"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/11/2020

Jurisprudência 2020 (94)


Omissão de pronúncia;
nulidade do acórdão


1. O sumário de STJ 4/2/2020 (306.15.4T8AVR.A.P1.S1é o seguinte:

I - Muito embora os AUJ não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos assentos, as orientações interpretativas neles fixadas devem ser em regra seguidas pelos tribunais, a menos que razões ponderosas justifiquem a adoção de outro entendimento.

II - É o que sucede no caso dos autos em que, para além de se discutir a validade de contrato-promessa celebrado pelo autor com a sociedade ré insolvente (sendo os demais réus demandados na qualidade de fiadores desta), em que o administrador da insolvência não requereu a apensação dos autos ao processo de insolvência (tendo a massa insolvente contestado e invocado a invalidade da alegada substituição de uma das frações autónomas prometidas vender por falta de redução a escrito), sucedendo ainda que o crédito em causa nos autos já foi reclamado e reconhecido no âmbito da insolvência.

III - E, sobremaneira, pelo facto de o crédito reclamado já ter sido ali reconhecido sob a condição do desfecho desta ação.

IV - Não constitui nulidade o facto de as instâncias não terem incluído nos factos provados a alegada substituição de frações objeto do contrato-promessa, na medida em que nada foi alegado, bem pelo contrário, no sentido de tal ter sido reduzido a escrito, e face ao entendimento de que a validade da substituição dependeria da redução a escrito.

V - A falta de conhecimento no acórdão recorrido sobre o abuso de direito (da massa insolvente na invocação da invalidade da referida substituição), invocado na apelação, constitui nulidade que implica a remessa dos autos à Relação a fim de ali se conhecer de tal questão.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3) Em segundo lugar, invocam os recorrentes a nulidade do acórdão recorrido decorrente da falta de conhecimento da questão por eles suscitada na apelação relativa ao abuso de direito (vide conclusões 11ª e seguintes).

E isto porque, segundo os recorrentes, os mesmos haviam suscitado perante a Relação, no seu recurso de apelação - e mais propriamente nas respetivas conclusões 13ª a 16ª - a questão da existência de abuso de direito por parte da massa insolvente na invocação que fez da falta de redução a escrito (invocação essa em que a 1ª instância se baseara para decidir no sentido da improcedência da ação relativamente à fração “V”) – questão essa de que a Relação não chegou a conhecer.

Compulsados os autos, verifica-se que efetivamente na sua apelação os ora recorrentes suscitaram aquela questão (abuso de direito), conforme se alcança das conclusões 13º a 16º - conclusões essas reproduzidas no acórdão recorrido e formuladas nos seguintes termos:

“13.ª Por outro lado, a decisão recorrida surge na sequência do alegado pela massa insolvente na sua douta contestação, e que como exceção foi conhecida pela sentença recorrida, sendo a contestante sucessora da primeira ré, sucedendo-lhe nos seus direitos e obrigações.

14.ª Ora, tendo sido alegado pelo autor, como foi, que por ter alineado a terceiros a fração “R”, em claro incumprimento contratual, a primeira ré verbalmente propôs ao autor e este aceitou substituir as obrigações respeitantes a tal fração R por uma outra idêntica fração, no mesmo empreendimento, designada pela letra “V”, a alegação de tal exceção pela massa insolvente, configura um manifesto abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium” a que decisão recorrida deu ilegalmente cobertura, não conhecendo de tal abuso de direito apesar de oficiosamente se encontrar obrigada.

15.ª Efetivamente, não corresponde a boa-fé, a proposta da primeira ré em substituir as frações “R” pela “V” a que se refere o contrato-promessa junto como documento 7 e 8 à petição inicial, como forma de ultrapassar o seu próprio incumprimento por ter alienada a terceiros a fração “R”, para posteriormente vir alegar que o autor não possui qualquer documento relativamente à fração “V”, apesar desta lhe ter sido entregue pela primeira ré, e na detenção da qual o autor se mantém há mais de 10 anos, pelo que na sentença recorrida viola também o artigo 334.º do Código Civil.

16.ª Na verdade, a procedência da exceção alegada pela primeira ré, após a entrega da fração “V” ao autor que a administrou como muito bem entendeu por mais de uma década, sem qualquer oposição da primeira ré, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico desse direito, o que torna a decisão proferida clamorosamente injusta.”

E, conforme se alcança do acórdão recorrido, a Relação acabou por não conhecer desta questão do abuso de direito.

De resto, conforme do mesmo se alcança, ali apenas foram identificadas como questões decidendas as seguintes: “saber se a sentença é nula; se a instância deveria ter sido extinta por inutilidade superveniente da lide, em obediência ao Acórdão Uniformizador do STJ de 08/05/2013, e se o contrato-promessa é válido”.

Verifica-se assim, neste âmbito, a invocada omissão de pronúncia – omissão essa que integra a nulidade a que alude a al. d) do nº 1 do artigo 615º do CPC.

E por tal razão, impõe-se ordenar que os autos baixem à Relação a fim de, suprindo tal nulidade, ali se conhecer da questão do abuso de direito que foi invocada pelos ora recorrentes no seu recurso de apelação.

Procedem assim nesta parte e nesta conformidade ad conclusões recursórias.

4) Não obstante se impor a remessa dos autos à Relação a fim de ali se conhecer da questão do abuso de direito, afigura-se-nos que isso não deve influir no resultado das demais questões suscitadas e de que já supra conhecemos – impondo-se por isso confirmar desde já a decisão da Relação de não declarar a extinção da instância em relação à 1ª ré."

[MTS]