 10/5/2016, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Deste modo, a questão em apreço deverá ser resolvida mediante interpretação dos princípios gerais de Direito Internacional Público sobre a imunidade das Organizações Internacionais.
Ora, no Processo “Associação de Mães da Sbrebrenica e outros v. Estado da Holanda e Nações Unidas” (“Mothers of Sbrebrenica Association et al v. The State of the Netherlands and the United Nations”), que correu termos no Supremo Tribunal dos Países Baixos, e cuja decisão pode ser consultada na “internet” na Base de Dados do CAHDI (Committee of Legal Adviser on Public International Law), em http://www.cahdidatabases.coe.int/Contribution/Details/347, decidiu-se, a propósito da ONU e da imunidade desta organização (tradução do relator do presente Acórdão):
“(…) a questão é se, como a Associação et al. argumentam, o direito de acesso a um Tribunal independente consagrado no artigo 6º da CEDH e no artigo 14º do PIDCP prevalece sobre essa imunidade. Com base nos critérios estabelecidos pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) em Beer e Regan v. Alemanha e Waite e Kennedy v. Alemanha, o Tribunal de apelação examinou a questão de saber se a invocação da imunidade da ONU é compatível com o artigo 6º da CEDH. Nesse contexto, a primeira coisa que pode ser estabelecida é que a imunidade sirva um objectivo legítimo, ou seja, garantir o bom funcionamento das Organizações Internacionais. Em resposta à questão de saber se, neste caso, a imunidade é proporcional ao objectivo a ser cumprido, deve-se notar desde o início que a ONU ocupa uma posição especial entre organizações internacionais”.
“A base para a imunidade da ONU (distingue-se da imunidade concedida à funcionários e especialistas que realizam missões para a ONU) é o artigo 105º da Carta e artigo II, § 2 da Convenção. O Tribunal de recurso estava correto ao interpretar esta última disposição – que é uma concretização do parágrafo 1 do artigo 105º – à luz da artigo 31º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, para significar que a ONU desfruta de imunidade de jurisdição de maior alcance, no sentido de que a ONU não pode ser convocada para comparecer perante qualquer Tribunal nacional nos países que são parte no Convenção”.
“Tanto a base, quanto o escopo dessa imunidade, que visa garantir que a imunidade da ONU pode funcionar de forma completamente independente e, portanto, serve um propósito legítimo, portanto, diferente daquele subjacente à imunidade de jurisdição de que gozam os Estados estrangeiros. Conforme declarado na secção 13ª da Lei de Disposições Legislativas Gerais, o segundo, deriva do Direito Internacional (“parem parem non habet imperium”), e aplica-se exclusivamente a actos de um Estado estrangeiro realizados com capacidade governamental (“acta iure imperii”)”.
“Conforme declarado em 4.1.1, o Tribunal de apelação concluiu, com base nos critérios estabelecidos pelo TEDH em Beer e Regan /Alemanha (TEDH de 18 de Fevereiro de 1999, nº 28934/95) e Waite e Kennedy contra Alemanha (TEDH em 18 de Fevereiro de 1999, nº 26083/94), que a invocação da imunidade da ONU é compatível com o direito de acesso aos Tribunais consagrado no artigo 6º da CEDH e no artigo 14º do PIDCP. No processo de cassação, o Estado não contesta o argumento de que esse Direito de imunidade – que não é um direito absoluto – também constitui uma regra do direito internacional consuetudinário”.
“Ambos os casos acima citados envolveram processos perante os Tribunais alemães contra a “Agência Espacial Europeia” (ESA), na qual os requerentes queriam que o Tribunal estabelecesse que eles eram funcionários da ESA, de acordo com a lei alemã. A ESA, é uma organização internacional que goza de imunidade de jurisdição nos termos do artigo XV, §2 da Convenção para criação de uma Agência Espacial Europeia de 30 de Maio de 1975, em conjunto como Anexo I da mesma Convenção (Série 123 do Tratado Holandês). O Tribunal alemão aceitou esse fundamento. O TEDH considerou que isso não constituía uma violação do artigo 6º ECHR”.
E mais adiante :
“No presente caso, o capítulo VII permitiu ao CSNU adoptar medidas coercivas em reacção a um conflito identificado e considerado um ameaça à paz, a saber, a Resolução do CSNU 1244 que instituiu a UNMIK e a KFOR. Uma vez que as operações estabelecidas pelas resoluções do CSNU no capítulo VII da Carta da ONU são fundamentais para a missão da ONU de garantir a paz e a segurança internacionais e, como eles contam com sua eficácia no apoio Estados membros, a Convenção não pode ser interpretada no sentido de sujeitar os actos e omissões das partes contratantes cobertos pela Resolução do CSNU (…) ao escrutínio dos Tribunais. Fazê-lo, seria interferir no cumprimento da principal missão da ONU onde se inclui, conforme argumentado pelas partes, a condução eficaz das suas operações”.
