"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/11/2020

Jurisprudência 2020 (85)


Processo de inventário;
tornas; execução*

1. O sumário de RP 11/5/2020 (3519/18.3T8LOU-A.P1) é o seguinte:

I - No âmbito do processo de inventário se o devedor de tornas não procede ao seu depósito depois de ter sido reclamado o seu pagamento, o credor respectivo pode lançar da execução simplificada a que se refere o artigo 1378.º, nº 3 do CPCivil/61 (actual 1122.º, nº 2), mas limitado à venda dos bens que foram adjudicados àquele devedor e até onde seja necessário para o pagamento do seu crédito.

II - Porém, vendidos todos os bens que foram adjudicados ao devedor de tornas no âmbito do processo de inventário, e mostrando-se que o produto assim obtido é insuficiente para o pagamento da totalidade do crédito de tornas, o credor respectivo não fica impedido de recorrer à execução comum para obter o pagamento remanescente do seu crédito, servindo como título executivo a sentença homologatória de partilhas devidamente transitada em julgado, e onde podem ser penhorados outros bens do devedor além dos que no inventário lhe foram adjudicados, ou seja, bens próprios do mesmo.

III - A dívida de tornas, não sendo dívida da herança, goza, como qualquer outra, das mesmas garantias, isto é, pelo seu cumprimento respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora (artigo 601.º do CCivil).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar:

a)- saber se os credores de tornas, depois de terem recorrido ao procedimento próprio do processo de inventário e após serem vendidos todos os bens adjudicados ao devedor de tornas, sendo estes insuficientes para obter o pagamento da dívida de tornas, podem lançar mão do processo de execução comum para executar o património daquele devedor.

Como emerge da decisão recorrida, o tribunal a quo propendeu para o entendimento de que, após terem sido vendidos os bens adjudicados ao devedor de tornas no âmbito do processo de inventário, não pode o respectivo credor das mesmas recorrer à execução comum para se fazer pagar pelo remanescente, executando outros bens do património daquele.

Desse entendimento dissente a embargado recorrente, para quem se pode executar o património do devedor de tornas quando a venda dos bens que lhe foram adjudicados no processo de inventário se mostrem insuficientes para pagamento do seu crédito.

Quid iuris?

Importa, desde logo, precisar que o processo de inventário que correu termos e no qual se constituiu o direito a tornas do ora recorrente, encontrava-se sujeito à regulação prevista nos artigos 1326.º e ss. do anterior Código de Processo Civil, sendo, portanto, nesse quadro normativo adjectivo que a questão colocada terá de ser resolvida.

Como se evidencia dos autos o exequente ora recorrente instaurou a execução de que estes embargos são apenso tendo como título executivo a sentença homologatória devidamente transitada em julgado âmbito do processo n.º 588/14.9T8PNF, do juízo local cível de Penafiel, e da qual resulta a condenação do executado ora recorrido a pagar €30.625,00 de tornas ao exequente.

Também vem provado nos autos que o recorrente/exequente reclamou o pagamento das tornas no referido processo de inventário nunca tendo, porém, o executado/recorrido procedido ao seu depósito, procedimento esse que levou o recorrente, conjuntamente com restantes credores, a requererem no próprio processo de inventário a venda dos bens adjudicados ao executado/recorrido, o que foi concretizado na totalidade [...].

A questão que agora importa dilucidar é se, tendo os credores de tornas optado pelo recurso, no âmbito do processo de inventário, à venda de todos os bens adjudicados ao devedor de tornas, ainda assim podem recorrer à execução comum para executar, com base na sentença homologatória de partilhas, o património daquele devedor com vista a obterem o pagamento da totalidade do seu crédito.

Analisando.

No regime adjectivo aplicável ao inventário [No que respeita ao pagamento das tornas quer o regime jurídico do processo de inventário que consta da Lei 123/2013 de 5 de Março, quer o que consta do actual artigo 1122.º do CPCivil não instituíram qualquer inovação relativamente ao anteriormente previsto sobre esta matéria, por referência ao art.º 1378.º do anterior CPCivil] cuja sentença homologatória de partilha serve de título executivo à execução de que estes embargos são apenso, a fase da partilha começava com o despacho determinativo da forma da mesma, após o que a secretaria organizava o respectivo mapa, de harmonia com o mencionado despacho e o disposto nos artigos 1374.º e 1375.º do CPCivil.[...] [...]

