"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/09/2021

Jurisprudência 2021 (33)


Responsabilidade civil;
culpa; matéria de direito*


1. O sumário de STJ 28/1/2021 (140/14.9TNLSB.L1.S1) é o seguinte:

I. No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, à luz do disposto no artigo 486.º do CC, a omissão negligente do dever objetivo de cuidado existe no caso de ser lícito afirmar que o agente previu, como possível, o resultado lesivo que se veio a verificar, confiando, de forma leviana, descuidadaou por imperícia, que esse resultado não ocorresse, só não tendo, por isso, adotado as providências necessárias a evitá-lo, ou seja, agindo sob a forma de negligência consciente.

II. Outrossim, será de considerar verificada omissão negligente no caso de o agente não ter previsto a possibilidade de ocorrência de um tal resultado, quando podia ou devia prevê-la, se tivesse agido com a diligência exigível, incorrendo assim em negligência inconsciente.

III. Em ambas essas hipóteses, incumbe ao lesado o ónus de provar os factos que consubstanciem a alegada violação negligente do dever objetivo de cuidado como factos constitutivos que são da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do preceituado no n.º 1 do art.º 342.º do CC.

IV. Centrando-se a divergência das instâncias, em sede de apreciação da alegada violação do dever objetivo de cuidado, em ilações presuntivas extraídas da factualidade provada em contraponto com os factos não provados, à luz das regras da experiência, e não em sede do quadro normativo aplicável, não cabe ao tribunal de revista sindicar tal apreciação, a menos que ocorra manifesta ilogicidade no uso desses juízos presuntivos.

V. Vedada a sindicância do tribunal de revista sobre o juízo presuntivo da Relação e afastada a hipótese de os factos provados traduzirem, por si só, a possibilidade de o agente putativo ter previsto o sinistro com a diligência devida, não se mostra lícito concluir pela ocorrência de erro de direito no sentido de que aquele omitiu comportamento culposo em violação do dever objetivo de cuidado.

VI. Uma situação de força maior constitui, em regra, causa excludente da própria voluntariedade do facto ilícito comissivo ou omissivo, retirando ao agente qualquer domínio da vontade sobre o mesmo.

VII. Verificada a inexistência de comportamento omissivo relevante pelo facto de o mesmo não ser devido por não ter sido previsto pelo agente putativo nem este ter podido nem devendo prevê-lo, torna-se despiciendo considerar a omissão justificada em virtude de circunstâncias de força maior.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tendo em conta a diretriz constante do art.º 10.º, n.º 3, do RETCPL no sentido de o parqueamento de contentores no Terminal do Porto de Leixões ser feito por forma a conseguir as melhores condições de otimização do espaço e das operações e considerando que a R. não dispõe de espaço nesse Terminal para armazenar todos os contentores à sua guarda no solo, além de o volume diário de movimentação de cargas também o não permitir (ponto 1.26), é de ter por normal e adequado o procedimento de empilhamento de contentores que vem ali sendo praticado.

A crítica feita pela 1.ª instância no sentido de que as diretrizes de otimização do espaço e das operações portuárias constantes do art.º 10.º, n.º 3, do RETCP são puramente economicistas e funcionais, descurando por completo os interesses dos donos da mercadoria, parece desmerecer, de algum modo, o facto de se tratar não de uma situação de armazenamento propriamente dito dos contentores, mas apenas do seu parqueamento e acondicionamento, por curtos períodos de tempo, de forma a agilizar as operações de embarque e desembarque, com o menor custo possível para todos os interessados, condizente com o espaço portuário disponível e com o volume diário de movimentação de cargas.

Dentro de tais condicionalismos, os critérios adotados pela R., tendo em conta o destino da mercadoria, o navio de embarque e o peso do contentor, referidos no ponto 1.6 dos factos provados, parecem adequados como procedimento normal e habitual de parqueamento e acondicionamento dos contentores em trânsito, não se traduzindo, sem mais, em violação do dever objetivo de cuidado, segundo os ditames das leges artis, por parte daquela operadora portuária.

