"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/09/2021

Jurisprudência 2021 (27)


Prova documental;
dever de auxílio do tribunal


1. O sumário de RG 18/2/2021 (740/20.8T8BRG.G1) é o seguinte:

I. A iniciativa da prova cabe, em princípio, à parte a quem aproveita o facto dela objecto, e não ao tribunal; e, por isso, o princípio do inquisitório não pode cometer ao juiz a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa, permitindo à parte contornar a preclusão processual decorrente da sua prévia inércia.

II. Não sendo directamente acessível à parte documento que contende com os factos previamente alegados, subsumíveis ao objecto do litígio, poderá o mesmo ser requisitado a terceiro, desde que o requerente dessa requisição alegue e justifique a respectiva inacessibilidade por si próprio.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"4.1.3. Prova documental - Documentos em poder de terceiros

Lê-se no art. 362.º do CC que prova «documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto».

Está-se perante uma noção ampla de documento, abrangendo um escrito, «uma fotografia, um disco granofónico, uma fita cinematográfica, um desenho, uma planta, um simples sinal convencional, um marco divisório, etc., etc.». O que se exige, porém, como essencial «à noção de documento é a função representativa ou reconstitutiva do objecto» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada,1987, pág. 321).

Mais se lê, no art. 436.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC, que «incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade», podendo essa requisição ser «feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros».

Contudo, desde cedo se entendeu que esta disposição legal só faria sentido relativamente àqueles elementos probatórias que a parte, por si mesma, não pudesse obter, necessitando por isso que o Tribunal, por meio de requisição oficial, ultrapassasse a respectiva impossibilidade.

Com efeito, «pode o juiz indeferir o requerimento se entender que a pretensão do requerente não tem razão de ser; é o caso de a parte pretender a junção de documento que ela própria possa obter.

Seria inadmissível que uma das partes requeresse, por exemplo, a notificação da parte contrária para juntar ao processo certidão de documento autêntico oficial ou extra-oficial; desde que o requerente tem a possibilidade de, por si, conseguir cópia do documento, não faz sentido que pretenda servir-se da cópia existente em poder da parte contrária» (Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, Coimbra Editora, Limitada, 1987, pág. 40, a propósito do preceito correspondente ao actual art. 429.º do CPC, sendo que a pág. 45 afirma que «tem cabimento aqui a mesma observação que fizemos a propósitos dos arts. 552º e 553º», uma vez que «o regime do art. 554º só tem razão de ser a respeito de documentos que o requerente não possa obter por si») (No mesmo sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 508 [...]).

Por fim, lê-se no art. 437.º do CPC que as «partes e terceiros que não cumpram a requisição incorrem em multa, salvo se justificarem o seu procedimento, sem prejuízo dos meios coercitivos destinados ao cumprimento da requisição».

4.1.4. Objecto da prova documental - Pressupostos de (in)deferimento

Precisando a eventual «necessidade para o esclarecimento da verdade» de documento a requisitar, lê-se no art. 341.º do CC que as «provas têm por objecto a demonstração da realidade dos factos»; e lê-se de forma conforme no art. 410.º do CPC que «a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova» [...].

Mais se lê, no art. 423.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC, que os «documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes», podendo ainda sê-lo «até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final», pese embora parte seja condenada «em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado».

Lê-se ainda, no art. 443.º, n.º 1 do CPC, que, juntos «os documentos e cumprido pela secretaria o disposto no artigo 427.º [notificação à parte contrária], o juiz, logo que o processo lhe seja concluso, se não tiver ordenado a junção e verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários, manda retirá-los do processo e restituí-los ao apresentante, condenando este a pagamento de multa nos termos do Regulamento das Custas Processuais».

Logo, dir-se-á que nos pressupostos de admissão de prova documental se contam a sua pertinência para o objecto da prova a produzir - «os temas da prova enunciados», ou os factos necessários «ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio» que seja lícito ao Tribunal conhecer, nos termos do art. 5.º do CPC -, e o seu carácter não dilatório.