Mas perguntar-se-á: na eventualidade de o produto da venda de todos os bens adjudicados ao devedor de tornas não for [sic] suficiente para o pagamento da totalidade do crédito de tornas, sempre o respectivo credor pode lançar mão da execução comum para executar o património do referido devedor com vista à satisfação total do crédito?

Cremos, salvo o devido respeito por entendimento diverso e plasmado na decisão recorrida, que a resposta a tal questão é positiva.

Não sofre contestação que a sentença homologatória de partilhas constituía à data, bem como hoje [alínea a), do nº 1, do artigo 703º do CPCivil][...], título executivo.

Ora, tendo o credor de tornas optado por aquela forma simplificada de execução no âmbito do inventário para se fazer pagar do seu crédito de tornas, tal procedimento não pode ser, como se refere na decisão recorrida, obstativo de, posteriormente, executar aquela decisão para se fazer pagar pela totalidade do seu crédito.

Com efeito, no citado artigo 1378.º, nº 3, previa-se apenas uma forma simplificada de execução, uma forma expedita de o credor de tornas satisfazer o seu direito, pois que lhe bastava apresentar requerimento no processo pedindo a venda de bens adjudicados ao devedor, não havendo citação para execução nem para nomeação de bens por parte do devedor, e portanto, só no âmbito desta forma simplificada é que os bens a indicar pelo credor para venda estavam limitados aos que em inventário foram adjudicados ao devedor.

Repare-se que o credor das tornas, notificado que fosse nos termos do artigo 1377.º, nº 1 para requerer a composição do seu quinhão ou reclamar o pagamento das tornas podia ainda tomar uma outra atitude: nada fazer.

Neste último caso, de acordo com o artigo 1378.º, nº 4, os tornas venciam os juros legais desde a data da sentença de partilhas e os credores podiam registar hipoteca legal sobre os bens adjudicados ao devedor ou, quando essa garantia se mostrasse insuficiente, requerer que fossem tomadas, quanto aos móveis, as cautelas prescritas no artigo 1384º.

Portanto, o credor de tornas que, notificado nos termos do artigo 1377.º, nº 1, nada fazia, não perdia o seu crédito.

Transitada em julgado a sentença homologatória da partilha, podia, quando o entendesse, desde que que obviamente não ocorresse a prescrição, com base nela, instaurar a competente execução, sendo que, até lá, facultava-lhe a lei que se prevenisse com as garantias previstas no artigo 1378.º, nº 4: hipoteca legal sobre os bens adjudicados ao devedor que dela possam ser objecto e prestação de caução, pelo devedor, para entrega dos móveis.

Ora, nesta situações como dizer que o credor ainda está limitado por executar apenas os bens que lhe foram adjudicados no âmbito do processo de inventário? E se tais bens já não fizessem parte do património do devedor de tornas?

Tal como bem se diz no acórdão da Relação de Guimarães de 28/10/2010 [...] a norma do artigo 1378.º não pretende regular matéria substantiva, é uma norma de natureza processual que regula uma forma simplificada de execução, e nada mais que isso.

Por assim ser não se pode sufragar o entendimento vertido na decisão recorrida de que a possibilidade de recurso a um ou outro procedimento para pagamento do crédito de tornas não é cumulativa, sendo antes alternativa, com a especificidade de o recurso a um dos referidos procedimentos simplificados do processo de inventário, nomeadamente a venda dos bens adjudicados ao devedor de tornas, ser excludente da possibilidade do recurso a acção/execução comum e de ser impeditiva da extensão da garantia patrimonial do crédito a todo o património do devedor de tornas que não respeite aos bens recebidos no inventário.

Com efeito, nada na norma do artigo 1378.º, nº 4 permite tirar essa asserção. O que se teve em vista foi apenas possibilitar, de forma expedita, ao credor de tornas satisfazer o seu direito impondo-lhe, todavia, como condicionante que essa execução estava restrita aos bens que no âmbito do inventário haviam sido adjudicado ao devedor de tornas.

