Dívidas dos cônjuges; dívida própria;
responsabilidade patrimonial; bens comuns*
I - A comunhão de vida matrimonial – de pessoas e de bens – e a tutela dos valores sociais e culturais implícitos ao casamento propiciam a observância de um regime especial em relação ao direito comum das obrigações, no que diz respeito à responsabilidade por dívidas dos cônjuges.
II. Sem embargo do princípio dominante da intangibilidade dos bens comuns para a satisfação de débitos assumidos em exclusivo por um dos cônjuges e da subsidiariedade da sua nomeação à penhora em sede de cobrança coerciva, o legislador excluiu dessa restrição os bens comuns enunciados no artigo 1696º, nº 2 do Código Civil, entre os quais, na alínea b), se incluem os proventos do trabalho de cada um dos consortes.
III. No caso de a penhora incidir sobre os bens comuns contemplados no artigo 1696, nº 2 do Código Civil, maxime sobre o produto do trabalho, porque eles respondem ao mesmo tempo que os bens próprios, em execução movida contra um dos cônjuges, e por dívida da sua exclusiva responsabilidade, não se justifica o exercício do direito do outro cônjuge para requerer a partilha e escolher os bens da meação, e, por consequência, é dispensável a sua citação nos termos do artigo 740,º nº1 do Código do Processo Civil.
IV. Por idêntica razão ditada pelo regime substantivo, estando em causa a penhora até 1/3 do salário do executado, não são de admitir os embargos de terceiro deduzidos pelo seu cônjuge – artigo 343º do CPC – não traduzindo o acto afectação indevida e ofensiva ao seu direito.
V. O casamento corresponde à forma de contratualizar a união familiar entre dois cidadãos. De maior amplitude é o conceito jurídico constitucional de família, que realiza e tutela diversas tipologias de constituição, além do casamento.
VI. De jure constituto, o legislador ordinário ao estabelecer o limite até 1/3 na penhora do salário/produto do trabalho, pontificou pela protecção do executado, e, dessa forma, do casal, não beliscando preceito constitucional e em respeito ao princípio da dignidade humana, ínsito ao Estado de Direito.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Reconhece-se que não é isenta de dúvidas a articulação imediata entre o regime substantivo da responsabilidade dos cônjuges por dívidas, contemplado no artigo 1696, nº2 do Código Civil, e, o preceito adjectivo do artigo 740, nº1 do Código do Processo Civil.
A abordagem da matéria na doutrina e na jurisprudência apresenta algum grau de divergência.
Assim.
Sintetizando a argumentação da posição que sustenta a indispensabilidade da citação do cônjuge do executado, é destacado que subsiste a necessidade de o cônjuge não demandado defender a sua meação sempre que penhorados bens comuns do casal, seja no anterior CPC[...], como no actual NCPC.[Cfr. Miguel Teixeira de Sousa in A Execução Das Dívidas Dos Cônjuges - PERSPECTIVAS DE EVOLUÇÃO (versão actualizada), disponível em open space, pág.4 a 7]
Na senda do entendimento que perfilha a dispensa da citação do cônjuge do executado, no caso de a penhora incidir sobre os bens comuns taxados no artigo 1696, nº2 do Código Civil, realça-se que a sua natureza não justifica o direito a requerer a partilha, e ademais não competir ao regime processual substituir-se na definição substantiva da responsabilidade patrimonial dos cônjuges. [Cf. Salvador da Costa in Incidentes da Instância, 6.ª Edição, Almedina, 2013, pág. 166; e, também, Braga da Cruz in Capacidade patrimonial dos cônjuges, pág. 408)
Cremos, salvo o devido respeito que esta se apresenta como a solução mais coerente com o sistema, pois, determinando o artigo 1696º, nº 2, do Código Civil, que os bens comuns ali indicados respondem ao mesmo tempo que os seus bens próprios, em execução movida apenas contra si e por dívida da sua exclusiva responsabilidade, v.g. al) b) - produto do trabalho do cônjuge devedor - é dispensada a citação do respectivo cônjuge.