Com efeito, e face «ao atual CPC, a atividade de instrução não se limita aos factos alegados pelas partes, podendo dela se extraírem factos instrumentais, segundo o disposto na alínea a), do n.º 2 do artigo 5.º do CPC e ainda factos complementares e concretizadores daqueles [essenciais] que hajam sido alegados pelas partes», embora sempre e só dentro «das balizas da causa de pedir e da matéria de exceção que constam dos articulados» (Ac. do TCAS, de 19.10.2017, Ana Celeste Carvalho, Processo n.º 1087/16.0BELRA-A).

Precisando, então, a «pertinência» para o objecto do processo, dir-se-á que, na sua decisão de admissão, ou de não admissão, deste meio de prova (como de qualquer outro), «o Tribunal (…) deve ter sempre presente a ideia de que, na admissão dos meios de prova, não pode rejeitar um qualquer dos meios indicados pelas partes, com base na convicção pré-formada da sua relevância/eficácia para prova de determinado facto em concreto» (Ac. da RG, de 16.02.2017, Pedro Alexandre Damião e Cunha, Processo n.º 4716/15.9T8VCT-A.G1, sendo a aqui Relatora respectiva 1.ª Adjunta).

Com efeito, o que a lei, cautelarmente, lhe impõe é que apenas recuse a diligência probatória em causa se entender que a mesma é impertinente (art. 6.º, n.º 1, do CPC), deferindo-a se entender que não é impertinente (art. 476.º, n.º 1, do CPC): o juízo de certeza, para a rejeição, terá de ser o da impertinência, bastando porém para a admissão que aquele não se verifique, isto é, que seja apenas verosímil a pertinência da diligência probatória requerida.

Logo, «não pode entender-se que uma diligência de prova é impertinente se o facto que com ela se pretende provar - ou efectuar a respectiva contra prova - pode ser provado por outro meio de prova ou que o meio requerido não o prova de forma plena ou que este iria fazer prolongar a duração do processo: no nosso entender, uma diligência de prova só pode considerar-se impertinente se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende provar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa» (Ac. da RG, de 20.10.2011, Carlos Guerra, Processo n.º 3361.0TBBCL-B.G1[...]) [...]

Precisando agora a natureza «não dilatória», dir-se-á que, necessariamente, qualquer diligência de prova implica a dilação do subsequente fim do processo, pelo que não pode a lei ter aqui querido impedir esse natural protelamento, mas sim querido impedir o deferimento de diligência prova que apenas tivesse esse propósito.

Com efeito, não só o Tribunal está proibido de «realizar no processo actos inúteis» (art. 130º do CPC), como deve «dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, (…) recusando o que for (…) meramente dilatório» (art. 6º, nº 1 do CPC), desse modo actuando o seu dever de gestão processual, aqui claramente em nome do princípio da economia processual.

4.1.5. Divórcio sem consentimento do outro cônjuge

Lê-se no art. 1781.º do CC (com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro) que são «fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:

a) A separação de facto por um ano consecutivo;
b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento».

Defende-se, assim, que com entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro [...], se operou uma verdadeira alteração do paradigma legal relativamente ao divórcio: passou-se de um sistema de compromisso, em que a componente dominante era a do divórcio por constatação de ruptura do casamento, mas em que se continuava a dar à culpa um lugar apreciável, para um outro, em que a culpa na ruptura assume um papel absolutamente residual, importando apenas aquela efectiva ruptura. [...]

Lê-se, ainda, no art. 1788.º do CC, que o «divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as excepções consagradas na lei».

Por fim, lê-se no art. 1789.º do CC que os «efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges» (n.º 1), sendo que, se «a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado» (n.º 2).

De novo se acentua a ideia de que só existe verdadeiro casamento enquanto se mantiver a comunhão de vida entre os cônjuges (por isso se admitindo a retroacção dos efeitos do divórcio ao momento em que a mesma cessou).

4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

4.2.1. Concretizando, verifica-se que, tendo a Autora (T. C.) e o Réu (A. L.) casado entre si em 15 de Julho de 2000, aquela intentou a presente acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge; e para a instruir juntou apenas prova documental (pertinente à celebração do dito casamento e ao nascimento das duas filhas comuns).

