"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/11/2020

Jurisprudência 2020 (102)


Acção de divisão de coisa comum;
princípio da dualidade das partes*

1. O sumário de RP 23/4/2020 (2323/19.6T8PRD.P1) é o seguinte:

O comproprietário e também co-herdeiro de outro comproprietário de um imóvel entretanto falecido pode pedir a divisão desse bem comum sem primeiro ter de se proceder á partilha da quota-parte hereditária.


2. Na fundamento do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão a decidir é aferir se, sendo a requerente da divisão de um imóvel de que é comproprietária e co-herdeira, pode enquanto tal, propor essa ação ou se tem de primeiro partilhar-se a parte comum pelos herdeiros e, depois de efetuada a partilha, para depois pedir a divisão do bem comum.

*

2.2). Dos argumentos do recurso.

Delimitada a questão a decidir, não nos iremos demorar pois a decisão recorrida explana corretamente a sua visão sobre a impossibilidade da requerente poder, desde já, intentar uma ação de divisão de coisa comum e a recorrente também o faz, quanto à possibilidade de tal suceder.

Como se denota, há duas ideias contrárias sobre esta questão.

Quando se intenta uma ação de divisão de coisa comum (artigos 925.º e seguintes, do C. P. C.), o que está na base é a compropriedade de um bem tal como definida no artigo 1403.º, n.º 1, do C. C..

Esta compropriedade pressupõe «um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará.» - Ac. do S. T. J. de 04/02/1997, citado no Ac. do mesmo Tribunal Superior de 30/01/2013, este em www. dgsi.pt -.

Em suma, se um co-herdeiro de um património comum pretende pôr fim à compropriedade, como até à partilha não é comproprietário pois não é dono do bem mas é antes titular de um direito sobre a herança, e incide sobre uma quota ou fração da mesma para cada herdeiro sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota, como se sumaria naquele Ac. do S. T. J. de 30/01/2013, não o poderá fazer.

Outra perspetiva é a que se denota do Ac. da R. C. de 09/02/1999, www.dgsi.pt, só sumariado e em que se menciona que estando pendente um processo de inventário para partilha de bens do falecido, comproprietário de uma quota de um prédio indiviso, pode qualquer dos restantes consortes nessa comunhão, requerer a divisão da coisa comum, através da ação própria, sem ter que aguardar pelo desfecho da partilha, não sendo necessário determinar a quota que vier a caber a cada um dos herdeiros.

Noutro Acórdão, agora da R. L. de 17/12/2002, também só sumariado, «…no caso de a herança indivisa ser, ela própria, comproprietária (v.g. de metade indivisa de um prédio), tem legitimidade para intervir em tal acção de divisão de coisa comum desde que representada por todos os herdeiros (que agem como representantes e não em nome próprio).».

O que se vislumbra que se entende para quem defende esta posição é que, sabendo-se quem são os comproprietários, mesmo que um ou mais tenham falecido, os seus herdeiros ocupam a posição desse comproprietário falecido, assumindo essa qualidade, mesmo que não se tenha efetuado a partilha.

Conhecendo-se os comproprietários, independentemente do conteúdo do seu direito, não se encontra qualquer utilidade, prática ou jurídica, para que, previamente à divisão do imóvel, se proceda à partilha dos bens deixados pelos comproprietários falecidos, onde se incluía a compropriedade do imóvel a dividir. Sabe-se a quem pertence o direito, por sucessão, e conhece-se também a sua extensão, não advindo qualquer interesse prático na exigência da partilha, por decesso dos primitivos comproprietários. A divisão da coisa comum, assim como a venda antecipada antes da partilha, não prejudica o direito patrimonial dos respetivos interessados – Ac. da R. L. de 17/06/2015, www. dgsi.pt -.

Não tomando posição expressa sobre esta questão que não seria o objeto do recurso, a Relação do Porto, em 26/09/2019, citado pelo recorrente, (www.dgsi.pt), decide que, em relação à interposição de ação de divisão de coisa comum e contra quem deve ser intentada, se o único consorte não demandante faleceu e a respetiva herança permanece por partilhar, a ação deve ser instaurada contra a herança do consorte o que aponta para a desnecessidade de se intentar a prévia partilha.

Também adiante nessa decisão se menciona que «não estamos a falar (…) de legitimidade substantiva para dispor do direito de operar a divisão do quinhão da herança na coisa comum. Esta há-de aferir-se em conformidade com as regras de direito material próprias da comunhão hereditária, para o que poderá ser necessário consultar a vontade conjunta ou maioritária dos herdeiros, independentemente da posição que eles ocupem na acção de divisão de coisa comum».

Numa situação com solução mais direta para o que nos ocupa, no Ac. da R. E. de 12/07/2012, no mesmo sítio, dá-se o exemplo de que, estando os três comproprietários identificados na parte em que comungam na propriedade do bem 1/3 para cada um sendo um deles uma herança indivisa à qual concorrem vários interessados, a divisão pode facilmente ser feita, se o prédio for divisível, atribuindo a cada um o seu terço, e ficando aquele terço correspondente à herança atribuído à mesma, mas onde todos os seus herdeiros comungam, e cessando a compropriedade em relação aos titulares dos outros dois terços.