Encimando a doutrina que sufragamos, destaca-se a ausência de interesse do cônjuge do executado em fazer incluir esses bens na sua própria meação, referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira: “ A partilha só tem sentido quando se torna necessário determinar os bens que vão compor a meação do devedor, para que a execução prossiga sobre eles; o cônjuge do devedor, por seu turno, pode ter interesse em fazer incluir certos bens comuns na sua própria meação”:[[Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família” vol. I, “Introdução ao Direito Matrimonial”, 5ª Edição, disponível em formato PDF, open space], pág. 505]
De igual modo, Lebre de Freitas neste tocante, refere: [In A Ação Executiva à luz do CPC DE 2013, 7ª edição, pág. 338]
“Tratando –se de bens comuns, em dois casos não pode o cônjuge do executado embargar: a) quando tenha sido citado nos termos do artº 740, nº1 e o executado não tenha bens próprios; b) quando a penhora incida sobre bens (…) ou ainda sobre o produto do trabalho (…), dado que estes bens, ainda que comuns, respondem ao mesmo tempo que os bens próprios (art1696, nº2 CC).” [ambém do mesmo autor no quadro do anterior CPC, in A Acção Executiva, à luz do Código revisto, 2.ª ed., 1997, pág. 238]
Em reforço desta conclusão, observa-se adicionalmente.
No regime dos embargos de terceiro por parte do cônjuge no CPC anterior à reforma operada pelo DL 329-A/95, de 12/12 e pelo DL nº 180/96, de 25/09, estava excluída expressamente (artigo 1038º) a sua dedução no caso de penhora do produto do trabalho do executado (nº 2, al. b), “in fine”). [...]
Na reforma subsequente da acção executiva[...], e também no NCPC (artigo 356 ), não constando “expressis verbis” essa excepção, não pode, todavia, deixar de consagrá-la, dado que apenas se admitem os embargos relativamente a bens indevidamente atingidos pela diligência, que o não são, face ao determinado no artigo 1696, nº2 do Código Civil, respondendo a par dos bens próprios pela dívidas de exclusiva responsabilidade.
De registar ainda, que os bens comuns do casal apresentam uma autonomia mitigada, em virtude de o legislador permitir que aqueles respondam pelo pagamento de dívidas singulares, em iguais moldes que respondem os bens próprios do consorte obrigado perante terceiro. [Cf. a propósito Rita Xavier in, Os limites da autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, pág. 301 e seg.]
Note-se que o legislador não deixou em tais circunstâncias de acautelar a posição do cônjuge não obrigado pela dívida singular do outro, através de compensação do um crédito sobre o património comum, diferindo-o, embora, para o momento da partilha por dissolução, conforme o estatuído no artigo 1689, nº2 do Código Civil. [...]
Prosseguindo igual caminho, parte da jurisprudência mais recente sustenta a dispensa da citação do cônjuge do executado demandado por dívida da sua exclusiva responsabilidade, no caso de penhora dos bens comuns enunciados no artigo 1696, nº2, do CC, maxime, o salário, no domínio do anterior CPC , e também no actual NCPC. [...]
Entre outros, assim se decidiu : no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.01.2013; [...] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2006, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.07.2012 ; Decisão sumária do Tribunal da Relação de Évora de 8.02.2018; e no Acórdão [...] da Relação de Guimarães de 7.3.2019 .[...]
3. Retomando a questão crucial a decidir nos autos - é de atender o fundamento da embargante/apelante ao reclamar da indevida afectação do seu direito sobre o salário do marido executado, penhorado na ausência da sua citação nos termos do artigo 740, nº1 do Código de Processo Civil?
Para nós, tendo em conta a interpretação conjugada dos preceitos aplicáveis, suportada na argumentação acima expendida, a resposta é negativa, acompanhando-se o sentido decisório do Tribunal a quo.
