"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/09/2021

Jurisprudência 2021 (43)


Casa de morada da família;
penhora


I. O sumário de RE 25/2/2021 (302/07.5TBFAR-E.E1) é o seguinte:

1. Não integrando a casa de morada de família a lista de bens absoluta ou totalmente impenhoráveis, a penhora pode iniciar-se por esse bem se foi dado em garantia real (hipoteca) do mútuo concedido ao executado, em especial quando esse mútuo se destinou à aquisição desse mesmo bem.

2. O direito à habitação, consagrado no artigo 65.º, n.º 1, da Constituição, não se confunde com o direito à propriedade de casa própria.

3. Cabe ao Estado assegurar a protecção do direito constitucional à habitação, e não ao credor que concedeu o empréstimo destinado à aquisição desse bem.~

4. A simples penhora não afecta, em termos imediatos, a possibilidade do executado continuar a residir no imóvel, na sua qualidade de depositário do mesmo, pelo que esse acto não ofende o princípio da dignidade da pessoa humana.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Argumentam os exequentes que, constituindo o imóvel a sua casa de morada de família, é totalmente impenhorável.

A casa de morada de família não integra a lista de bens absoluta ou totalmente impenhoráveis constante do artigo 736.º do Código de Processo Civil. Apesar disso, este diploma estipula algumas regras relativas à ordem da penhora da habitação permanente do executado, contidas no artigo 751.º, n.º 4, estabelecendo só ser possível a penhora desse bem quando a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de trinta meses, no caso de a dívida não exceder o dobro do valor da alçada do tribunal de primeira instância, e de doze meses excedendo a dívida esse valor.

No entanto, o imóvel é o bem que foi dado em garantia real (hipoteca) dos mútuos concedidos aos executados, pelo que era por este que se deveria iniciar a penhora, nos termos do artigo 752.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Poderiam os executados argumentar que o direito à habitação, para si e para a sua família, consagrado no artigo 65.º, n.º 1, da Constituição, seria impeditivo da penhora da casa de morada de família.

Porém, o direito à habitação não se confunde com o direito à propriedade de casa própria. Como se afirmou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2019, «tal direito não se identifica nem se confunde com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação. Daí que não se possa configurar como constitucionalmente imposto, enquanto exigência decorrente da protecção do direito à habitação, uma solução no sentido de, nas relações entre particulares, consagrar um regime de impenhorabilidade da casa de morada de família.»

Para além de se notar que os executados não teriam sequer a propriedade do imóvel sem os mútuos que lhes foram concedidos pela exequente, assim se justificando a prioridade estabelecida no artigo 752.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a simples penhora não afecta, em termos imediatos, a possibilidade de continuarem a residir no imóvel, na sua qualidade de depositários do mesmo – artigo 756.º, n.º l, alínea a), do Código de Processo Civil.

Acresce que, realizada a venda executiva, poderá ter lugar a suspensão da entrega ao adquirente ou em caso de se suscitarem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução deverá comunicar antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes – artigos 828.º, 861.º, n.º 6 e 863.º, n.ºs 3 a 5, todos do Código de Processo Civil.

Daí que, como igualmente se afirma no supramencionado aresto do Tribunal Constitucional, «não obstante o reconhecimento, por este Tribunal, da função social da propriedade, sobretudo em sede de arrendamento, que poderá justificar a imposição de restrições aos direitos do proprietário privado (…), daí não decorre que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de protecção do direito à habitação (…). Por isso, havendo a possibilidade de o executado, em consequência de uma execução, ser privado da sua casa de habitação, em última análise, será ao Estado, caso tal se mostre necessário, que caberá assegurar a protecção do direito constitucional à habitação (cfr., a este respeito, em matéria de arrendamento, os Acórdãos n.ºs 151/92 e 465/2001), podendo a sua intervenção, no âmbito do processo de execução ser desencadeada através dos mecanismos acima referidos.»

Concorda-se com este raciocínio. Ao Estado cabe assegurar a protecção do direito constitucional à habitação, e não ao credor que concedeu o empréstimo destinado à aquisição desse bem. Note-se que o mercado do crédito à aquisição de habitação, tal como está construído, baseia-se no pressuposto do regular cumprimento por parte daqueles que procuram um empréstimo para adquirir uma casa própria. Por ora, não está previsto um sistema de garantia pública de tais empréstimos, pelo que os credores continuarão a dispor dos mecanismos executivos normais em caso de incumprimento por parte dos mutuários, sob pena dos próprios credores, não dispondo de mecanismos eficazes de recuperação do crédito concedido, se verem obrigados a retirar-se deste mercado.

Argumentam, ainda, os Recorrentes que o estado de saúde do executado marido obsta à realização da penhora.

Sem prejuízo de se reconhecer a gravidade desse estado – os relatórios médicos juntos aos autos são claramente demonstrativos dessa realidade, que não se refuta –, certo é que o princípio da dignidade da pessoa humana não obsta à realização da penhora. Os executados poderão continuar a residir no imóvel até à venda executiva, na sua qualidade de depositários, pelo que o acto de penhora não se apresenta como ofensivo do seu direito de habitação.

Acresce que – por força dos artigos 861.º, n.º 6 e 863.º, n.ºs 3 a 5, do Código de Processo Civil – tratando-se da habitação dos executados, o agente de execução deverá suspender as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.

A questão é que as doenças que afectam o executado marido não são agudas, são crónicas. Tratam-se de doenças de longa evolução, que se prolongam há vários anos, sem cura ou desfecho previsível a curto prazo, e não está sequer demonstrado qual “o prazo durante o qual se deve suspender a execução” para prevenir o risco de vida do executado, pelo que não estão preenchidos os requisitos que permitem a aplicação da regra contida no artigo 863.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Sem prejuízo de se reconhecer que as doenças crónicas do executado poderão ser exacerbadas pela entrega do imóvel ao respectivo adquirente, a questão que se coloca neste momento é saber se a penhora deve ser levantada, por inadmissibilidade desse acto. E a resposta é negativa, pois o simples acto de penhora, constituindo necessariamente os executados em depositários do imóvel, não os impede de nele continuarem a habitar.

Realizada a venda executiva e colocando-se a hipótese de entrega do imóvel ao adquirente, ponderar-se-á, então, a aplicação das regras contidas nos artigos 861.º, n.º 6 e 863.º, n.ºs 3 a 5, do Código de Processo Civil.

Por ora, essa discussão é prematura."


[MTS]