“Seria também o mesmo que impor condições à implementação de uma Resolução do CSNU que não estava prevista no texto da própria Resolução”.
Mais à frente:
“E no parágrafo 149, o TEDH sustenta que, desde as operações estabelecidas pelo CSNU que as resoluções do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas são fundamentais para a missão da ONU para garantir a paz e a segurança internacionais, pelo que a Convenção não pode ser interpretada de maneira a sujeitar os actos e omissões das Partes Contratantes, que sejam cobertas pelas resoluções do CSNU e ocorrem antes ou no decurso de tais missões, ao controlo do Tribunal”.
Mais adiante:
“Essa imunidade é absoluta. Além disso, respeitá-la está entre as obrigações dos Estados membros da ONU que, como o TEDH levou em consideração em Behrami, Behrami e Saramati, nos termos do artigo 103º da Carta da ONU, prevalece sobre as obrigações conflituantes de outro Tratado Internacional”.
E quase a concluir:
“Embora a imunidade da ONU deva ser diferenciada da imunidade do Estado, a diferença não é suficiente para justificar uma decisão sobre a relação entre a primeira e o direito de acesso aos Tribunais, de uma maneira diferente da decisão do TIJ sobre a relação entre a imunidade do Estado e o direito de acesso aos Tribunais. A ONU goza de imunidade, independentemente da extrema seriedade das acusações contra as quais a Association et al. baseia suas reivindicações”.
f) Do que acima fica exposto, e a propósito da imunidade de jurisdição do Conselho da Europa podemos extrair as seguintes conclusões:
- A imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais está, normalmente, prevista nos seus tratados constitutivos, nas convenções multilaterais e nos acordos bilaterais.- Inexiste norma expressa que consagra a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa.- O Conselho da Europa não assume a figura de um Estado (possuindo, antes, uma composição essencialmente inter-estatal), pelo que as regras a estes aplicáveis não são válidas para aquele.- Assim, para apurar a imunidade de jurisdição do Conselho da Europa, há que lançar mão dos princípios gerais de Direito Internacional Público sobre a imunidade de jurisdição das Organizações Internacionais.- De acordo com tais princípios, as Organizações Internacionais gozam de imunidade de jurisdição absoluta, inexistindo motivos para dar ao Conselho da Europa um tratamento mais desfavorável do que aquele que é dado às restantes Organizações Internacionais.
g) Deste modo, teremos de concluir que bem andou o Tribunal “a quo” ao decidir que o Conselho da Europa goza de imunidade de jurisdição, não podendo os Tribunais de um Estado membro contratante (neste caso Portugal) julgar a actuação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no exercício das suas funções, enquanto órgão do Conselho da Europa.
h) Defendem ainda os recorrentes que se aplica ao Conselho da Europa (e a todas as demais pessoas colectivas de Direito Público sediadas em Portugal ou em país estrangeiro, mas com sucursal, agência, filial, delegação ou representação em Portugal), o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, consagrado na Lei 67/2007 de 31/12.
Ora, o artº 1º nº 1 de tal diploma dispõe que “a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial”. E acrescenta o nº 2 que “para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”. O nº 3, por sua vez, estipula que, “sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente lei regula também a responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício”. O nº 4 adianta que “as disposições da presente lei são ainda aplicáveis à responsabilidade civil dos demais trabalhadores ao serviço das entidades abrangidas, considerando-se extensivas a estes as referências feitas aos titulares de órgãos, funcionários e agentes”. E conclui o nº 5 que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Ou seja, o âmbito subjectivo deste diploma abrange o Estado e demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa ; os titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício ; os demais trabalhadores ao serviço das entidades abrangidas, considerando-se extensivas a estes as referências feitas aos titulares de órgãos, funcionários e agentes ; pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Não vemos como enquadrar aí, mesmo por analogia, o Conselho da Europa, tal como acima o definimos. Com efeito, afigura-se-nos que estamos perante uma lei nacional, dirigida ao Estado português, seus órgãos e trabalhadores e ainda pessoas colectivas de direito privado (e seus trabalhadores), estas sim nacionais ou internacionais, que actuem no exercício de um poder público.
O Conselho da Europa não é, como já vimos, um Estado ou uma pessoa colectiva a ele equiparado. Muito menos é uma pessoa colectiva de direito privado.
E, acima de tudo, goza de imunidade de jurisdição."
[MTS]