"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/09/2021

Jurisprudência 2021 (36)


Presunção iuris tantum;
ilisão*


1. O sumário de STJ 28/2/2021 (12674/16.6T8LSB.L1.S1é o seguinte:

I - Presunção é uma ilação que se tira de um facto conhecido, através de um nexo lógico baseado em regras de carácter científico ou de normalidade em função de critérios de causalidade, contiguidade ou semelhança o qual permite formular um juízo de probabilidade qualificada.

II - Da presunção legal “juris tantum” há que distinguir as situações de “dispensa ou liberação do ónus da prova'” na primeira há uma facilitação da prova, mas não uma dispensa do ónus da prova, pois este se transfere para o facto base; na segunda, a parte é dispensada de qualquer ónus probatório, uma vez que perante determinadas circunstâncias e de forma automática, por força da lei, se tem determinado facto como provado, se não se provar o contrário.

III - A boa-fé decorrente da posse titulada, estabelecida no art.º 1260.º, n.º 2, do CC, não configura uma presunção legal “juris tantum” mas antes uma dispensa ou liberação do ónus da prova.

IV - Na presunção legal “juris tantum” é o legislador que, desde logo, formula, em termos gerais e abstractos, aquele juízo de probabilidade qualificada.

V - Na presunção judicial a formulação daquele juízo de probabilidade qualificada é deixada ao julgador em função das particularidades do caso concreto.

VI - Fundando-se a presunção legal “juris tantum” em critérios de carácter geral e abstracto, não se vislumbra qualquer incompatibilidade em que o juízo de probabilidade qualificada que lhe está subjacente seja afastado se as particularidades do caso concreto lograrem corromper aquela probabilidade qualificada, por se ter tornado, em face daquelas particularidades e excepcionando a generalidade comum, mais provável a ocorrência do contrário; pelo que é admissível a prova por presunção judicial do facto contrário do estabelecido numa presunção legal.

VII - Do facto de entre o filho (enquanto único herdeiro de seu pai, ex-cônjuge da mãe) e a mãe ter sido efectuada, em Abril de 2006, a partilha dos bens comuns do casal dissolvido em Junho de 2004, em que todos os bens relacionados (maioritariamente imóveis, com valor atribuído superior a € 400 000) foram adjudicados à mãe tendo o filho prescindido de tornas, quando ambos sabiam desde Dezembro de 2004 que o autor intentava ser judicialmente reconhecido como filho do pai e ex-cônjuge dos réus é conforme com o direito probatório, porque sustentada num nexo lógico justificativo de um juízo qualificado de certeza, retirar a ilação da intenção de obviar às consequências da eventualidade daquele intentado reconhecimento da paternidade.

VIII - Essa actuação dos réus configura-se como acto deceptivo com o intuito de prevenir, numa lógica de minimização de danos, os efeitos nefastos que para o réu poderiam advir da contingência de ter de dividir com o autor o acervo patrimonial da herança de seu pai, predeterminando essa partilha para ter uma finalidade transcendente à mera separação de meações, violadora de normas imperativas, pelo que tal partilha é nula, conforme o disposto no art. 281.º do CC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os Recorrentes imputam ao acórdão recorrido a violação do direito probatório porquanto ao confirmar a decisão da 1ª instância considerando como provado os pontos 13º e 14º do elenco factual (“Ao celebrarem a escritura de partilha, referida em 7º, os réus tiveram intenção de afastar o autor de nela poder intervir”; “E impedir o acesso do autor à meação do GG.”) com base numa presunção judicial:

- violou a força probatória da certidão de nascimento do Autor que até 2009 exibia outra paternidade que não a do ‘de cujus’;

- violou a presunção legal constante do art.º 1260º, nº 2, do CCiv;

- tal presunção padece de ilogicidade manifesta porquanto insusceptível de se apoiar em qualquer máxima da experiência ou juízo de probabilidade qualificada.

A força probatória da certidão de nascimento do Autor, decorrente do disposto no art.º 3º do CRegCivil, impede que se reconheçam factos sujeitos a registo em contrário do que consta do registo (sem prejuízo da impugnação dos mesmos através das acções próprias). Mas isso não implica que não se possam reconhecer situações fácticas contrárias ou marginais a essa situação (e.g. a posse de estado, a reputação como filho ou o parentesco enquanto impedimento dirimente relativo – art.º 1603º do CCiv) ou psicológicas por referência a situações divergentes da situação registral, designadamente atinentes ao planeamento e execução de operações de ‘prevenção ou diminuição de danos’ em função da eventualidade de ocorrência de alteração daquela situação registral.

