"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/09/2021

Jurisprudência 2021 (39)


AECOP;
compensação; reconvenção


1. O sumário de RL 23/2/2021 (72269/19.0YIPRT.L1-7) é o seguinte:

I. No que tange à admissibilidade da invocação da compensação de créditos invocada pelo requerido no âmbito do regime do Decreto-lei nº 269/98, de 1.9, perfilam-se três teses:

a) A da inadmissibilidade da reconvenção uma vez que tal não se coaduna com a simplicidade de tramitação e celeridade que o legislador pretendeu imprimir a esta forma processual;

b) A da admissibilidade da dedução da compensação, mas como exceção perentória sob pena de ser coartado um meio de defesa ao requerido;

c) A da invocação da compensação de créditos por via da dedução de reconvenção, devendo o juiz, se necessário, fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal para ajustar a respetiva tramitação à dedução do pedido reconvencional.

II. Adere-se à terceira posição porquanto: é a solução que resulta da conjugação do Art. 549º, nº1 com o Art. 266º, nº2, al. c); permite a apreciação numa única ação das questões que, doutra forma, teriam de ser apreciadas em duas ações (cf. Art. 729º, al. h)); a imediata apreciação da compensação evita que o compensante suporte o risco de insolvência da contraparte; conforma-se melhor com o princípio da igualdade das partes; o legislador quis facilitar a compensação; é a posição que mais se conforma com o espírito do atual processo civil, o qual dá prevalência às decisões de mérito sobre as decisões formais, recorrendo para tal designadamente aos princípios da gestão processual e da adequação formal.

III. Ocorrendo um erro na qualificação do meio processual utilizado e na formulação do mesmo na medida em que o requerido deduziu a compensação de créditos como exceção, cabe ao juiz corrigir oficiosamente o erro e proferir o necessário e concomitante despacho de aperfeiçoamento no sentido do apelante/requerido cumprir as normas atinentes à dedução de reconvenção (Arts. 193º, nº3, 590º, nº3 e 583º do Código de Processo Civil).


2. Na fundamentação ao acórdão afirma-se o seguinte:

"Estes autos têm origem em requerimento de injunção, emergente de transação comercial, em que a requerente peticiona o pagamento de € 6.519 de capital, acrescendo juros. Houve oposição, razão pela qual o requerimento foi apresentado à distribuição.

Nos termos do Artigo 17º, nº1, do Decreto-lei nº 269/98, de 1.9, «Após a distribuição a que se refere o nº1 do artigo anterior, segue-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº4 do artigo 1º e nos artigos 3º e 4º.» Nos termos destas disposições, não está prevista expressamente a admissibilidade de reconvenção.

Atento este quadro legal, existem três posições quanto à admissibilidade da reconvenção no âmbito do regime do Decreto-lei nº 269/98, de 1.9.

Para uma primeira corrente, que se funda numa interpretação mais literal do regime, seguindo o procedimento de injunção os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contratos não é admissível reconvenção uma vez que tal não se coaduna com a simplicidade de tramitação e celeridade que o legislador pretendeu imprimir a esta forma processual. Neste sentido, vejam-se: Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.1.2008, Sacarrão Martins, 10606/2007, de 5.7.2018, Carlos Oliveira, 87709/17, de 5.2.2019, Carlos Oliveira, 75830/18 (este acessível em www.colectaneadejurisprudencia.com ) ; Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 30.5.2019, Isabel Imaginário, 81643/18, de 23.4.2020, Francisco Matos, 90849/19; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24.1.2018, Carlos Querido, 200879/11, de 7.10.2019, Carlos Querido, 4843/19; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.12.2018, Luísa Ramos, 47652/18.

Para uma segunda corrente, neste tipo de processos é admissível a dedução da compensação, mas como exceção perentória sob pena de ser coartado um meio de defesa ao requerido. Neste sentido, vejam-se: Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.7.2019, Ramos Lopes, 109506/18, de 5.3.2020, Ramos Lopes, 104469/18, de 5.11.2020, Lígia Venade, 9426/20; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.1.2018, Maria João Areias, 12373/17, de 10.12.2019, Vítor Amaral, 78428/17; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9.3.2020, Lina Batista, 21557/18. Na doutrina, cf. Rui Pinto, “A Problemática da Dedução da Compensação no Código de Processo Civil de 2013”, publicado no blogue IPPC, p. 19.

Teixeira de Sousa, “AECOPs e compensação: que tal simplificar o que é simples?”, 15.5.20 [...], critica com pertinência esta segunda posição nestes termos:

«A proposta que, dentro de um espírito de back to the basics, agora se deixa é simplificar o que é simples. Em concreto, o que se propõe é que a compensação deve ser deduzida por via de reconvenção e que o devido contraditório do autor pode ser feito em articulado próprio.
 
