"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/09/2021

Jurisprudência 2021 (46)


Execução;
legitimidade passiva; garantia real


1. O sumário de RL 25/2/2021 (8263/19.1 T8SNT-A.L1-8) é o seguinte:

I - A aquisição da nua propriedade de um prédio, em processo de insolvência, não podia ter como consequência - como, por lapso, teve - o cancelamento da hipoteca, na sua plenitude.

II - Nos termos do disposto no artº 824º, nº 2 do CC, aplicável às insolvências por efeito do artº 165º do CIRE, com a venda no processo de insolvência ao credor reclamante o que se extingue é a hipoteca incidente sobre o bem adquirido, in casu, a nua propriedade, subsistindo a hipoteca sobre o usufruto. Não podia, pois, a hipoteca sobre o usufruto extinguir-se, uma vez que não foi objeto de apreensão e venda no processo de insolvência e, consequentemente, foi incorretamente lavrado o cancelamento (oficioso) da hipoteca registada sob a Ap. 76 de 10/02/2006 (sublinhe-se, sobre a propriedade plena).

III - Em resultado da referida venda a hipoteca registada sobre a propriedade plena ficou automaticamente limitada, no que se refere ao seu objeto, ao direito de usufruto, por força da compressão decorrente da caducidade do direito real de garantia sobre a nua propriedade.

IV - Mantendo-se o registo de hipoteca sobre o usufruto há que concluir que a executada/embargante continua a ter legitimidade (passiva) para ser demandada pelo exequente, no que respeita à hipoteca que tem por objeto o usufruto, nos termos do disposto no artº 54º, nº 2 do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A única questão a decidir é verificar se a embargante tem legitimidade passiva para o prosseguimento da execução.

A apelante pugna pela revogação e substituição da sentença recorrida por decisão que julgue os embargos improcedentes por não se encontrar demonstrada a ilegitimidade passiva da executada.

A sentença recorrida concluiu pela impossibilidade superveniente de o exequente demandar a executada, em virtude de ter deixado de possuir título material de constituição da garantia no património daquela, por efeito do cancelamento do registo da hipoteca.

As partes não discutem a existência do direito de crédito na titularidade da exequente sobre a sociedade Frutas S. S.A., por força de sucessivas cessões, nem que esse crédito foi garantido por hipoteca sobre o prédio misto, sito em G., Rua …, descrito na CRP de M. sob o n.º 423 e inscrito na matriz urbana sob o art.º 1786 (antigo 686) e na matriz rústica sob o art.º 30, Secção nº 1A., constituída por A.F., com autorização expressa do seu marido J.S., registada em 10/02/2006.

A.F. e J.S. celebraram com Ana S. uma escritura de doação de usufruto vitalício do referido imóvel (escritura de 15/05/2013), registado em 27/05/2013.

A devedora Frutas S. S.A. veio a ser declarada insolvente, tendo sido encerrado o processo por insuficiência da massa. A.F. e J.S. foram declarados insolventes, por sentença de 15/12/2015 (proc. nº 1111). Nos referidos processos foi reconhecido o direito de crédito da ora exequente.

No processo de insolvência nº 1111 veio a ser apreendida, em 24/05/2016, a favor da massa insolvente, a nua propriedade do mencionado prédio.
 
À data da instauração da execução – 18/05/2019 – mantinha-se a situação fática descrita, mormente o registo da hipoteca sobre o imóvel.
 
A hipoteca é a garantia que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, pelo valor de certas coisas imóveis ou a elas equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros (artº 686º do CC). A hipoteca carece de ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes (artº 687º CC).

”(…) encontrando-se os bens hipotecados na posse de terceiro (seja por ter sido ele quem constituiu a hipoteca, seja por ter sido ele quem adquiriu da mão de terceiros ou do devedor a coisa hipotecada), o possuidor tem legitimidade (passiva) para ser executado na execução hipotecária, apesar de não ser devedor do exequente.” [Antunes Varela, Das Obrigações em Geral,  vol. II, pág. 535]

É a exceção à regra da legitimidade consagrada no atual artº 54º, nº 2 do CPC, que dispõe que “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.”