Resta saber se a divulgação pelos serviços da proteção civil e da comunicação social das previsões meteorológicas do IPMA, incluindo o alerta laranja para a madrugada de 19/01/2013, na região do grande Porto, de chuva e vento moderado a forte com rajadas na ordem dos 70 km/h, representava um cenário que exigisse uma conduta, por parte da R., no sentido de adotar uma forma de parqueamento ou acondicionamento dos contentores diversa do habitual, ainda que com os graves inconvenientes decorrentes da carência de espaço disponível no Terminal em referência e da inerente perturbação na movimentação do volume diário das cargas ali em trânsito.

Trata-se, portanto, de aferir, em tais circunstâncias, a alegada violação do dever de cuidado da R. no parqueamento e acondicionamento do contentor … da segurada da A. e que àquela fora confiado no dia 18/01/2013.

Com efeito, impendia sobre a R. como operadora portuária, o dever de garantir a incolumidade do referido contentor no contexto daquele parqueamento, na medida em que previsse ou tivesse possibilidade de prever as ocorrências que pudessem afetar tal incolumi-dade.

Nessa perspetiva, à luz do disposto no artigo 486.º do CC, a omissão negligente desse dever de cuidado existirá no caso de ser lícito afirmar que, perante as sobreditas previsões meteorológicas, a R. previu, como possível, o resultado que se veio a verificar, confiando, de forma leviana, descuidada ou por imperícia, que esse resultado não ocorresse, só não tendo, por isso, adotado as providências necessárias a evitá-lo, ou seja, agindo sob a forma de negligência consciente[...].

Outrossim, será de considerar verificada omissão negligente no caso de a R. não ter previsto a possibilidade de ocorrência de um tal resultado, quando podia e devia prevê-la se tivesse agido com a diligência exigível, incorrendo assim em negligência inconsciente[...].

Em ambas essas hipóteses, incumbia à A. o ónus de provar os factos que consubstanciem ou indiciem a alegada violação negligente do dever de cuidado imputada à R. como factos constitutivos que são da responsabilidade civil extracontratual em apreço, nos termos do preceituado no n.º 1 do art.º 342.º do CC.

Ora dos factos provados não se extrai, com a mínima segurança, que a R. tenha sequer previsto a ocorrência do sinistro em causa, não se mostrando, para tanto, suficientes as meras previsões meteorológicas do IPMA, seguidas da sua divulgação geral, para a madrugada do dia 19/01/2013, na região do grande Porto, de chuva e vento moderado a forte, com rajadas na ordem dos 70 km/h, para mais tendo a intempérie provocado apenas a queda de três contentores num total de alguns milhares. Mesmo, na 1.ª instância, foi admitido tratar-se de omissão “eventualmente inconsciente”.

Importará, pois, saber se, ainda assim, a R. podia ou devia ter previsto essa eventualidade. É esta ponderação que aqui está em causa e que deve ser equacionada em função do circunstancialismo apurado e à luz das regras da experiência comum.

Foi nessa linha que a 1.ª instância considerou não se poder aceitar que, em caso de intempéries marcadas por chuvas e ventos fortes, previamente previstas pelo IMPA e difundidas pela Proteção Civil com alertas laranja para a região do grande Porto, naquela madrugada, durante o período de inatividade laboral, a R. não tenha revisto os critérios de armazenamento para acautelar os riscos de uma situação extraordinária, mantendo o parqueamento antes realizado assente em critérios puramente funcionais/organizacionais, conservando um contentor com 12 toneladas de peso a 8 metros de altura, em cima de outros três.

Porém, diversamente, a Relação considerou que as condições atmosféricas, conforme os factos apurados, não eram de molde a tornar previsível, aos olhos de um operador portuário médio, que um contentor com 12 toneladas de peso a 8 metros de altura, em cima de outros três, poderia ser arrastado pelo vento e projetado ao solo, tanto mais que não se provou que tenha sido divulgada qualquer particular orientação da ANPC, dirigida às entidades ou operadores portuários face às previstas condições meteorológicas, e que os contentores não constituíam equipamentos especialmente vulneráveis à ação dos ventos como as gruas e guindastes habitualmente utilizadas nas operações portuárias.