Para se chegar a esta solução basta aplicar a lei (nomeadamente, os art. 266.º, n.º 2, al. c), e 584.º, n.º 1, CPC, ex vi do art. 549.º, n.º 1, CPC) e respeitar o princípio da igualdade das partes em processo civil (art. 4.º CPC). É simples por isto mesmo: resulta da lei. Não precisa de nenhuma argumentação destinada a demonstrar que afinal o que decorre do CPC não é aplicável.

Em contrapartida, defender que nas AECOPs a compensação deve ser deduzida por via de excepção cria o seguinte dilema:

-- Ou, tal como na solução da dedução da compensação ope reconventionis, se admite um articulado de resposta do autor, e, então a solução é puramente nominalista;

-- Ou, se se entende que a dedução da compensação por via de excepção, se destina a não permitir o exercício do contraditório do autor em articulado próprio, então a solução é manifestamente inconstitucional, porque viola o princípio da igualdade das partes (art. 4.º CPC): enquanto o crédito alegado pelo autor é contestado num articulado próprio, o crédito invocado pelo réu é contestado no início da audiência final; ora, como é claro, se a lei permite a escolha da AECOP pelo autor, não é certamente "em troca" de uma diminuição das garantias do seu contraditório.

Este aspecto tem passado completamente despercebido aos defensores da dedução da compensação por via de excepção, mas é crucial. O art. 4.º CPC impõe expressamente que o tribunal assegure um estatuto de igualdade substancial entre as partes. Ora, o que resulta da orientação de que a compensação deve ser deduzida por via de excepção? Conhece-se a resposta: que o contraditório do autor quanto ao crédito alegado pelo réu tem um regime diferente daquele que vale para o crédito alegado pelo autor contra o réu. Enfim, um claro desrespeito do comando do art. 4.º CPC e uma clara violação do princípio da igualdade das partes.»

Para afastar esta segunda posição, é também pertinente a argumentação de Teixeira de Sousa, “AECOPs e compensação”, 26.4.2017, publicada no mesmo blogue, neste sentido:

«Uma solução alternativa a esta consistiria em defender que a compensação (que é uma forma de extinção das obrigações) deveria ser invocada por via de excepção. No entanto, contra esta solução pode invocar-se o seguinte:

-- A solução não tem qualquer apoio legal; como se disse, o regime da reconvenção consta das disposições gerais e comuns do CPC, pelo que é aplicável a qualquer processo; uma diferenciação quanto à forma de alegação da compensação seria, por isso, contra legem;

-- A solução comunga de todos os inconvenientes da dedução da compensação por via de excepção; um dos mais significativos é o de que, atendendo a que a decisão sobre as excepções peremptórias não fica abrangida pelo caso julgado material (cf. art. 91.°, n.° 2, CPC), se o contracrédito invocado na AECOP pelo demandado vier a ser reconhecido nessa acção, não é possível invocar a excepção de caso julgado numa acção posterior em que se peça a condenação no pagamento do mesmo contracrédito e, se o contracrédito alegado pelo demandado na AECOP não vier a ser reconhecido nessa acção, ainda assim é possível procurar obter o seu reconhecimento numa acção posterior; qualquer destas soluções é absurda (sendo, aliás, por isso que a reconvenção como forma de alegar a compensação judicial é totalmente correcta, porque é a única que evita as referidas consequências).»

Para uma terceira posição, embora a compensação de créditos, face à redação do art. 266º, nº 2, al. c) do CPC, tenha sempre de ser operada por via da reconvenção, não admissível numa ação especial de cumprimento de obrigações pecuniárias, por razões de justiça material, não pode ser coartada ao requerido a possibilidade de, nessas ações, invocar a compensação de créditos por via da dedução de reconvenção, devendo o juiz, se necessário, fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal para ajustar a respetiva tramitação à dedução do pedido reconvencional – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.10.2018, Cristina Coelho, 102963/17. Este acórdão foi subscrito pelo ora relator e pela ora 1ª adjunta, não havendo razões para alterar o entendimento assumido no mesmo.

Na doutrina e no sentido da admissibilidade da reconvenção, releva a posição de Teixeira de Sousa, “AECOPs e compensação”, 26.4.2017, publicada no blog do IPPC:

«Tendo presente que, no actual CPC, a compensação deve ser deduzida por via de reconvenção (cf. art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC), tem vindo a discutir-se a aplicação deste regime às acções declarativas especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (conhecidas vulgarmente através do acrónimo AECOPs e reguladas pelo regime constante do anexo ao DL 269/98, de 1/9).