A hipoteca, enquanto direito real de garantia, goza do direito de sequela sobre a coisa.

O princípio da indivisibilidade da hipoteca consagrado no artº 696º do CC significa, nas palavras de Antunes Varela,[Ob. citada, pág. 539-540] que “se a hipoteca recair sobre dois ou mais prédios homogéneos, a garantia recai por inteiro sobre cada um deles e não apenas parcelarmente, ou fragmentariamente, em proporção ao valor de cada um deles (…) E o mesmo regime se aplica à hipótese de o prédio onerado com a hipoteca vir a ser dividido em dois ou mais prédios distintos. Sobre cada uma das partes do imóvel dividido ou fraccionado recai, por inteiro, o encargo da dívida assegurada.” Com este princípio “estabelece-se, supletivamente, que a garantia conserva o seu objeto originário, ainda que se verifique divisão da coisa ou do crédito, ou este se encontre em parte extinto, assim como, sendo oneradas várias coisas, cada uma delas responde pela dívida inteira” [Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 802)]

À data da instauração da execução é inquestionável que se mostravam verificados os requisitos exigidos pelo artº 54º, nº 2 do CPC para que a executada fosse demandada com vista ao pagamento da quantia exequenda, pois apesar de ser terceira face à dívida exequenda, não tinha essa posição em relação ao processo executivo.

Posteriormente à instauração da execução ocorreu o seguinte:

- no âmbito do processo de insolvência nº 1111 foi adjudicado ao credor reclamante, ora exequente, a nua propriedade do imóvel, aquisição formalizada mediante escritura de compra e venda outorgada em 08/07/2019, e registada em 02/09/2019 (Ap. 314);

- a Conservatória do Registo Predial, oficiosamente, em 02/09/2019, lavrou averbamento à Ap. 314, de cancelamento do registo da hipoteca (Ap. 76 de 10/02/2006);

- a CRP lavrou averbamento de retificação à Ap. 314 – de cancelamento da Ap. 76 de 10/02/2006 – inscrevendo o cancelamento do averbamento oficioso anteriormente efetuado à Ap. 314 e inscrevendo quanto à Ap. 76 “cancelada quanto à nua propriedade”.

Verifica-se, assim, que decorrente da retificação efetuada se mantém o registo da hipoteca sobre o usufruto. E de outro modo não poderia ser, pois a aquisição da nua propriedade, no processo de insolvência, não podia ter como consequência, como, por lapso, teve, o cancelamento da hipoteca, na sua plenitude. Da constituição do usufruto e respetivo registo em data posterior ao registo da hipoteca não pode resultar perda de garantia para o credor hipotecário, que foi constituída sobre a propriedade plena, atentos os princípios da indivisibilidade da hipoteca (artº 686º do CC.) e da anterioridade do registo (artº 6º, nº 1 do CRP).

É que ao invés do defendido pela apelada na petição de embargos e nas contra-alegações, o que se extingue com a venda em execução, por força do disposto no artº 824º, nº 2 do CC, aplicável às insolvências por efeito do artº 165º do CIRE, é a hipoteca incidente sobre o bem adquirido. E dúvidas não existem de que, tendo sido apreendida na insolvência apenas a nua propriedade, apenas esta foi adquirida pelo ali credor reclamante e aqui exequente. Com a venda da nua propriedade no processo de insolvência ao credor reclamante extinguiu-se a hipoteca incidente sobre a parte do objeto da venda – a nua propriedade – isto é, subsiste a hipoteca sobre o usufruto. Não podia, pois, a hipoteca sobre o usufruto extinguir-se, uma vez que não foi objeto de apreensão e venda no processo de insolvência e, consequentemente, foi incorretamente lavrado o cancelamento (oficioso) da hipoteca registada sob a Ap. 76 de 10/02/2006 (sublinhe-se, sobre a propriedade plena).

Sob a epígrafe “venda em execução” estabelece o artº 824º do CC que “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo (nº 2). Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens” (nº 3).

“(…) há que distinguir duas espécies de direitos que incidam sobre os bens vendidos. Os de garantia caducam todos; os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias.” [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol II, pág. 87]

Assim, com a venda em processo de insolvência da nua propriedade do prédio a hipoteca sobre a nua propriedade caducou, mas a que incide sobre o direito de usufruto mantém-se.