Neste quadro, a divergência das instâncias centra-se precisamente nas ilações presuntivas extraídas da factualidade provada em contraponto com os factos não provados, à luz das regras da experiência, e não propriamente em sede do quadro normativo aplicável, não cabendo a este tribunal de revista sindicar tal apreciação, a menos que ocorra manifesta ilogicidade no uso desses juízos presuntivos (art.º 674.º, n.º 3, CPC).

Neste particular, o que se constata é que, a 1.ª instância se norteou por uma abordagem de pendor algo generalizante, sob a consideração de que a R. manteve “o parqueamento antes realizado assente em critérios puramente funcionais/organizacionais”, mas sem uma ponderação concreta do alcance das previsões meteorológicas divulgadas – “chuva e vento moderado a forte, com rajadas na ordem dos 70 km/h” – com a viabilidade prática de a R. poder alterar a disposição e o acondicionamento dos milhares de contentores em trânsito que se encontravam parqueados no referido Terminal, limitando-se a afirmar que, no contexto envolvente descrito (sem precisar), a R. podia ter evitado o evento, ou pelo menos tentado minimizar os seus efeitos, caso tivesse adotado uma conduta medianamente diligente, sem equacionar por que modo viável o poderia ter feito, face à previsão meteorológica difundida.

Ao invés, a Relação sopesou os aspetos mais concretos da situação envolvente, realçando, por um lado, os condicionamentos decorrentes do espaço existente no Terminal e da forma usual de empilhamento dos contentores e, por outro, a previsão de um estado de tempo de chuva e vento moderado a forte, com rajadas na ordem dos 70 km/h - a intensidade máxima instantânea (o pico) das rajadas de vento na ordem dos 110 a 120 km/h, não constante daquelas previsões, só ocorreram no final da manhã do dia 19 -, daí inferindo que tais circunstâncias não faziam prever, a um operador portuário médio, que um contentor com 12 toneladas de peso a 8 metros de altura, em cima de outros três, pudesse ser arrastado e projetado para o solo, considerando ainda que só foram arrastados três contentores e não outros que, com elevada probabilidade, se encontrariam ali depositados e também empilhados.

Neste conspecto, não se afigura que essa análise presuntiva da Relação padeça de ilogicidade, muito menos manifesta, que cumpra censurar em sede de revista, nem que os factos provados, sem intermediação presuntiva, revelem, por si só, a possibilidade de a R. ter previsto a ocorrência do sinistro, usando da diligência devida.

Significa isto que, vedada que está a sindicância deste Tribunal sobre o juízo presuntivo da Relação e afastada a hipótese de os factos provados traduzirem, por si só, a possibilidade de a R. ter previsto o sinistro com a diligência devida, não se encontra base para concluir pelo invocado erro de direito no sentido pretendido pela Recorrente de que a R. omitiu comportamento culposo em violação do dever objetivo de cuidado, ao manter o parqueamento e acondicionamento do contentor em referência perante as previsões meteorológicas então difundidas.

Termos em que não merece censura a conclusão da Relação no sentido de ter por não demonstrado que “a R. TCL tenha agido ilicitamente e com culpa, infringindo um dever legal de conduta, ou que tenha contribuído, com uma conduta indevida e omissiva, para o derrube do contentor em questão sob a força do vento forte que soprou na madrugada do dia 19.1.2013.”"

*3. [Comentário] A conclusão que consta do acórdão não levanta problemas, mas, salvo o devido respeito, a mesma coisa não pode ser dito do iter decisório. 

Salvo melhor opinião, a questão de saber se o operador judiciário actuou com culpa -- isto é, se lhe era exigível que previsse a possibilidade de o contentor ser derrubado pelo vento -- é uma questão de direito que nada tem a ver com o "erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa" previsto no art. 674.º, n.º 3, CPC. Portanto, a apreciação daquela culpa pertence à competência específica do STJ.

Quer dizer: o que o STJ tinha de apreciar era se, em função da prova produzida, o juízo de negligência feito pela Relação era correcto. Não era solicitado ao STJ que reapreciasse essa prova, pelo que é deslocada qualquer referência ao art. 674.º, n.º 3, CPC.


MTS