Aparentemente, não deveria haver nenhuma dúvida sobre a solução a dar ao problema acima enunciado. As AECOPs são um processo especial, pelo que, como qualquer processo especial, são reguladas tanto pelas disposições que lhes são próprias, como pelas disposições gerais e comuns (art. 549.°, n.° 1, CPC). Atendendo a que a admissibilidade da reconvenção se encontra regulada no art. 266.° CPC e considerando que este preceito se inclui nas disposições gerais e comuns do CPC, parece não se suscitar nenhumas dúvidas quanto à sua aplicação às AECOPs.

Contra esta solução poder-se-ia invocar que o regime estabelecido no art. 549.º CPC quanto ao direito subsidiariamente aplicável aos processos especiais não vale para os processos especiais "extravagantes", isto é, para os processos regulados fora do CPC. É claro, no entanto, que não é assim. Em particular quanto às AECOPs, basta atentar em que o regime que consta do regime anexo ao DL 269/98 é insuficiente para as regular, pelo que é indiscutivelmente necessário aplicar, em tudo o que não esteja previsto nesse regime, o que consta do CPC.

Contra aquela solução poder-se-ia também alegar que o regime das AECOPs -- nomeadamente, a sua tramitação simplificada e célere -- não é compatível com a dedução de um pedido reconvencional pelo demandado. Sob um ponto de vista teórico nada haveria a objectar a este argumento, dado que a inseribilidade na tramitação da causa constitui um requisito (procedimental) da reconvenção. A ser assim, haveria que concluir que a reconvenção não é admissível nas AECOPs.

Contra este argumento existe, no entanto, um contra-argumento de muito peso. É ele o seguinte: se não se admitir a possibilidade de o réu demandado numa AECOP invocar a compensação ope reconventionis, essa mesma compensação pode vir a ser posteriormente alegada pelo anterior demandado como fundamento da oposição à execução (cf. art. 729.°, al. h), CPC); ora, como é evidente, não tem sentido coarctar as possibilidades de defesa do demandado na AECOP e possibilitar, com isso, a instauração de uma execução que, de outra forma, poderia não ser admissível. A economia de custos na AECOP traduzir-se-ia afinal num desperdício de recursos, ao impor-se que aquilo que poderia ser apreciado numa única acção tivesse de ser decidido em duas acções.

Sendo assim, há que concluir que o demandado numa AECOP pode invocar a compensação por via de reconvenção. Se for necessário, cabe ao juiz fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal (cf. art. 6.º e 547.º CPC) para ajustar a tramitação da AECOP à dedução do pedido reconvencional.»

Passamos a extratar o âmago da argumentação do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.10.2018, Cristina Coelho, 102963/17:

«Refletindo sobre esta matéria, escreveu-se no Ac. do STJ de 6.6.2017, P. nº 147667/15.5YIPRT.P1.S2 (Júlio Gomes), em www.dgsi.pt, que “… nos parece exato que, se a reconvenção for considerada inadmissível por só se preverem no processo especial dois articulados tal não prejudicará a Recorrente em termos de caso julgado ou de efeito de caso julgado já que a apreciação material do Tribunal não incidirá sobre o pedido reconvencional, não se produzindo, tão-pouco, qualquer efeito preclusivo. No entanto, tal não significa que não haja efetivamente um prejuízo para a Recorrente. Muito embora a compensação seja fundamentalmente uma causa de extinção das obrigações, a verdade é que ela permite a quem a invoca com sucesso não suportar (total ou parcialmente consoante o seu âmbito) o risco de insolvência da contraparte. Se a compensação não for admitida neste caso a Recorrente terá que pagar neste momento a quantia que porventura deve (suponhamos a quantia pedida de (€4265,41) para depois exigir em outra ação o pagamento dos €50.000,00 (se a contraparte então os puder pagar); mas se a compensação for admitida não se expõe (ou não se expõe na mesma medida) a esse risco de insolvência, ficando satisfeita imediatamente na parte em que houver compensação. Por outro lado, a solução encontrada pelo Tribunal recorrido gera, efetivamente, uma desigualdade – aliás, o Acórdão recorrido afirma expressamente que “a reconvenção é admissível quando a injunção, por força do valor do pedido, é superior à metade da alçada da Relação, não o sendo na hipótese inversa, que é aquela que aqui acontece” (f. 104). Ou seja, porque um comerciante exigiu o pagamento de €4265,41, o outro comerciante não poderia opor-lhe no processo em que a injunção se convertesse por haver oposição o seu crédito de €50.000,00, mas se fosse o credor de €50.000,00 o autor da injunção – e entre comerciantes a injunção não está sujeita a limites de valor – o credor de €4265,41 já poderia invocar a compensação. Ora não se vislumbra qualquer motivo de justiça material para tal desigualdade. Acresce que o legislador civil quis facilitar a compensação, como resulta de no nosso sistema legal a compensação ser possível mesmo com créditos ilíquidos. A celeridade é sem dúvida importante, mas não deve olvidar-se que a celeridade é uma condição necessária, mas não suficiente, da justiça. Em suma, não é porque uma decisão judicial é célere que a mesma é justa”.

