"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/09/2021

Jurisprudência 2021 (35)


Legitimidade processual;
legitimidade substantiva


1. O sumário de STJ 28/1/2021 (164/15.9T8VNF.P1.S2) é o seguinte:

I - A chamada legitimidade material, substantiva ou “ad actum”, consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.

II – Constando do contrato de cessão de créditos invocado pelos AA., que o crédito cedido é o que vier a resultar de uma acção de condenação, interposta pelo cedente (promitente comprador) contra os promitentes vendedores e não tendo a dita acção atingido o seu termo por aquele ter sido declarado insolvente e o administrador não ter querido prosseguir com a acção, tal cessão não confere ao cessionário, nem o direito de se substituir ao cedente naquela acção nem muito menos o direito de voltar a demandar o promitente vendedor.

III – Nestas circunstâncias o cessionário não é titular dos direitos que cabiam ao promitente comprador, já que nunca lhe foram cedidos e consequentemente não tem legitimidade substantiva para demandar os promitentes vendedores, por questões ligadas ao eventual incumprimento do contrato promessa, devendo estes serem absolvidos dos pedidos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Quanto à primeira questão importa lembrar que a legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou.

Da simples leitura da PI e do que dispõe o art.º 30º do CPC, em particular o seu nº 3 é absolutamente claro, até para um não jurista, que os AA. têm legitimidade processual. Como resulta das citadas normas o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, exprimindo-se este pela utilidade derivada da procedência da acção, e sendo considerados, na falta de indicação da lei em contrário, titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. Ora como decorre da PI, os aqui Autores recorridos são, indiscutivelmente os titulares da relação material controvertida tal como foi configurada por eles na referida peça processual.

Assim a alegada ilegitimidade processual activa dos AA., é por demais evidente que não tem o mínimo fundamento legal. Consequentemente improcede essa alegada excepção dilatória da ilegitimidade activa invocada pelos recorrentes.

Coisa diferente será a chamada legitimidade material, substantiva ou “ad actum” e que consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.

Os recorrentes também invocam essa alegada ilegitimidade substantiva e já o tinham feito na apelação, sendo que a Relação não acolheu a sua pretensão.

Vejamos então se os AA. possuem essa legitimidade substantiva.

Os AA. invocam como fonte dessa legitimidade ad actum um contrato de cessão de créditos celebrado entre a originária promitente compradora, a sociedade G.... (de que os AA. eram sócios maioritários) e os próprios AA., concomitantemente com um contrato de cessão das suas quotas naquela sociedade à sua mãe e, até então, consócia minoritária.

Decorre do referido contrato e encontra-se consignado nas al. P) e O) da factualidade provada que por via do mesmo, …« os aqui autores declararam assumir para si, em partes iguais, quaisquer obrigações que resultassem para a sociedade na decisão a proferir na acção, tendo ainda declarado que se obrigavam a cumprir a eventual condenação dessa sociedade, e que esta teria direito de regresso sobre eles por qualquer condenação que tivesse de cumprir, tendo também esse direito relativamente a custos implicados pela pendência da acção». E a « A sociedade aceitou a assunção da dívida e cedeu-lhes, na proporção de metade para cada um, qualquer eventual direito ou crédito que resultasse para a sociedade da referida acção judicial, o que a sociedade declarou também aceitar».

A acção em causa é a referida na al. K) dos factos provados, na qual a promitente compradora formula contra os RR., os seguintes pedidos:

«a) - reconhecerem resolvido em 02.06.09 o contrato promessa ora junto como doc. 1 por seu incumprimento culposo

ou quando assim se não entenda,

b) - reconhecerem o mesmo contrato resolvido por impossibilidade definitiva de cumprimento consequente à alienação do bem prometido vender a favor de terceiro

e, em qualquer dos casos de procedência do pedido

c) - pagarem à A. a quantia de duzentos e vinte mil euros correspondentes ao dobro do sinal que receberam da A. por via do mesmo contrato promessa

d) - pagarem à A. a quantia de€ 50.000,00 referentes aos custos e encargos assumidos e decorrentes do projecto e licenciamento da construção

e) - valor este acrescido de juros legais vencidos desde 02.06.09 ou 00.00.00 consoante a procedência do pedido principal ou subsidiário

f) - pagarem as custas e procuradoria».

Apesar do que foi consignado nas alíneas P) e O) da decisão de facto, corresponder ao que resulta do contrato a transcrição do que dele consta é mais impressiva e permite uma melhor compreensão do sentido do objecto da cessão.