Este Acórdão foi revogado pelo Ac. do S. T. J. de 30/01/2013 acima referido.

No caso dos presentes autos, a requerente será comproprietária do imóvel acima indicado (prédio urbano composto por uma parcela de terreno destinada à construção urbana) em ¼ por o ter adquirido em conjunto com outras três pessoas, os 5.º e 6ºs. Réus e seu falecido marido (mas com aquisição datada de antes do casamento com a Autora e na pendência do casamento com a primeira mulher, aqui 1.ª Ré).

Falecido o marido da Autora, no lugar daquele de cuius, ficam a Autora, a primeira mulher do mesmo (1.ª Ré por não ter ainda sido feito partilha do imóvel aquando do divórcio com esta Ré), e os seis filhos, 2ºs. a 6ºs. Réus.

Deste modo, quanto à herança em causa (1/4 do imóvel), a 1.ª Ré terá 1/8 do imóvel por força do casamento (meação) e, quanto ao outro 1/8, a Autora e os seis filhos terão cada um 1/64.

A estes valores hão-de acrescer, a favor da Autora, 5.º e 6ºs. Réus, o quarto de que são comproprietários.

Ora, a título de exemplo, se existirem quatro comproprietários de um imóvel e um deles falecer, no lugar dessa pessoa singular surge a herança indivisa (para se analisar algo semelhante ao caso dos autos).

Se um dos outros três comproprietários, não herdeiro, quiser cessar a comunhão, terá de interpor a ação contra os outros dois e, sendo a herança, no conjunto, também ela comproprietária porque ingressou nessa posição, a ação tem de ser proposta contra a mesma, representada por todos os herdeiros nos termos do artigo 2091.º, n.º 1, do C. C. – assim expressamente o refere Luís Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas -.

Pensamos que aqui não existem questões sobre esta possibilidade pois não só, em regra, o comproprietário não pode ficar obrigado a permanecer na indivisão – artigo 1412.º, n.º 1, do C. C. – como a herança, já aceite (como se alega que foi), só «pode intervir» através dos herdeiros que sucedem nos direitos e obrigações do falecido por essa herança aceite não ter personalidade judiciária (artigo 12.º, a),a contrario, do C. P. C. e 2024.º, do C. C.).

Se o requerente da divisão do bem comum «só» é herdeiro, pensamos que efetivamente não pode recorrer a este tipo de ação pois ainda não é comproprietário como acima se referiu e consta na decisão recorrida; se o herdeiro, além dessa quota hereditária, é igualmente comproprietário e na ação já se encontram os restantes herdeiros (representando a totalidade da herança), pensamos que nada impede o comproprietário e herdeiro de querer fazer cessar a indivisão sem antes partilhar a quota hereditária.

Podendo o terceiro comproprietário (não herdeiro) fazer intervir a herança para se dividir o bem de que a herança é titular, não vemos motivo para que o mesmo comproprietário, por também ser herdeiro, já não o possa fazer.

A qualidade de herdeiro não afasta a qualidade de comproprietário, não fazendo nascer uma limitação ao exercício dos seus direitos, como pensamos que o recorrente afirma de modo correto.

Esse comproprietário, ao propor a ação, já está a representar a herança e ao propor a ação contra os outros comproprietários, incluindo a herança representadas pelos herdeiros, faz com que todos os herdeiros estejam na ação de divisão de coisa comum (é esta a decisão tomada pelo acima referido Ac., da R. P. de 26/09/2019 com a qual concordamos) e assim está assegurada a legitimidade.

Depois, importa analisar da divisibilidade ou indivisibilidade do bem e, consoante o que se decida, o imóvel é dividido de acordo com os quinhões ou com a adjudicação do bem a algum ou alguns dos comproprietários, preenchendo com dinheiro as quotas dos restantes – artigo 929.º, nºs. 1 e 2, do C. P. C. -.

Recebendo a herança o bem ou sua parte ou dinheiro, passa a ser titularidade da mesma herança o bem ou dinheiro, que depois podem ser partilhados entre os respetivos titulares.

Deste modo, para nós, a requerente podia propor a ação de divisão de coisa comum tal como o fez e intentando-a contra os requeridos que identificou."

*3. [Comentário] Se bem se percebe, a autora é, ao mesmo tempo, comproprietária e herdeira de um outro comproprietário do mesmo imóvel. Dado que a acção de divisão de coisa comum deve ser proposta por um dos comproprietários contra todos os demais comproprietários, isto significa que a acção devia ter sido proposta pela comproprietária contra... ela própria como herdeira de outro comproprietário.

Há, aliás, um conflito de interesses entre a autora como comproprietária e a autora como herdeira de outro comproprietário, porque o que ela receber numa dessas qualidades não pode receber na outra.

Nestes termos, se bem se percebe a situação, a acção não era admissível por violação do princípio da dualidade das partes, dado que a mesma pessoa deveria figurar nela como autora e como ré.
 
MTS