(…) afiguram-se-nos pertinentes os argumentos aduzidos no referido Ac. da RP de 13.6.2018, no sentido de na AECOP ser admissível a reconvenção como forma de possibilitar ao requerido invocar a compensação de créditos.

A saber, “… serão razões de justiça material as que deverão ser convocadas a favor da admissibilidade da reconvenção, como forma de viabilizar a compensação de créditos, mesmo quando o inicial procedimento de injunção se reporta a quantia inferior a metade da alçada do tribunal da relação. É, com efeito, de questionar que a reconvenção seja de admitir quando o procedimento de injunção tem valor superior a metade da alçada do tribunal da relação, por força da sua transmutação em processo comum, e não o seja quando o seu valor é inferior àquele marco. Por outro lado, também não faz sentido que se retire ao réu a possibilidade de numa ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias (AECOP) invocar a compensação de créditos por via da dedução de reconvenção, quando essa mesma compensação poderá ser depois por ele invocada como fundamento de oposição à execução, conforme decorre do art. 729º, al. h) do Cód. do Proc. Civil. Como pertinentemente afirma Miguel Teixeira de Sousa está a permitir-se a instauração de uma execução que, de outra forma, poderia não ser admissível e, deste modo, a economia de custos que se visa com uma AECOP acabaria afinal por converter-se num desperdício de recursos. É que em vez de uma única ação teremos duas. Prosseguindo, há ainda a referir que, se nos encontramos numa forma de processo em que é vedada a dedução de reconvenção, tal ficou a dever-se à autora que unilateralmente escolheu essa via processual, sendo ainda de registar que o contra-crédito invocado pela ré se situa no âmbito da mesma relação jurídica que foi alegada pela autora”.

Sufragando-se este entendimento, e o de que deve “o juiz fazer uso dos seus poderes de adequação formal e também de gestão processual (art. 6º do Cód. do Proc. Civil) de forma a ajustar a tramitação da AECOP à dedução do pedido reconvencional”, entendemos dever admitir-se a reconvenção, na parte em que a requerida invocou a compensação de créditos, procedendo a apelação, devendo prosseguir seus termos a ação, dando-se à requerente a possibilidade de, no tocante à matéria da reconvenção, apresentar articulado de resposta.»

Releva ainda a argumentação confluente expendida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.11.2020, Márcia Portela, 66423/19:

«(…) o próprio artigo 266.º, CPC, no seu n.º 3 prevê uma situação em que se permite ao Juiz ultrapassar a limitação decorrente da diferença de forma de processo.

Assim, de acordo com este normativo, Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde o pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.

O artigo 37.º, que versa sobre os obstáculos à coligação, diz nos n.ºs 2 e 3 e ss.:

2 - Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.
3 - Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar o processado à cumulação autorizada.

A perda da celeridade que caracteriza a ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias de valor não superior a € 15.000,00 é compensada pela obtenção de uma decisão mais justa e que propicia ganhos processuais, evitando quer a instauração de uma ação autónoma para o réu satisfazer o seu contra-crédito, quer a oposição à execução para compensação do seu crédito (artigo 729.º, alínea h), CPC), aqui com o inconveniente de apenas se poder compensar crédito de valor igual ou inferior ao crédito exequendo, por não ser admissível o pedido reconvencional nos embargos de executado.»

No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.6.2020, Micaela Sousa, 77375/19, também se alinhou nesta orientação, enfatizando-se que:

«(…) na vigência de um Código de Processo Civil que erigiu como postulado essencial o dever de gestão processual que recai sobre o juiz e o princípio da adequação formal (art.ºs 6º e 547º do CPC) - princípios que não podem deixar de abranger os processos especiais -, deve aceitar-se, com arrimo, aliás, precisamente no art.º 547º do CPC, que é a tramitação das AECOPs que tem de se adaptar ao exercício dos direitos das partes em juízo, e não este exercício que pode ser coartado por aquela tramitação.