Do contrato de cessão de quotas, alteração parcial do pacto social e cessão de créditos de 30 de dezembro de 2011[...], celebrado entre os AA. e a G.... [...] e no que tange à cessão de créditos consta o seguinte:

«….Disseram finalmente os outorgantes, sendo o segundo na indicada qualidade em que outorga [Procurador do sócio BB., autor na presente acção] :

Que o primeiro outorgante [AA., autor na presente acção] e o representado do segundo outorgante assumem em partes iguais, a partir desta data, com a aceitação da referida sociedade, todas as eventuais obrigações que decorram ou resultem para a citada sociedade da acção condenatória (sublinhado nosso) que corre termos no quarto juízo cível do Tribunal Judicial de …., sob o processo número quatro três cinco zero barra dez …, em que são réus CC. e mulher, DD., e EE., cabeça de casal na herança aberta por óbito de LL. e autora a dita Sociedade “G.... – Imobiliária, Lda, “ obrigando-se a cumprir a eventual condenação que daí resulte para a sociedade, tendo esta sociedade direito de regresso sobre o primeiro outorgante e sobre o representado do segundo outorgante por qualquer condenação que tenha de cumprir no âmbito deste processo (sublinhado nosso) bem como tem a dita sociedade direito de regresso sobre o sobre o primeiro outorgante e sobre o representado do segundo outorgante, por todos os custos e danos emergentes do referido processo judicial sendo que ficará a pertencer ao primeiro outorgante e ao representado do segundo outorgante, na proporção de metade para cada um deles qualquer eventual direito ou crédito que resulte para a sociedade da supra referida acção judicial.

Que a terceira outorgante [Anterior consócia dos AA. e a partir desta escritura de cessão de quotas, única sócia da Sociedade Grandelar], em nome da dita sociedade, na sua qualidade de única sócia e gerente aceita a assunção de obrigações e a transmissão de créditos eventualmente resultantes do exposto no parágrafo precedente.»

Do que acaba de transcrever-se resulta com absoluta clareza que a promitente compradora – a G.... - não cedeu nem quis ceder aos AA. a sua posição contratual no contrato promessa que celebrou com os RR.. nem lhes cedeu qualquer crédito consolidado que tivesse sobre os RR., naquela dita qualidade de promitente compradora. O que foi objecto de cedência foi sim um crédito litigioso (art.º 579º nº 3 do CC) reclamado na acção de condenação que corria termos sob o nº 4350/10…, no quinto Juízo Cível da Comarca de …. ou com mais propriedade o que resultasse do desfecho da dita acção. Esta não foi sequer uma cessão integral do eventual crédito litigioso, em termos de conferir aos aqui AA., a possibilidade de se substituir à G..... na sobredita acção. Na verdade os termos em que a cessão foi feita não consente essa amplitude à cedência, nem conferem tal direito aos cessionários, porquanto o eventual crédito que foi cedido pela G..... e aceite pelos AA, e o que foi assumido por estes em termos de eventuais obrigações por parte dos RR., perante a G... foi apenas o resultado do que viesse a ser decidido definitivamente na sobredita acção ou seja os aqui AA. teriam apenas direito, por força do dito contrato de cessão de créditos, a receber os créditos que resultassem da procedência da acção e teriam como obrigações o que dela também decorresse em termos de condenação (sendo certo que não havia pedido reconvencional) designadamente quanto a pagamento de custas e honorários ao mandatário da G.... .

Esta conclusão é completamente cristalina em face dos termos da cessão e daí que os aqui AA., não tivessem sequer requerido a sua habilitação como cessionários da G..... em acto seguido à dita cessão nem mesmo quando, escassos três meses depois de concluída a cessão, aquela sociedade foi declarada insolvente e o respectivo administrador não quis prosseguir com a referida acção o que determinou a extinção da respectiva instância. Ora com a extinção da instância naquela acção, por acto imputável ao A., extinguiu-se também o eventual direito dos AA.. Na verdade o seu direito dependia do que viesse a ser decidido naquela acção e na dita acção nada foi decidido e já nada pode vir a ser decidido, porquanto aos aqui AA. não foi sequer cedido o direito de prosseguir aquela demanda e muito menos o de demandar os RR, no âmbito do sobredito contrato promessa e o administrador da insolvência da G.... não quis prosseguir com a acção.

Assim sendo é obvio que os AA. não têm legitimidade substantiva para demandar os RR., pois não são titulares de qualquer direito decorrente do alegado incumprimento do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a G.... e os RR.

Estando demostrado que, pelo contrato de cessão acima mencionado, aos AA.. não foi cedido nenhum crédito que o cedente tivesse sobre os RR., relativo ao sobredito contrato promessa, aqueles não são titulares do direito que se arrogam para demandar os RR., e, portanto, não têm legitimidade substantiva, por não serem titulares da relação material controvertida invocada. A ilegitimidade substantiva activa, porque respeita ao mérito da causa, implica a improcedência da acção e a consequente absolvição dos RR., de todos os pedidos."

[MTS]