Tal assim ocorre in casu uma vez que na insolvência apenas foi apreendida a nua propriedade do imóvel. Todavia, nada impedia que a apreensão e subsequente venda tivesse incidido sobre a propriedade plena, uma vez que esta constituía o objeto da hipoteca, registada em data anterior ao direito real de gozo, o usufruto, e como tal sendo este ineficaz em relação ao credor hipotecário, por força da natureza erga omnes e da sequela, características da hipoteca. Nesta situação caducaria o usufruto (artº 824º, nº 2 CC) e o direito da executada transferir-se-ia para o produto da venda (nº 3).[...]

“Em qualquer destas hipóteses, a lei determina que os bens se transmitem livres do direito real do terceiro, o que é o mesmo que dizer que se transmite a propriedade plena e não apenas o direito real menor de gozo do executado (no nosso exemplo: a propriedade de raiz, direito de propriedade limitado pelo usufruto).”[Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, pág. 391]

“Tendo a hipoteca, a favor do credor reclamante, sido registada em data anterior à do registo de usufruto que foi objecto de penhora, tal garantia hipotecária também incide sobre o usufruto, razão pela qual, em face dessa garantia, tem esse credor reclamante o direito de ver reconhecido o seu crédito e de ser pago em primeiro lugar, à frente do exequente, pelo produto da venda do usufruto, que foi objecto de penhora;

Isto porque, por força da prioridade do registo, e em face do disposto no art. 696º do C. Civil, a hipoteca incide sobre a propriedade plena, propriedade essa que, atento o seu conteúdo, definido no art. 1305º do C. Civil, inclui os poderes de uso e fruição que, nos termos do disposto no art. 1439º do mesmo diploma, são conferidos ao usufrutuário.” [Acórdão da Relação de Évora de 28/05/2015, disponível em www.dgsi.pt]

Não foi este o caminho percorrido no processo de insolvência, mas nem por isso o direito do credor hipotecário fica beliscado.

A vingar a tese da apelada – extinção da hipoteca, tal como constituída, sobre a propriedade plena, ou seja, abrangendo o usufruto, passando o ora exequente a gozar de preferência sobre o produto da venda – sairia este lesado no seu direito, uma vez que o produto daquela venda incidiu apenas sobre a nua propriedade, ficando assim impossibilitado de exercer o seu direito na sua plenitude. Esta tese atenta manifestamente contra o princípio da prioridade do registo consagrado no artº 6º, nº 1 do Código de Registo Predial e o princípio da indivisibilidade da hipoteca.

Só por lapso da Conservatória do Registo Predial foi efetuado averbamento oficioso de cancelamento da hipoteca (sem distinção) – lapso que foi determinante na prolação da decisão recorrida e que veio a ser corrigido. Retificação esta permitida pelo artº 121º do C.R.P., que se impunha pela transparência e verdade material, e que não contende com o princípio da segurança jurídica, ao invés do defendido pela apelada. Saliente-se que, diversamente do teor da conclusão 1ª das contra-alegações, à data da instauração da execução a exequente dispunha de título, como acima vimos.

Acresce que não está em causa a existência de duas hipotecas (uma sobre a nua propriedade e outra sobre o usufruto) ou a violação do princípio da indivisibilidade.

A hipoteca registada em 10/02/2006 abrangeu a propriedade plena do prédio. Por força da venda da nua propriedade em processo de insolvência a hipoteca registada sob a Ap. 76 ficou automaticamente limitada, no que se refere ao seu objeto, ao direito de usufruto, por força da compressão decorrente da caducidade do direito real de garantia sobre a nua propriedade.

Mantendo-se o registo de hipoteca sobre o usufruto (o cancelamento da hipoteca incide inequivocamente apenas sobre a nua propriedade), há que concluir que a executada/embargante continua a ter legitimidade (passiva) para ser demandada pelo exequente, no que respeita à hipoteca que tem por objeto o usufruto, nos termos do disposto no artº 54º, nº 2 do CPC.

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e, consequentemente, julgam-se improcedentes os embargos."

[MTS]