Deste modo, em consonância com a argumentação expendida por Miguel Teixeira de Sousa que acima se deixou transcrita, entende-se que, devendo ser dada a possibilidade ao demandado de, no âmbito de uma ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, invocar a compensação de créditos por via de reconvenção - caso em que o juiz deve fazer uso dos seus poderes de adequação formal e de gestão processual -, de igual modo deverá este fazer uso de tais poderes para ponderar da admissibilidade ou não da reconvenção deduzida pelo réu (ainda que não para efeitos do exercício da compensação), de tal modo que lhe incumbe, não só avaliar do preenchimento dos requisitos vertidos no n.º 2 do art. 266º do CPC, como, mais do que isso, ponderar, precisamente, se deve autorizar a sua dedução, nos termos do art. 266º, n.º 3 do CPC.

Com efeito, tal como o afirma expressamente Miguel Teixeira de Sousa, os fundamentos para a admissibilidade da dedução da reconvenção para fazer valer a compensação valem para todos os outros casos em que, nos termos do art.º 266.º, n.º 2, CPC, a reconvenção seja admissível na AECOP pendente – cf. neste sentido, AECOPs e Compensação, Blog IPPC, 26-04-2017 https://blogippc.blogspot.com

Conforme já referido, adere-se a esta terceira posição mais permissiva, correspondendo à que mais se conforma com o espírito do atual processo civil, o qual dá prevalência às decisões de mérito sobre as decisões formais, recorrendo para tal designadamente aos princípios da gestão processual e da adequação formal.

Quer no articulado de oposição quer no pedido formulado nesta apelação, o apelante insiste na tese da admissão da compensação como exceção, tese a que não aderimos. Todavia, há que atentar que o pedido deve ser interpretado e convolado em função do efeito prático-jurídico pretendido. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.4.2016, Lopes do Rego, 842/10:

«Na praxis judiciária, encontramos posições antagónicas sobre a possibilidade de convolação jurídica quanto ao pedido formulado – opondo-se um entendimento mais rígido e formal, que dá prevalência quase absoluta à regra do dispositivo, limitando-se o juiz a conceder ou rejeitar o efeito jurídico e a específica forma de tutela pretendida pelas partes, sem em nada poder sair do respetivo âmbito; e um entendimento mais flexível que – com base, desde logo, em relevantes considerações de ordem prática – consente, dentro de determinados parâmetros, o suprimento ou correção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efetivamente adequado à situação litigiosa (vejam-se, em clara ilustração desta dicotomia de entendimentos, a tese vencedora e as declarações de voto apendiculadas ao acórdão uniformizador 3/2001).

Note-se que (como salientamos no estudo O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas, págs. 781 e segs.) a prevalência de uma visão que tende a sacralizar a regra do dispositivo, dando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da ação inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a ação correta, em que formule o – diferente – pedido juridicamente certo e adequado, por tal ação ser objetivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspetivação e enquadramento jurídico da pretensão); ora, sendo atualmente o principal problema da justiça cível o da morosidade na tutela efetiva dos direitos dos cidadãos, não poderá deixar de causar alguma perplexidade esta inelutável necessidade de repetir em juízo uma ação reportada a um mesmo litígio substancial, fundada exatamente nos mesmos factos e meios de prova, só para corrigir uma deficiente formulação jurídica da pretensão, através da qual se visa alcançar um resultado cujo conteúdo prático e económico era inteiramente coincidente ou equiparável ao pretendido na primeira causa…(…)

Considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado.»

O efeito prático-jurídico que o apelante pretende é que sejam apreciados e decididos os contra-créditos que invoca contra a requerente, sendo indiferente que tal apreciação ocorra sob a égide da figura processual da exceção ou da reconvenção, sendo esta atualmente obrigatória para estas situações (cf. Art. 266º, nº2, al. c), ex vi Art. 547º do Código de Processo Civil).

Ocorrendo um erro na qualificação do meio processual utilizado e na formulação do mesmo, cabe ao juiz corrigir oficiosamente o erro e proferir o necessário e concomitante despacho de aperfeiçoamento no sentido do apelante/requerido cumprir as normas atinentes à dedução de reconvenção (Arts. 193º, nº3, 590º, nº3 e 583º do Código de Processo Civil; cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2020, 2ª ed., Almedina, pp. 246-247, 325 e 701). Após o acatamento de tal despacho de aperfeiçoamento, deverá o tribunal a quo prosseguir com a apreciação da admissibilidade da reconvenção (cf. Art. 266º, nº2, al. c) e nº3) e subsequentes termos do processo."


[MTS]