Daí que apesar de não ser reconhecida ao Autor qualquer relação de filiação com GG. até 2009, altura em que tal filiação foi inscrita no registo, isso não impede nem é incompatível com o reconhecimento de intencionalidades comportamentais dos Réus em função da eventualidade da ocorrência de uma futura alteração registral.

O art.º 1260º, nº 2, do CCiv determina que “a posse titulada presume-se de boa-fé”, ou seja, e conforme o nº 1 do mesmo artigo, aquela em que “o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem”.

Segundo os Recorrentes trata-se de uma presunção legal, com força probatória plena, que só podia ser elidida através da prova do contrário (art.º 350º, nº 2, do CCiv), através de meio de prova com força igual ou superior ao daquela presunção legal; consequentemente a má-fé é insusceptível de ser demonstrada por presunção judicial.

Presunção é uma ilação que se tira de um facto conhecido, através de um nexo lógico baseado em regras de carácter científico ou de normalidade em função de critérios de causalidade, contiguidade ou semelhança (‘máximas da experiência’, ‘id quod plerunque accidit’) que permite formular um juízo de probabilidade qualificada (cf. LUIS FILIPE PIRES DE SOUSA, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª ed., pg.55, ss.), para firmar um facto desconhecido (art.º 349º do CCiv).

Essa ilação pode ser deixada ao critério do julgador (presunção judicial), mas por vezes é o próprio legislador que a leva a cabo, estabelecendo de antemão na lei essa presunção (presunção legal).

A presunção judicial cede perante a mera contraprova (art.º 346º do CCiv); ou seja, mediante a criação de dúvida quanto à probabilidade qualificada da ilação. Já a presunção legal (art.º 350º, nº 2, do CCiv) só cede mediante a prova do contrário, de não ser verdadeiro o facto presumido (presunções ‘juris tantum’), e no caso de a lei o não proibir (presunções ‘juris et de jure’).

Da presunção legal ‘juris tantum’ há que distinguir as situações que o art.º 344º, nº 1, do CCiv, designa como de ‘dispensa ou liberação do ónus da prova’ (‘relevatio ab onere probandi’).

Na presunção legal ocorre uma situação de facilitação da prova; o beneficiário da presunção apenas tem de provar o facto base da presunção, tido por de demonstração mais fácil, e do qual o legislador faz decorrer, automaticamente, o estabelecimento do facto presumido; ficando por conta da contraparte o ónus da prova do contrário. A inversão do ónus da prova decorrente da presunção (art.º 350º, nº 1, CCiv) depende, no entanto, da prova do facto base; há uma facilitação da prova, mas não uma dispensa do ónus da prova.

Já no caso da dispensa ou liberação do ónus da prova a parte é dispensada de qualquer ónus probatório, uma vez que, por força da lei, perante determinadas circunstâncias, e de forma automática, se tem determinado facto como provado, salvo se se provar o contrário. Não há, no caso, qualquer exigência de prova relativamente à parte beneficiária da dispensa, uma vez que, verificada a circunstância da previsão legal, o ónus da prova recai imediatamente sobre a contraparte; a lei admite desde logo como exacto o facto respectivo e impõe à parte contrária o ónus da prova do contrário (cf. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed.-reimpressão, 1981, pgs.. 248-249, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pgs. 215-216, VAZ SERRA, Provas (Direito Probatório material), 1962, pgs. 131-132, RITA LYNCE DE FARIA, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pgs. 816-818).

Como exemplo de caso de dispensa ou liberação do ónus da prova RITA LYNCE DE FARIA aponta o art.º 779º do CCiv segundo o qual o prazo se tem por estabelecido a favor do devedor quando se não mostre de outra forma; MANUEL DE ANDRADE e ALBERTO DOS REIS apontam, precisamente, a presunção de boa fé na posse (loc. cit.) como um caso de dispensa ou liberação do ónus da prova. Também ANTUNES VARELA / MIGUEL BEZERRA / SAMPAIO E NORA (Manual de Processo Civil, 2º ed. Revista e actualizada, 1985, pg. 466) identificam o nº 2 do art.º 1260º do CCiv como sendo um caso de dispensa ou liberação do ónus da prova (se bem que a pgs. 500-501 identifiquem a mesma norma como uma presunção). Por outro lado, CASTRO MENDES (Direito processual Civil, vol. II, 1987, pg. 696) afirma que «a lei prevê a presunção mais como uma dispensa de prova (…) que como um meio de prova».