Evidentemente que a referida norma está pensada, para os casos, que certamente serão a sua maioria, em que a venda dos referidos bens, ou parte deles, se mostra suficiente para que o crédito de tornas seja satisfeito, pode porém assim não suceder, como ocorreu no caso em apreço. E, sendo esse o caso, pode, efectivamente, o credor recorrer à execução comum para se fazer pela totalidade do seu crédito.

Na verdade, não vemos, seguindo-se o entendimento vertida na decisão recorrida, como essa norma processual, pode derrogar, o estatuído no artigo 601.º do CCivil que, no âmbito do Capítulo V relativo à Garantia Geral da obrigações, sob a epígrafe “Princípio geral” preceitua que: “Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios”.

Deste normativo resulta que todos os bens pertencentes ao devedor que sejam penhoráveis integram a garantia da obrigação, ressalvando-se os casos dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios, ou seja, aqueles casos em que a lei, dentro da massa geral dos bens pertencentes a determinada pessoa, singular ou colectiva, arreda parte deles para os submeter a uma afectação especial, conjunto de bens a que se dá o nome de património separado ou autónomo, de que são exemplo típico desta figura a herança e os bens comuns do casal, quando seja de comunhão o regime matrimonial de bens vigente entre os cônjuges.

Princípio geral que, aliás, tem também tradução no artigo 817.º do mesmo diploma legal em que, nos casos de incumprimento voluntário da obrigação, tem o credor direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor.

Daqui resulta que a dívida de tornas goza das mesmas garantias que qualquer outra dívida do mesmo devedor.

E o contra isso, não se argumente, como se fez no Ac. desta Relação de 09/05/2019[...] que aquela interpretação (que só os bens que foram adjudicados no processo de inventário é que podem responder pela dívida de tornas) é também a que melhor se coaduna com a circunstância da herança constituir um património autónomo.

É que, nestes casos, não estamos em presença de uma dívida da herança, não obstante a dívida de tornas se tenha constituído no âmbito e por causa da partilha do património hereditário, sendo que, só naqueles casos é que a lei determina no artigo 2071.º do CCivil que pelos encargos da herança, incluindo, como é evidente, os débitos do de cujus, apenas respondem os bens que a integram e não os restantes bens dos herdeiros, variando somente o ónus da prova da insuficiência dos bens hereditários, consoante a herança tenha sido aceite pura e simplesmente ou a benefício de inventário.

A obrigação do pagamento de tornas nasce com a licitação e consolida-se com a sentença homologatória da partilha constante do mapa (de partilha) que adjudica aos interessados os respectivos quinhões, reafirmando a obrigação de serem pagas as tornas aí consagradas (no mapa), condenando, implicitamente, o executado a pagar tais quantias.

Na verdade, no caso concreto, os factos provados revelam-nos que o executado/recorrido no âmbito do processo de inventário que correu termos licitou, em conferência de interessados, em bens cujo montante excedeu o valor do seu quinhão, constituindo-se devedor de tornas aos restantes interessados e também ao ora recorrente.

Notificado para pagar as tornas, o executado/recorrido não o fez, tendo aqueles interessados optado por requerer a venda dos bens que lhe haviam sido adjudicados, o que foi, efectivamente, feito em sede de processo de inventário, tendo o valor da venda dos bens que se conseguiu obter sido repartido proporcionalmente pelos credores das tornas.

E se o valor de tornas por eles recebido foi inferior ao valor a que a secretaria chegou no mapa de partilha, resultante da licitação feita em conferência de interessados, isso deveu-se única e exclusivamente à conduta do executado recorrido que licitou os bens em causa, certamente, por um valor superior àquele pelo qual vieram a ser vendidos em sede executiva no próprio processo.

Ora, assim sendo, não se vê como se possa falar em qualquer desequilíbrio na partilha de bens, pois que esta ocorreu de acordo com a pretensão dos interessados, e se o executado avaliou de forma deficiente o valor dos bens só dele se pode queixar."

*3. [Comentário] A RP decidiu bem.

A mesma solução encontra-se defendida em Teixeira de Sousa/Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil (2020), 133.

MTS