Verifica-se ainda que, frustrada a tentativa de conciliação ou de conversão do divórcio para mútuo consentimento, e não tendo o Réu contestado os autos, o Tribunal a quo anunciou o seu propósito de conhecer imediatamente do mérito da causa, face à tal ausência de outra prova.

Verifica-se, por fim, que a Autora nada lhe requereu então, nomeadamente a concessão de prazo para, ela própria, diligenciar pela junção aos autos de certidão judicial que atestasse a pendência de processo-crime por violência doméstica, intentado por ela contra o seu marido; ou, face à sua insuficiência económica (que justificara a concessão do benefício de apoio judiciário à mesma) a requisição oficiosa da dita certidão pelo Tribunal a quo.

Ora, não o tendo feito, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não se crê estar o Tribunal a quo obrigado, sem outra alegação adicional nos autos, a requisitar oficiosamente o comprovativo da pendência do dito processo-crime (cujo concreto teor, desfecho e trânsito em julgado se desconhecem).

Com efeito, dir-se-á (e absolutamente sem qualquer juízo de valor associado) que não raro a existência de uma queixa-crime por violência doméstica não é, por si só, reveladora da quebra definitiva da comunhão de vida entre os cônjuges, isto é, que posteriormente à sua apresentação deixou de haver (de forma continuada, ou meramente actual) uma comunhão de vida entre eles, própria de um casamento.

Reconhecendo-o, sentiu a Autora (T. C.) na sua petição inicial a necessidade de, não só alegar a existência de «episódios frequentes de violência física e, ainda mais frequentes, de violência psicológica e verbal», bem como fruto de um deles a apresentação de «queixa crime que corre termos no DIAP - 2ª secção de Braga, processo número 4491/19.8 T9BRG», como alegar ainda que ela e o Réu (A. L.) «deixaram de conviver entre si como cônjuges», deixaram «de prestar assistência e cooperação recíprocas», passaram «a viver cada um a sua vida, de forma separada, embora na mesma casa, rompendo com todos os laços e deveres conjugais recíprocos», inexistir da sua parte «qualquer vontade de reatamento da vida conjugal», e que «já não nutre qualquer sentimento pelo Réu».

Ora, para que o Tribunal a quo, oficiosamente, tivesse requisitado certidão judicial de pendência do dito processo crime por violência doméstica, teria que ter previamente conhecido (ou sido denunciado nos autos) o exacto teor de eventual sentença condenatória ali já proferida (e transitada em julgado), por forma a ter-se com ela demonstrada a concomitante «ruptura definitiva do casamento». É que, sendo então indiscutivelmente revelada a quebra de deveres conjugais, e presumida a ruptura definitiva do casamento, poderia esta última não ter ocorrido, nomeadamente pelo perdão da Ofendida, ou pelo reatamento posterior - e ainda que temporário - da vida conjugal.

4.2.2. Concretizando novamente, dir-se-á ainda que, sendo a instauração em juízo de uma acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge inequivocamente reveladora da vontade do seu autor de não permanecer casado, não se tem da mesma forma por certo que a prova desse facto corresponda, necessária e absolutamente, à prova daquele outro, isto é, da já verificada e actual ruptura definitiva do casamento [Neste sentido, Ac. da RL, de 23.11.2011, Maria José Mouro, Processo n.º 88/10.6TMFUN.L1-2].

Acresce que, reconhecendo-se que nos encontramos no âmbito da vida familiar e doméstica, em que, tal como a Autora o sustenta nas suas alegações de recurso, «nem sempre é fácil conseguir testemunhas que sustentem a ruptura definitiva (…) da relação conjugal», certo é que a dificuldade referida não pode equivaler à sua simples dispensa, sabido ainda que o Tribunal (a quo e ad quem) se poderá valer de presunções e de factos instrumentais, para a prova daquele outros, essenciais.

Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela improcedência do recurso da Autora (que não fica, por isso, impedida de intentar nova acção de divórcio, quiçá então simultaneamente fundada na separação de facto por um ano consecutivo, e/ou instruída com adicional prova, quiçá parcialmente coincidente com a produzida ou a produzir no processo crime por si invocado, e para além dele próprio)."


[MTS]