Com efeito, partindo da ratio estrutural da tutela dos embargos de terceiro- a defesa de direito incompatível com o acto judicial - tal pressuposto não se verifica no caso em juízo.
Isto porque, repete-se, sendo embora o salário do cônjuge executado um bem comum, responde a par, em iguais termos, aos bens próprios pelas dívidas da responsabilidade exclusiva - artigo 1696, nº2 a) b do CC, não ocorrendo, em consequência, afectação ilegítima do direito do cônjuge não demandado.
Não se olvide, de resto, que cada um dos consortes detém a administração dos proventos do seu trabalho, e o poder de da sua livre disposição por acto entre vivos, conforme preceitua o artigo 1682, n. º2 do Código Civil.
Ora, justamente porque assim é, pese embora integrando a categoria legal de bem comum dos cônjuges, é de questionar no caso a aplicação da disposição adjectiva do artigo 740, nº1/786, nº1 do CPC, vocacionados para bens comuns que não são livremente alienáveis por um dos consortes, como são os imóveis.
De outro passo, olhando aos bens comuns do casal como um património colectivo, não se vislumbra qual a necessidade/vantagem de partilha prévia à “venda” do bem penhorado, na circunstância de o objecto da penhora – salário- como coisa fungível / quantia monetária.
A categoria legal do salário de cada um dos cônjuges como bem comum, e a consequente igualação de meações em caso de afectação por dívida própria, encontra-se devidamente salvaguarda pelo legislador, através do direito à compensação por parte do outro cônjuge, conforme o estabelecido nos artigos 1682, nº4 e 1697, nº1 e nº2 do Código Civil, aquando do apuramento ulterior de contas entre os cônjuges.
Por seu turno, garantir, ainda assim, a citação da embargante, com a finalidade de poder requerer a partilha - artigo 740, nº1 do CPC - não se ajusta à natureza do bem penhorado /salário, e não menos relevante, ultrapassa a função instrumental do direito processual, interferindo com o regime legal substantivo relativo à responsabilidade patrimonial pelas dívidas dos cônjuges, quando são objecto de cobrança coerciva."
*3. [Comentário] A enorme variedade dos casos que são apreciados e resolvidos pela jurisprudência constitui sempre uma boa oportunidade para rever posições que foram defendidas sem a consideração de tudo o que afinal devia ter sido considerado.
No acórdão cita-se um texto -- que pode ser consultado aqui -- de uma forma que pode levar a entender que nele se defende que, quando são penhorados bens incluídos na enumeração do art. 1696.º, n.º 2, CC, há que aplicar o disposto no art. 740.º, n.º 1, CPC. A verdade é que, salvo melhor opinião, essa posição não resulta do texto.
Aliás, há uma justificação bem simples -- que, brevitatis causae, bem poderia ter sido utilizada pela RL -- para se ter de entender que a penhora dos bens enumerados no art. 1696.º, n.º 2, CC nunca pode conduzir à aplicação do art. 740.º, n.º 1, CPC. A razão é a seguinte:
-- O art. 740.º, n.º 1, CPC só é aplicável quando sejam penhorados bens comuns do casal por não se conhecerem bens próprios suficientes do executado;
-- O art. 1696.º, n.º 2, CC permite a agressão dos bens nele elencados sem qualquer subsidiariedade perante a inexistência de outros bens ("Respondem, todavia, ao mesmo tempo [...]");
-- Logo, a penhora dos bens abrangidos pelo art. 1696.º, n.º 2, CC nunca preenche a previsão da regra constante do art. 740.º, n.º 1, CPC.
Isto chega para se ter de concluir que a aplicação do art. 1696.º, n.º 2, CC nunca pode conduzir à aplicação do art. 740.º, n.º 1, CPC. O problema não é tanto de falta de justificação para aplicar o art. 740.º, n.º 1, CPC, mas antes de impossibilidade de aplicar este preceito.
MTS
[Actualizado às 19:45]