Com efeito, a boa-fé na posse titulada não surge, em nosso modo de ver, como uma verificação de probabilidade qualificada, baseada num nexo lógico decorrente da demonstrada existência de título, de que o adquirente da posse no momento da aquisição ignorava que afectava o direito de outrem (de tal forma que para o efeito irrelevam as vicissitudes factuais e psicológicas que originaram e contextualizam esse título; “independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico”, estatuiu o art.º 1259º do CCiv), mas antes como efeito automático da circunstância da existência de título. Da circunstância de a posse se basear num modo legítimo de adquirir não se infere (presume) a honestidade dessa aquisição, antes se tem (impõe), inexorável e automaticamente, a mesma por verificada, salvo prova, a cargo da contraparte, do contrário. O título da posse (apesar de o art.º 1259º, nº 2, do CCiv exigir a sua prova) não surge, desse modo, configurado como um facto base de presunção, mas apenas como uma característica da posse, que releva para determinar o prazo de usucapião (artigos 1294º a 1296º do CCiv).

Não consagrando o nº 2 do art.º 1260º do CCiv uma presunção legal ‘juris tantum’ mas antes uma dispensa ou liberação do ónus da prova, não se coloca a questão da possibilidade de a prova do contra facto presumido ser efectuada através presunção judicial.

Mas ainda que assim não fosse, não se nos afigura de aceitar a doutrina segundo a qual a prova do contrário exigida para elidir uma presunção legal ‘juris tantum’ é insusceptível de ser feita por presunção judicial, de força probatória inferior (prova bastante) à força probatória de presunção legal (prova plena).

A presunção legal resulta de um juízo de probabilidade reforçada formulado pelo legislador e, consequentemente, formulado em termos abstractos e genéricos. No entanto, porque “não há regra sem excepção”, podem ocorrer situações cujos concretos contornos fácticos contrariem manifestamente o que abstracta e genericamente se tem como o curso normal das coisas. A circunstância de habitual e reiteradamente um determinado facto estar associado a outro, e com base nessa circunstância o legislador consagrar que a prova de um deles faz presumir o outro, não implica necessariamente que sempre tenha de ser assim; daí que a própria presunção admite ser afastada pela demonstração da insubsistência da inferência em que se baseia. E não se descortina qualquer contradição em essa insubsistência resultar dos concretos contornos fácticos da situação em apreço; de levar o julgador a inferir que o que, abstracta e genericamente, é recorrente ocorrer, em face do específico contexto fáctico ocorrido naquela concreta situação (que descaracteriza o facto base ou o nexo lógico inerente), efectivamente não ocorreu. Ou seja, de através de uma presunção judicial provar o contrário do provado por presunção legal (trilhando o mesmo caminho, LUIS FILIPE PIRES DE SOUSA, opus cit., pg. 125).

A própria lei nos dá uma indicação nesse sentido quando estabelece (art.º 351º do CCiv) que a presunção judicial é admissível quando é admissível a prova testemunhal. Não sofre dúvida que, no caso, era admissível a demonstração da má-fé através de prova testemunhal (vindo a entender-se que a expressão “outro meio com força probatória plena” constante do nº 2 do art.º 393º do CCiv refere-se ao acordo das partes e à confissão e não já a presunções legais, que não são meio de prova, mas sim método de prova).

Conclui-se, pelo exposto, que não estava vedado à Relação o recurso a presunção judicial para prova da intencionalidade dos Réus aquando da realização da escritura de partilha em causa nos autos.


*3. [Comentário] a) O STJ concluiu bem, mas, salvo o devido respeito, de forma equivocada.

b) No acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] não se nos afigura de aceitar a doutrina segundo a qual a prova do contrário exigida para elidir uma presunção legal ‘juris tantum’ é insusceptível de ser feita por presunção judicial, de força probatória inferior (prova bastante) à força probatória de presunção legal (prova plena)".

Esta afirmação não é feliz pelo seguinte:

-- A ilisão de uma presunção iuris tantum pressupõe a prova do facto contrário do facto presumido (art. 347.º CC)

-- Para a ilisão da presunção iuris tantum não basta a contraprova, dado que esta se destina apenas a tornar duvidoso o facto presumido (art. 346.º CC);

-- Assim, nenhuma prova bastante -- como é a que decorre da contraprova -- pode ser considerada suficiente para ilidir uma presunção iuris tantum;

-- Logo, não é correcto concluir que a prova plena decorrente da presunção iuris tantum pode ser ilidida pela prova bastante da presunção judicial.

c) A confusão talvez nasça da circunstância de se atribuir à presunção judicial o valor de prova bastante. Não pode ser assim, porque a presunção judicial não é um meio de prova (e, portanto, não tem um valor probatório próprio), mas antes uma inferência realizada a partir de um facto probatório. 

É também precisamente por isso que nada impede que, através de uma presunção judicial, se possa inferir o facto contrário do facto presumido. Isto é, no entanto, coisa completamente diferente de se afirmar que uma prova bastante (decorrente de uma contraprova) é suficiente para ilidir uma presunção iuris tantum.

MTS